Envelheci. Envelhecer sempre foi um horizonte almejado. Uma espécie nebulosa de plano. Se tudo der certo. É preciso partir dessa premissa: ficar velha foi algo para o qual eu me preparei, me candidatei, desejei uma oportunidade e, tendo, me dediquei a ela. Entretanto – se é possível colocar uma conjunção que indica oposição neste contexto - tal como Armstrong chegando à lua em O Primeiro Homem, envelhecer não foi uma aventura épica, mas um processo lento, arriscado, dolorido, um tanto burocrático, com muitas perdas, vínculos feitos e desfeitos, trabalho, sacrifícios, aprendizados, além de ideias e vontades que são difíceis de nomear.
O filme de Chazelle cutuca ao perguntar que mistura de eventos e personalidade pode levar além das seguras fronteiras conhecidas. Um homem pisou na lua, ok, o filme parece dizer - mas que homem? Que experiências, anseios, projetos, formação, traumas e dores imprimiram peso ao pé que fez marca na superfície lunar? Envelhecer, tal como o desbravar do espaço, faz experenciar a vertigem de tocar algo desconhecido. Acompanhar a corrida espacial é divertido e assustador (afinal chegar à lua pilotando uma espécie de corcel remodelado é heróico e meio tresloucado) e rever o primeiro homem confirmou que é um filme não sobre um grande salto para a humanidade, mas sobre os pequenos passos de alguém. Ir à lua é importante. Voltar de lá, mais ainda. E, sabe-se, o tanto caminhar cansa. Dói. Em mim, na planta do pé.
Hoje senti a primeira dor física advinda de já muito ter vivido. Desde, sei lá, 17, 18 anos, meus pés são a parte sensível do meu corpo – se eu andasse muito, fizesse mais esforço, etc, lá estava o pé doendo. A dor no tornozelo veio depois de torcê-lo algumas vezes: agora se andar mais do que umas horas, mesmo que seja no plano, ou se eu ficar em pé tempo demasiado, meus pés reclamam. Entretanto o doer da vida acumulada veio hoje, pela primeira vez, acho, de forma indisfarçável. Depois de uma semana de muitas horas na cozinha, banho tomado, roupa trocada, bonitinha pra dormir, fui deitar e senti um cansaço nas costas. Viver doeu no corpo pela exaustão.
Acho que foi isso. Espero que tenha sido. Porque a opção é aceitar que enfim o tempo me apresentou uma realidade maior que minhas habilidades, meus desejos, meus truques, minhas economias, minha flexibilidade, minha disposição. Maior que eu. Sabe quando se passa muito tempo sem atividade física e aí se capricha na musculação e no dia seguinte latejam músculos que nem se sabia que tinha? É assim a geografia, o silêncio, a diferença de visão de mundo, de expectativas, de jeito de lidar com o desejo, de encarar a distância. Dói em lugares que eu desconhecia.
Viver – tal como o filme do Chazelle – é imprevisível em momentos insuspeitos. Nas situações em que se espera uma trilha que diga como devemos nos sentir, é o silêncio que nos é oferecido. E quando devemos estar totalmente inebriados por uma beleza cósmica ou um ato de bravurao, ouvimos o guinchar de parafusos apertados demais.
Geralmente os americanos transforam seus fracassos espaciais em narrativas grandiloquentes em que tais eventos parecem gloriosos. Eu também. Mesa de bar, mãos que gesticulam, gargalhadas em looping, autoironia, não sou daquela turma que o Fernando Pessoa aponta que tem sido campeã em tudo, não caio nesse erro óbvio. Esmero-me confessando infâmias, vilanias e covardias com humor e delicadezas. O Primeiro Homem – e eu, agora aqui – abrimos mão desse disfarce. É preciso chegar perto, muito, muito perto, de um sujeito e, a partir dele, é que é possível a proximidade com um feito que é, em si mesmo, tão arrebatador que mal se consegue encarar a olho nu. Chegue mais perto, moço bonitOPS. Gosto que o suposto maior momento, o imaginável apogeu, na película de Chazelle, é retratado de maneira banal. Porque a narrativa está comprometida mesmo é com a jornada interior do indivíduo. Ou o que dela se pode vislumbrar. Ainda estou falando sobre o filme? Talvez. O Primeiro Homem é sobre um momento de glória contado com um sorriso triste e um pouco cínico, daquele cinismo terno, dos que disfarçam, mas ainda se importam.
