Há pessoas que escrevem e dizem o belo, por vezes até a verdade. Elas podem se dar o luxo da honestidade. Todas as vezes que eu escrevo, eu minto. Mesmo quando falo de uma coisa que sim, aconteceu. Mesmo quando falo do que estou sentindo, do que vivi ou do que pensei. Escrever é agarrar uma tábua e não me afogar. A gente está ali, vivendo a vida que tem pra viver, rindo o riso que tem pra sorrir, chorando a dor que tem pra doer, dormindo o sono que tem pra entorpecer quando uma saudade cresce a ponto de sufocar. Para sobreviver, escrevo. Eu minto, é o que me sobra, reconhecer que a linguagem é cobertor curto. Por entre as letras escapa o verdadeiro e fica o possível. Há quem produza o belo, eu escrevo porque preciso e a sobrevivência não permite condescendências.
Duas coisas que não faço: ouvir música e me apaixonar, escrevo entre uma canção e outra do Paulinho da Viola.
Tinha cerveja, isso era certo. Mas esse não é bem o começo da história, a hora que ela chega com sacos de supermercado cheios de cerveja na casa dele e eles sorriem o sorriso um do outro. Nunca fui boa em narrativas. Não foi esta hora, mas que hora foi? Talvez uns dias antes, quantos eu não contei, quando ela, com a ausência de censura que lhe é peculiar, jogou um irreverente qualquer dia me leva pra beber cerveja, no meio da conversa fria. Era sem intenção. Quer dizer, sem essa intenção. Essa aí que vocês pensaram e que fez um monte de vocês levantar sobrancelhas e sorrir de canto de boca. Ela não tinha essa intenção. Não com ele. Como eu sei das intenções dela? Sou a autora da história, ora.
Então: ela não estava pensando em ficar com ele. Mas pensava em cervejas e ficar com alguém. Ela quase sempre pensa nisso mesmo. E ele ia onde ela não sabia ir, desambientada naquela cidade pequena e convencional nas aparências, que era a cidade que agora ela habitava, mas com a qual não se acostumara. Uma cidade de restaurantes que fecham cedo e servem long neck. Ela queria o boteco de cadeira na calçada, cerveja de seiscentos, copo americano, sinuca e ficar na rua até a madrugada. Esta era a cidade dele, e ela se ofereceu mesmo. Ansiava pelas esquinas. Me leva pra tomar uma cerveja. Portal.
Uma dica: depois de começada, toda história arruma um jeito de continuar, então ela aceitou o convite imediato pra ir àquele encontro coletivo, mesmo conhecendo quase ninguém da turma. Em casa. A casa dele. Antes de levá-la pra rua, ele trazia a rua pra ela. Posso viver com isso, ela pensou. E levou cerveja. Muita. Que ele recebeu com entusiasmo. Na geladeira, outras. Memórias, mas cervejas também. E latas e garrafas já vazias. Pessoas bebendo. Pessoas conversando. Pessoas rindo. Alguma música. Aquele clima bom de álcool, cigarro e conversa decadente.
Sentaram um ao pé do outro, como em um romance de José de Alencar, mas ambientado num conto do Caio. Ele fala muito e rápido. Não dá para saber ao certo com quem. Ela fala alto. Provavelmente para si mesma. De vez em quando, ele lentamente silencia e se inclina até seu ouvido tocar a feminina boca, transformando a fala dela em sussurro. Sobre? Ela sabe que não vai lembrar. Não importa muito. Suspeita que ele também não. Não lembrará. Nem se importar. No som que quase ninguém escuta, Ney implora pra um certo alguém garantir que faz seu tipo. Ela se distrai e ri solto. Não é. O tipo dele. Nem ele, o tipo dela, se ela tivesse algum. Mas é tão gostoso ouvir o Ney, sentir a voz como uma carícia na pele, no braço, como uma mão entrelaçada na sua, opa, é a mão dele. Gostosa. Breve. Ela fala gesticulando e ele não para quieto. Outra cerveja. Outro assunto. Outras canções. Eles esbarram. Mãos, pernas, ombros. Confundem copos. As salivas se encontram antes das bocas. Longe das bocas. Sonhando intimidades.
Copo vai, copo vem, ela não sabe como, estão falando de desejo. Do que não desejam do outro. Do que não desejam no outro. Listam as diferenças. Muitas. Não. Não. Não. Nenhum amanhã. Nem mesmo um hoje. Um bingo às avessas. Errados. Distantes. Cavam o abismo. E o enchem de cerveja. Atravessam a nado. Se encontram no meio, sem fôlego, os membros moles de cansaço ou álcool. Alguns chamariam beijo, mas eles se reconhecem náufragos e sopram e sorvem a solidão na boca do outro. Um abraço desajeitado. Ainda o Ney. Amendoim torradinho. Eu já colei minha boca na boca que é tua. Ela ri baixo. Ele fala pouco e devagar, soprando convite, no ouvido dela. Outra cerveja? Melhor. Não eram o tipo um do outro. Mas não custa nada conferir.
Em algum amanhã de manhã, levantam-se ressaqueados, ele, a dor na lombar, ela, um leve tremor nas mãos enrugadas, ele faz o café tão forte e amargo quanto ela precisa, ela cozinha ovos em molho de tomate apimentado, como ele gosta, tanto se aprende no entre cervejas, quem diria. Eu digo.
garrafinhas da Lu também são garrafinhas de cerveja 😄🩷
Só consigo aplaudir. Se meu computador permitisse, destacaria dois trechos do texto, como se usasse um marcador de texto verde limão.