Não era isso que eu queria oferecer pra vocês, mas é o que eu tenho pra dar, agora. Os tradicionais bilhetes em garrafas, jogados ao mar, costumam – pelo menos nos filmes que vi - ser pedidos de socorro. Também aqui. Mas este, em especial, vai sem as plumas e adereços que costumam disfarçar o leitmotif da newscoisa. Então é isso: nervos expostos.
Desde que eu lembro de mim mesma, meu maior medo era não poder mais ler. Hoje percebo que já não sou tão aquela eu, meu medo maior é não conseguir escrever. Bom, estou aqui. Voltei. Ou melhor: estou voltando. O verbo é no gerúndio. Olha eu aqui de novo, xaxando, não é Gonzaga? Lá vamos nós, tirando as capas dos móveis, espanando a poeira dos cantos, arejando os lençóis, batendo tapetes, abrindo cortinas, janelas, os olhos. Salvando um arquivo novo, página em branco e sequenciando as letrinhas em busca de sentido. De sentir.
Algumas vezes escrever é como caminhar no pó de estrelas, lúdico e brilhante, e eu me sinto um tanto Wendy, fazendo a curva no Big Ben e partindo para o mágico espaço onde agora é sempre. Na maior parte das vezes, porém, escrever – pra mim - é desbravar cavernas subterrâneas, onde incessante se escuta o gotejar das dúvidas e a mágica possível é continuar respirando e acreditando que o que é sempre é só agora, vai passar, vai passar, vai passar e um nunca prometido e visionário está em alguma curva, em algum vão, no próximo tropeço, talvez. Escrever para e porque sobrevivo.
Vou registrar aqui um não-segredo: a vida vai mudando enquanto muda a gente. Umas vezes dói, em outras, também. A verdade é que acho bonito quem tem um propósito. Eu só queria chorar um pouco menos, trepar um pouco mais, morrer mais devagar.
Os fins de semana sem programação deveriam ser assim: café e cuscuz fora de hora, conversinhas, esporte na tv, uma dose de álcool, páginas pra revisar, série ruim, filme bom, cochilos, algo picante no prato – ou na conversa. A realidade: susto no áudio, estrada, estrada, estrada, vazios, fazer dois almoços, cozinhar duas jantas. Por vários dias. Hora do remédio, do curativo, da troca de guarda. Fazer rir. Chorar no travesseiro, no banho, no sonho. Respirar. Alívios. E não. Levar um soco no estômago. Fazer de conta que. Fazer as compras. Fazer as contas. Máscara, fralda, potes para armazenamento, café, abobrinha. Fazer torta de legumes. E mingau de aveia. Ter que refazer caminhos considerados para sempre interditados.
Mas nem tudo são lágrimas, tem hora que é a chuva escorrendo no vidro da janela do ônibus interestadual. Eu amo estrada. Parafraseando a antiga ESPN: viajar é o nosso esporte.
A alegria deixa vestígios.
Dica do dia:
Tenham ideias loucas para seus livros,
mas tenham também editoras que abraçam sua loucura e ajudam a fazer, da loucura, beleza.
Eu amo São João (é assim que chamo o período que alguns nomeiam festas juninas). Gostava no meu cearazim, gosto em Mossoró e gostei, gostei muito, do período em Portugal. Ruas cheias, marchas populares, bandeirinhas, comida na rua e, claro, as sardinhas: no pão e as do concurso da EGEAC. Sim, eu ficava na rua esperando a distribuição das sardinhas para decorar minha casa. Sinto saudades disso. Em uma dessas “pescarias”, acompanhei uma apresentação teatral, na rua Augusta, que tratava do sobe e desce em Lisboa (haja preparo físico para tanta ladeira). Tal como Roma, uma cidade de sete colinas.
Fica melhor com essa atriz da foto contando, mas na Lisboa antes de ser Lisboa vivia naquele território beira de rio, beira de mar, uma rainha meio mulher, meio serpente e toda solitária. Em um dia que não existiu bem assim na Ilíada, passou o barquinho de Odisseu que, sem querer saber que a terra tinha dona, se encantou com a belezura de terra lisinha a perder de vista e quis construir uma cidade que seria o centro do mundo (modesto, humilde, todas essas virtudes gargalhando). Ulisseia, seria o nome do lugar (mais risos). Pá daqui, pá de lá, os homens desciam do barco para tratar da construção e num nadinha, morriam. Morriam do quê? vocês me perguntam - ou a atriz perguntava a si mesma, em perfomance, morriam de picada (ui), porque as serpentes, obedientes à rainha, envenenavam todos beliscando os calcanhares semi-descobertos nas chinelas meio alpercata de Espedito Seleiro. E Ulisses sem entender nada daquele morre-morre, porém sem perder a pose (e a arrogância), soltou um: ei, quem tá aí atrapalhando a bagaça? Rainha apareceu, eles se entenderam, fizeram um gostoso vuco-vuco por uns tempos, deu no que deu… Rainha arriou os quatro pneus, deixou o moço fazer e acontecer, aconteceu cidade feita, cidade linda, naquele belíssimo plano. Mas passa dia, entra noite, em um desses dorme-acorda Ulisses lembra de Ítaca e, lá, Penélope esperando, já bateu uma saudade. Caraminholas em dia, tratou de inventar artimanha pra partir: aproveitou um escurinho da noite e meteu o pé na carreira. A rainha serpente, desacostumada ao estar novamente no sozinha de antes do navegador, surpreendida pela solidão de um amor que já não estava, sofreu tanto e tanto sofreu, um abandono que na mulher doeu tão fundo que contorceu seu corpo cilindro e tanto gemia como batia fundo na terra e em seu movimento se espalhava e se encolhia e se esticava e se retorcia e a cada volta que dava era um tanto de geografia que mudava. Fundas as marcas do desamor. Pois assim contou a atriz: do contorcionismo de dor de cotovelo que vieram as colinas de Lisboa. E eu que, distraída pelo sabor do pastel de bacalhau, pelo gosto da língua tão outra, pela gelada sangria, pelo morno da mão na minha lombar, pelo ruído festivo das ruas da Baixa Pombalina, pelo murmúrio de desejo ao pé do ouvido, não entendi o alerta.
escrever, para mim, tem sempre um mistério: o fazer de um texto nunca é igual ao outro.
Poxa… a frase que a Aline Valek compartilhou ressoou muito em mim. Viver tem essas doidices mesmo. Adorei o texto! Ganhou um inscrito ❤️