Eu ainda me importo. Mesmo quando o envelhecer é composto por espaços claustrofóbicos, rebites e fios à mostra, parafusos soltando, alarmes apitando, luzes piscando e controles, botões, painéis amontoados em cabines minúsculas. Viver é um sacolejo sem fim que me deixa ocasionalmente meio enjoada e carrega o risco constante de uma faísca qualquer causar um estrago irreparável. É preciso encarar com desassombro tudo isso e, vez ou outra, experenciar os instantes de contemplar o espaço e sorrir, porque é tudo tão bom, bonito e indescritivelmente recompensador.
Ryan Gosling apresenta uma atuação impecável. Há os encenam os personagens reais se aproximando o máximo possível de como eles eram, agiam, falavam, se pareciam. A avaliação é feita a partir do quanto o ator ficou parecido com o personagem que ele decalca. Não é o caso. E há os que, como Gosling fez, apresentam uma composição tão coerente, envolvente, interessante, que não importa como Armstrong era “na verdade”, mesmo que ele não fosse, ele deveria ser como Gosling o construiu. Nós precisamos que seja para fazer sentido. Não há comparação, não procuramos com quem comparar porque o personagem apenas é. Envelhecer tem me permitido abrir mão, um pouco, da pessoa que eu pretendi me tornar, que eu me continuamente me esforcei pra vir a ser e apenas estar. Ou tentar. O sentido se impõe, sem que eu esteja sempre a cascaviar atrás dele. Quem sabe um dia eu possa sentir que não é preciso me comparar com a Luciana almejada, com a Luciana de verdade.
Tem uma hora que os jornalistas perguntam pro astronauta o que ele gostaria de levar pro espaço (joias da esposa, alguma coisa particular, etc) e ele, secamente, responde: gostaria de levar mais combustível. Quando me perguntam quantos anos eu tenho não respondo os que já vivi – esses, de alguma forma, estão perdidos, são intocáveis, “imexíveis” – respondo com a estimativa dos que ainda tenho a percorrer. Uns 25, talvez. Há algo no viver – e, no caso dele, no repetidamente sobreviver quando tantos, não sobrevivem – que nos torna muito solitários. Quando estamos esperando a hora de ir em missão – ou seja, para mim que envelheço, todo dia é um dia a mais sendo um dia a menos a ser vivido - é difícil dizer a quem se ama todos os medos, as incertezas, as expectativas. E é difícil assumir: talvez eu não volte e, caso volte, certamente não voltarei a mesma.
Todo o processo de chegar à lua, percorrido pelo astronauta, nos fala de um reconhecer a mortalidade. Armstrong pisa na lua e cata lá seu saquinho de areia e solta a pulseirinha de sua filha. Já eu, eu envelheço. Cato meus caquinhos e tento soltar a vontade de, mais uma vez, etc. São conquistas. Conquistas enlutadas. A filha, os colegas, os amigos, o crescimento dos filhos, o muito que ele perde. Também eu – e tenho pudor de enumerar o que deixei, o que ficou, o que me ocupa em vazios. Por mais que vivamos em coletividade, por mais que Gemini e Apollo tenham sido um desafio e uma realização de muitos, há algo na(s) experiência(s) que é, só pode ser, uma trajetória pessoal; a odisseia de cada um.
O Primeiro Homem põe o holofote na solidão. Armstrong se compromete com a ideia de explorar o espaço. Como tantos. Mas de uma forma particular. Há os que almejam a glória. Os que pretendem derrotar a URSS. Os que anseiam pelo conhecimento. Os que o fazem por dever do ofício. Os que pretendem votos e eleições. Armstrong entende que estar no espaço nos proporciona uma visão diferente das coisas. Outra perspectiva. A comparação é tão óbvia que até silencio, aqui.
