Estes dias a querida Rita Paschoalin leu e comentou A palavra que resta e me fez querer revisitar o livro e o que escrevi sobre ele. E, reencontrando ambos, me deu vontade de compartilhar com mais pessoas o que penso e como a leitura deste livro me tocou e, com sorte, ficar conhecendo o que vocês que já leram também pensaram e incentivar quem não leu a fazer isto.
A quem já recebeu a Garrafinha de 2021 com meus comentários sobre o livro garanto que não tá igual, igualzinho, acrescentei coisas que me estalaram depois (como a reflexão sobre o título) e tirei umas frases mais bobinhas e autoreferentes, certo?
Li A palavra que resta em 2021, corpo e mente presos em pequenos espaços e o medo opressivo de ter perdido a capacidade de me encantar com o mundo, com os homens e com o que os homens são capazes de fazer. Mas foi aí que o meu amigo Fabiano indicou este livro e, confiando no Fabi como confio, corri e comprei o meu. Vai que. E foi. Fui. Porque um livro pode ser correnteza. De lá pra cá vi A palavra que resta receber prêmios e elogios, todos merecidos, porque é mesmo um livro incrível. Escrito com sensibilidade e que nos faz reencontrar a nossa. Eu percorri as 149 páginas soluçando. E fiquei e sou grata por me reconhecer ainda capaz de sentir.
A leitura deste livro foi, também, um desbravar-me. A forma como as palavras se encontram, se alinham, se enlinham, se afagam é de uma beleza que me é familiar e estranha. Estranha porque tecido único, próprio do autor; familiar porque em ritmo que reconheço, talvez um certo sotaque cearense (pisc, pisc).
Sim, eu estava esperando a oportunidade de dizer que Stênio Gardel é cearense, quero dar destaque a isso, me julguem. Destaco, para que não haja mal entendido: o bonito que há é trabalho do autor, exemplo de uma gente teimosa que insiste em fazer belezas bem no ali onde tanto se faz aflição. É o trabalho e a arte dele saber contar uma história, ela mesma dolorida, triste-alegre, sobrevivente. A história que ele conta, resultado do seu trabalho é tal como o próprio fStênio e muitos outros artistas cearenses.
Este livro não se esquiva ao seu sotaque, ao seu local e, aí, encontra aquele alcance que, se não é o controverso universal, certamente é abrangente o suficiente pra encontrar cada leitor e, com ele, enredar-se.
(o autor, na rede, claro… quem quiser saber mais sobre Stênio Gardel, leia aqui)
Começamos com Raimundo, um homem de 71 anos, aprendendo a ler. Terminamos com um espanto no peito do quanto o viver arde, machuca, constrói, afaga, demanda. No intervalo, uma carta. Carta-guia, carta-fim, carta-refúgio, carta-mistério, carta-promessa, carta-saudade, carta-esperança, carta-interrogação.
São complexos os personagens do livro e cada um parece pronto para sair das páginas e estre(l)ar um outro texto como protagonista. Interessa-nos suas histórias, suas paixões, suas nuances: além do próprio Raimundo Gaudêncio, Marcinha, Damião e Adalberto, Caetana, Sazzanný, Cícero, Solange, Alex, não importa quão poucas ou tantas vezes apareçam na narrativa. Em certo momento do livro (e não demora), importa-nos menos o que vai acontecer e mais com quem acontece. E construir personagens que nos conquistam, em um texto que faz com que nos importemos verdadeiramente com eles, é um dos talentos de Stênio Gardel, tão grande como a habilidade de apurar as frases, ourivesaria meticulosa. Em alguns momentos em que mistura tempos, oralidade e escrita, memória e anseios, é puro kintsugi, une as palavras com ouro.
É espantoso como todos os sinônimos de restar combinam e tornam o título deste livro mais e mais complexo. Daí já se depreende o apuro com que as palavras são tratadas neste livro.
Restar pode ser existir depois do desparecimento de coisas ou pessoas… e sim, é a palavra de amor, sendo presença ou ausência do sentimento, que sobrevive (não só) no envelope dobrado e redobrado, sempre guardado com zelo. A palavra que resta é, também, a palavra que falta para concluir algo, a palavra que ficou em suspenso, que não atou nem desatou a relação. A palavra que Raimundo virá a aprender e usar, nomeando seu sentir suas memórias e construindo uma narrativa para si mesmo além do desconhecer. Restar é subsistir como resto, aquilo que é remanescente, que se mantem, que permanecer, a palavra que fica depois de tudo dito, depois que terminamos a leitura, fechamos o livro, a que levamos conosco, a que, em cada um, designa a experiência de encontrar Raimundo e os seus. E a palavra que resta é, ainda, a palavra que sobra, que abunda, desnecessária, a que não vai se usar, a que não se precisa conhecer. A palavra a mais. Dispensável. Como todas as que estavam naquela carta, quando finalmente Raimundo poderia decifrá-las.
