Viver é morrer um dia por vez. Nem lembro direito quando comecei a pensar assim, irresponsavelmente diria: sempre. Foi até antes de sentir que envelhecer me era precioso. Saber a morte, a minha morte, reconhecê-la e aceitá-la, deu-me liberdade em tantos e diversos níveis que listar seria perigoso e reducionista. De forma simples, seria um pouco a história dos lírios no campo, mas sem um deus que viesse fazer as vezes da natureza. Só eu e um compromisso com o fazer o melhor de mim.
Saber a minha morte e tê-la próxima, porém, não me prepara nem protege da morte do outro. O amor nos torna vulneráveis. Não, escreverei em primeira pessoa: o amor me torna vulnerável. Ser vulnerável é estar exposta, sensível, aberta ao que vem do outro. Dá medo, às vezes. E ampliam-se as alegrias, os prazeres, a coragem de experimentar, de sentir. Amar alguém nos impregna da pessoa e é muito, muito doloroso quando ela não mais está.
Acontece que há ainda mais vulnerabilidade: nem sempre é sobre mim. Não é apenas a minha morte, não são apenas as minhas perdas. É também sobre quem amo e que perdem, sobre quem amo e envelhecem, sentem o morrer mais perto, sobre quem amo e convivem com pessoas que adoecem, com pessoas que estão envelhecendo, com pessoas que estão morrendo. É também a respeito de pessoas perdendo pessoas, pessoas lidando com a morte de pessoas que amaram. Pessoas que amo vulneráveis e sofrendo. E nos deixam, ou melhor, me deixam assim: frágil e impotente. Porque há pouco mais que eu possa fazer que tentar amenizar o que lateja em presença e xícaras de chá.
Por amor aceitaríamos repartir as perdas que são do outro. Não é assim que funciona. O outro sofre, apesar do nosso amor, da nossa presença, do nosso querer que ele não sofra.
Penso que se deve sofrer mesmo. Poder enlutar, lamentar, prantear quem se amou de todas as formas, de qualquer forma. Acolher todos os tipos de lamentação até que se fique: memória. Emudecer a dor é fazer de conta que nãos somos no tanto sentir, tentar adormecê-la é escamotear o que ela nos revela da fundação de nossos anseios, sonhos, preferências, projetos.
Sofremos porque aquela existência já não é. Aquele corpo, aquela voz, aquele humor, aquela fome logo antes de deitar, aquele sono intranquilo, aquela risada alta, aquele tique, aquele cheiro, aqueles sonhos, aquele abraço, aquelas referências, aquele amálgama único, particular, peculiar. Não está. Já não é. Mantemos quem perdemos nos fragmentos de lembranças, por isso um velório é tão precioso: montamos um quebra-cabeça de quem não está a partir das memórias compartilhadas.
Entre tantos motivos, sofre-se também porque quem morreu levou-nos junto. Levou tudo que se viveu em comum e, ainda, levou consigo a possibilidade de viver um a mais. A morte é tudo que não (mais) será. A morte é o nunca mais. Nunca mais serei uma menina brincando de cabra-cega, quando a amiga de infância morre. Nunca mais serei a moça ansiosa no primeiro dia de trabalho quando o colega de escritório morre. Nunca mais serei a surpresa mulher que goza pela primeira vez quando aquele namorado querido morre. Nunca mais porque, embora ainda seja todas essas e todas as outras que fui me fazendo ser, é no outro que me encontro. O olhar do Outro, as memórias do Outro, aquela pergunta no meio da conversa: “você lembra?” – essas coisas que dão materialidade ao passado vivido. Perder alguém é perder quem fomos com e naquelas pessoas. O olhar do outro, que nos limita e indica, faz falta. Perdemos um pouco a âncora, nos perdemos um tanto quando a morte de alguém nos atravessa.
Nunca mais dói. Isso aparece se acentuar quando envelhecemos. Primeiro porque, de maneira geral, há muito mais morte por perto. E todas elas trazem a nossa própria morte mais para o centro do palco. Aquela, que sempre soubemos estar ali, certa e à espera, deixa de ser uma possibilidade remota e se torna uma companhia constante.
Eu escuto a música do Adoniran Barbosa “Já fui uma brasa” (que eu adoro) e fico pensando que se já era melancólico ouvir “eu também um dia fui uma brasa e acendi muita lenha no fogão” como é solitário alguém que o escutava perceber, dia a dia, como vão rareando as pessoas que entendem – porque viveram – a piada implícita na “brasa”.
A morte dos outros com quem partilhamos parte da vida é também isso: uma perda de referência, de ligação com situações que foram em comum. As pessoas são os vínculos com nós mesmos, com quem fomos, com o mundo que construímos. A palavra que me vem é desamparo.
Uma das formas que se encontra pra lidar com o desamparo é se recontando. Falar, elaborar, rememorar é uma forma de reconstruir o laço com esse “nós mesmos” que os que morrem parecem levar com eles. E é pra isso que estou pros que amo: pra escutar. Se não posso sofrer por eles, posso estar presente, próxima, atenta. Posso tentar entender uma outra vida dessa pessoa que não é a vida que eu a vejo viver. Posso aceitar que ela é mais do que quem ela é pra mim.
É isso que tenho a oferecer: o acolhimento de quem é, ainda, ao dizer a presença e a ausência de quem não mais.
Tento aceitar a dor que é minha e em mim doeu, assim: escrevendo. Letra a letra sabendo mais o desamparo, a angústia, a falta. A morte. Letra a letra me interrogando. E vivendo a compreensão de que viver é morrer um dia de cada vez. No ainda não, convoco: façamos canções entre soluços. Façamos poesia. Contemos histórias.
Pelo dito, aceitar a responsabilidade sobre o que fazer da nossa vida enquanto ainda é, do nosso corpo, do nosso desejo. E o que fazer da nossa dor. Aprender a sentir a saudade. Aprender como sinto a saudade.
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Mas é difícil, há perdas que parecem que me levam quase todas as palavras. Quando isso acontece, o abraço, o contato, a mão segurando a mão, ajudam, linguagem que também é.
Estou aqui buscando uma frase, um dito, porque não posso te abraçar, prima. Não estou aí e, não estar aí, não me deixa estar aqui também. Sinto tanto.
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**Morreste-me:
Penso sempre no título deste livro. É tão bonito quando alguém nos acerta no alvo. José Luís Peixoto o fez (e faz muito). Morreste-me, porque é reflexivo. A escrita me comove. Em Morreste-me, a vulnerabilidade. De quem morre. De quem fica. De quem escreve. De quem lê. A história, mas também o estilo. É, talvez, por isso, que fiz empréstimo do termo.
Palavras lindas. Impossível não se apaixonar pela sua escrita.
Anotando a indicação e pensando (ainda) sobre as (possibilidades de) perdas e cansaços.