Uma outra alegoria reunindo filme e envelhecimento, tão evidente que constrange trazê-la (mas era sábia a Merteuil e a vergonha, como a dor, só se sente uma vez), é sobre a comunicação. Por várias vezes, quando os astronautas estão nos módulos - nos foguetes, sondas, satélites, sei lá o nome daqueles fusquinhas que eles pilotavam nos testes e no espaço - a comunicação é interrompida, confusa, falha. Alguns problemas o astronauta tem que resolver sozinho, sem orientação, em outros é preciso confiar no pouco que se entende do emissor distante, lá das equipes de comando, entre uma situação e outra, decisões que determinam se retorna ou se fica à deriva. A comunicação pouco confiável do ambiente do trabalho vai impregnando o cotidiano, há quebras, engasgos, intermitência, rupturas, incompreensões sucessivas e cada vez mais profundas entre Neil e sua família. Entretanto, o enquadramento mais bonito em todo o filme mostra como a conexão pode prescindir de toda essa comunicação falha. Um diretor quando sabe o que faz, sabe mesmo.
O Primeiro Homem é um filme original e acho que isso é muito mais do que vários trabalhos sobre o tema se propõem. E é um filme de coragens, dos que viveram o que a história narra e coragem dos que se propuseram a filmá-la sem as muletas de sempre. Um embate entre o frágil do humano e a capacidade de ir além. Não há receita para lidar com uma dor que não se pode nomear. Esse, talvez, seja meu pedido para 2024: a coragem de deixar 2023 em 2023.
(estava preparando este post e a Tina Lopes compartilhou este vídeo no instagram. Não resisti. O amor não passou, mas vai. E o coração, sim, continua)
E vamos de metas para 2024:
1. Ando sentindo falta da mim que se revela nos encontros de afeto, vou enviar mensagem pra pelo menos um amigo a cada dia;
2. O mar é minha terra vermelha de Tara, então ir à praia pelo menos uma vez por mês;
3. O corpo pede: ir ao samba pelo menos uma vez a cada bimestre;
4. Enquanto eu não me mudo da casa, mudar a casa. Cuidar dos 5 sentidos: colocar mais quadros, mais cores, mais objetos decorativos, comprar flores uma vez por mês; ligar novamente minha fonte e ter música nos ambientes; colocar velas perfumadas, chiringar aguinha cheirosa nos travesseiros, colocar grãos de café em potinho no meu escritório; comprar lençóis novos com o máximo de fios possível; cozinhar algo que eu goste muito pelo menos uma vez por semana e servir no aparelho de jantar da minha avó, tendo decorado a mesa;
5. Mesmo que viver ultrapasse todo entendimento, como disse Clarice, escrever todos os dias a partir de 15 de janeiro;
6. Reaprender os tempos do dizer e do sentir, ver pelo menos um filme das décadas de 30 40, 50, 60 e 70 por semana;
7. Suar as tristezas, fazer atividades físicas, preferencialmente que me dêem prazer, tipo dança (caso não encontre, pilates)
8. Ser mais generosa comigo mesma ao avaliar meu trabalho;
9. Sair da minha caixinha de referências e buscar conhecer algo novo (um artista, uma música, uma pintura, um grafite, uma cidade) a cada mês;
10. Estar aberta a novos propósitos, sem me perder de vista.
Que lindeza de lista de metas para 2024!
Eu já fiz a minha também (tá num bloguinho que ninguém lê – mas tudo bem! rsrs) e vou até repensar algumas coisas, vc me inspirou!
Feliz Ano Novo, Luciana!!!
Eu iniciei o projeto de envelhecer ao cortar as madeixas e deixar o branco, o prata e o cinza chegarem de mansinho.
A testa lisa, a coxa mole, o início de "treinos" para a velhice na academia.
Falei para a professora: quero ficar velha e andar. Quero fazer uma barra dinâmica.
Perfis de mulheres vinte anos mais velhas que conseguiram não sei se me inspiram ou me desafiam, e a cada aumento de peso e cada bufada com elogios do instrutor redescubro que gosto de musculação, olha que sorte a minha.
Tenho um artigo para entregar em 10 dias e estou aqui escrevendo comentários.
TDAH que chama, e já até parei de ler sobre pq percebi que olhar minha vida com a lente do diagnóstico é uma bela porcaria, todavia porém é inevitável. Procrastino e me critico desde sempre. Haja terapia.
Minha meta de médio prazo - sim, estou pós graduando em Gestão, afinal - é ser mais generosa comigo, me admirar como admiro minhas amigas.
A de longo prazo é ficar velhinha e com os cabelos totalmente prateados e semi ereta