A partir daqui nem é que tenha spoiler significativo, mas fica mais fácil entender as referências se você já leu A Palavra que resta
Não é só querer alguma coisa. É querer alguma coisa com alguém. Ou de alguém. Gaudêncio queria aprender a ler e escrever, mas queria mais, queria que Cícero o ensinasse. Porque amar é dar o que não se tem etc (beijinho, Lacan), já entendemos, mas como saber-se amado? Talvez imaginando ser possível receber, do outro, uma dádiva que tornasse completo, que encerrasse a dúvida, uma dádiva que fosse, ela mesma, passado e futuro. Fantasiando o impossível. Sustentando a demanda de que produza um saber sobre aquilo que não quer ser sabido. Ao negar-se o aprendizado, Gaudêncio desresponsabilizava-se do dizer-se e podia, aí, sustentar qualquer narrativa, não como liberdade (pois era dito pelos outros), mas como um vagar (tal como seu trabalho de chapa, o movimento disfarçando a imobilidade interna).
A transição que Gaudêncio faz é uma experiência subjetiva bonita que nem sei dizer. Quando ele enfim decide aprender a ler, apesar de ter Cícero como uma espécie de móbil e companhia, tem um além. Mais do que saber enfim, as palavras de Cícero, é o momento de se apropriar de palavras para si. Para se nomear. É bonita demais a sequência em que ele se prepara para trocar de carteira de identidade, agora podendo assinar seu próprio nome. Fiquei com a sensação de que se decidir a aprender a ler e escrever derivou e determinou, ao mesmo tempo, a superação da necessidade de sentir-se completo recebendo apenas de Cícero a capacidade de contar/criar/ter uma história. Assim, decidir-se pelo aprendizado foi possível apenas quando Gaudêncio saiu do lugar de transição e movimento aleatório trabalhando como chapa, quando construiu novos laços, quando foi capaz de voltar para o lugar de origem e dar sentido em um para além da culpa e da insuficiência, quando encontrou-se no trabalho que realizava, quando criou outro núcleo de afeto.
No encontro/embate com Suzzanny, Gaudêncio se pergunta se a violência emerge nele por ela lhe ser igual ou por ser diferente e é no reconhecimento de que são, concomitantemente, semelhantes e diversos, alvos e potência, que ele se vislumbra e vai conseguindo dar sentido à violência que ele mesmo sofre(u) e vai se cuidando ao descobrir-se capaz de cuidar dela.
Um pequeno intervalo para louvar o trecho em que Gaudêncio se pergunta sobre os “excessos”, o “desnecessário” das letras dobradas no nome de Suzzanný e o autor nos presenteia com um discreto toque sobre a beleza da individualidade, de abraçar o que é único e fazer, disso, nome próprio:
“não sei pra quê é dois zês e dois enes se só dá pra pronunciar um, não é como o "r" e "rr" ou "s" e "ss", pra diferenciar, tanta letra só se for pra ser diferente, que não tem em qualquer canto e quando a gente vê não esquece mais, que nem a dona, e não pode esquecer o acento no "y", senão fica Suzzânny, Ai, abuso só de ouvir Suzzânny, é Suzzanný, que custa?, verdade, Suzzanný”
A palavra que resta é um livro que se volta para os traumas, para o sofrimento, para a angústia que constitui uma certa experiência de marginalização e exclusão? Pois claro. Mas é muito mais que isso. Tem essas brechas, sabe? Por exemplo, do bonito que é se permitir encontrar de verdade alguém. E o afeto que vai sendo construído ao Cícero se fazer parte de um novo grupo (que tem Suzzanný como catalisadora) é belo e forte justamente porque não ignora a diversidade em nome de um certo Nome e norma natural, mas se nutre da intenção e do esforço.
Mais do que uma carta guardada a vida inteira, diz-nos o texto, é uma carta que guardava toda uma vida. Não, suspeito, pelo que ela continha e sim pelo que ela provoca. No cinema, tem-se o MacGuffin, um objeto, uma pessoa, um evento que mobilizam toda a ação, que tem muita importância para os protagonistas e que, no fim das contas, se mostra irrelevante em si mesmo, sua relevância vem do próprio fato de toda a trama girar ao redor dele. Não vale tanto o que é, mas o que representa, o que motiva e leva a narrativa pra frente. Num olhar mais ligeiro pode-se pensar que a carta de Cícero é um MacGuffin, mas me parece que além de apressada é uma conclusão equivocada. A escolha do autor de não apresentar um conteúdo final para a carta não indica a irrelevância do que ela é em oposição ao que ela representa. Ela representa pelo que ela, justamente, é: mais do que uma mensagem, uma mensagem escrita. Algo que se coloca como enigma também em sua forma, não apenas em conteúdo. O que ele carrega no envelope cerrado é a escrita tanto quanto o dito, até ser a escrita, ela mesma, mais e maior do que o dito poderia ser naquilo anteriormente escrito. Um aprendizado imenso pelo que a escrita pode vir a dizer, não pelo que decifra.
Quando enfim Gaudêncio se viu pronto para lidar com o que quer que Cícero tivesse tencionado transmitir, o que quer que isso fosse já era menor do que sua prontidão. Saber o que a vida poderia ter sido é menos relevante do que reconhecer a vida que é.
O vai e vem da narrativa lembra o atual do inconsciente. Tudo ao mesmo tempo já. O passado não é apenas memória, é um agora no corpo, nos medos, pensamentos, desejos e sentimentos do personagem. As corcundas são hoje nas costas cansadas, mas o são pela história de carregar e descarregar caminhões tanto pelo peso da cruz de repetir a infelicidade de sua família. Um ontem que é enquanto Gaudêncio for. Também o futuro está espalhado em todo agora, em cada ato que é, pronto pra ser criado em seu ineditismo, mas resultado de cada ação do então. E é o contar-se que vai dando a materialidade e o sentido do vivido. O autor – e, um dia, Gaudêncio – dominam a materialidade da palavra.
“Escreveu ao lado do nome, o nome dele. O final era com “u”? Com “o” ficava mais bonito. Seis letras só, mas cabia tanta coisa que era pesado. Feito a cruz, [Cícero] começava com c, como coração e cu.”
O que as palavras dizem importa tanto quanto o como dizem e é por isso que a diagramação do livro é um deslumbre a mais, não uma firula, mas uma imposição do concreto da narrativa. Achei um trecho de entrevista que ilustra e expande essa minha sensação, Stênio Gardel diz:
“a escolha dos nomes dos personagens é sempre um momento importante e também divertido no processo de escrita. Procurei nomes que dissessem alguma coisa para além do nome em si. O Raimundo, como todos nós, é um mundo inteiro, então gostei que ‘mundo’ estivesse no nome dele. Além disso, possui também ‘imundo’, que é uma palavra significativa para a história dele”.
A palavra que resta é um livro sobre exclusão. Sobre homofobia. Sobre a violência a que são submetidos os lidos como diferentes e, assim, marginalizados, silenciados. E isso já é imenso, pela delicadeza e intensidade com que trabalha estes temas sem amedrontar-se ou escorregar para saídas fáceis, personagens e tramas esquemáticos. É também um livro sobre prazer, medo, desejo, rejeição, solidão, afetos que, caudalosos, podem ser ameaçadores como a cheia de um rio e, também como ela, podem ser lembrança nostálgica e idealizada. Um livro sobre vulnerabilidades e vínculos, um livro a respeito de violência na história familiar e sobre a beleza dos encontros e dos novos laços e cuidados possíveis. E é, para mim, principalmente um livro sobre escolha (não só de ler ou não a carta mas assenhorar-se do tempo/espaço que é existir) e a potência emancipatória da capacidade de narrar.
Lendo A palavra que resta pensei em Central do Brasil. E por um momento fiquei achando que, claro, tem carta, né. E sertão. E margens. Mas não é isso. Ou não só por isso. É a ternura com que se trata os personagens. Um tempo depois vi uma resenha em que a autora lembrou, ao ler a história de Raimundo, da história de Macabéa, da Clarice Lispector, por serem personagens privados de oportunidades excluídos, rejeitados, personagens a quem falta tanto – amanhãs, educação, afeto. E ela conclui que a diferença se apresenta porque Stênio trata a história de Raimundo com mais generosidade. Ternura. Generosidade. E tem, também, a coragem. Coragem dos personagens ante as dificuldades; coragem imensa do autor e, talvez principalmente, a coragem a que nos convoca na leitura.
Sou cearense, mas não conhecia o livro. Fiquei com muita vontade de ler. Já vi que tem na BECE, em breve vou buscar lá para ler. Obrigada! :)
Amei esse texto e ainda não li o livro. Em breve pego ele.
Obrigada por esse estímulo.