Newscoisa #05: pequenos, médios, grandes incêndios, terremotos, tempestades e devastações variadas por todo lado que a vida não anda nada moleza, camaradas
50 mil pessoas. Amores de alguém. Ou nem, importantes por si mesmos, por serem. Existirem e não mais. A indiferença à enormidade dessa perda me assusta mais que tudo, mais que a doença, mais que a dor. Mais. Eu, menos. Cada vez menos.
Umas decisões tão impulsivas que eu nem estou aceitando que são minhas. Mas o nome da coisa é tão bonitinho que dá vontade de fazer sim.
E no domingo? O aniversário desta querida, querida, querida Rita. Que tem o nome da minha mãe, que tem o nome na capa de um livro e o meu do ladinho, que tem a minha admiração e meu afeto, que tem um blog tão lindo que quando a gente está lá acredita nos possíveis, no bom, no melhor. E em bolos fofinhos de laranja.
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Voltei ao nosso boteco esses dias. Fui a pé, saindo de casa no acender dos postes, o chão ainda molhado da chuva espelhando brilhos, contando passos na calçada estreita, os ônibus lotados na lenta avenida e olhos espiando invejosos minha saia colorida parada na esquina enquanto o sinal não esverdeja. Preciso de cigarros e lá está o posto, aquele de quando precisávamos de cigarro a caminho do bar. A conveniência não parece tão maior quando lá entramos só eu e minha memória. É a mesma atendente? Não sei, não consigo saber sem aquele sorriso meio deslumbrado que a iluminava quando você e seu sotaque cantado pediam qualquer coisa, geralmente dois maços de hollywood – nunca fomos muito delicados juntos. Compro dois derbys, um isqueiro amarelo e uma latinha de cerveja, não vou chegar sozinha no nosso bar. É estranho que dobrar a esquina do posto é atravessar um tipo de armário pra Nárnia, as avenidas e lotações e caminhões fumacentos e carros em engarrafamentos desaparecem e vemos aquela sucessão de casinhas de postal, casinhas ou sobrados, coloridos, portão de ferro, plantinhas nas janelas, talvez algum duende no jardim da frente. É um quarteirão só, que percorro sorrindo ao lembrar das histórias variadas que você inventava para os moradores: bruxinhas exiladas, velhos marinheiros e suas sereias, um cônego vivendo em alegre pecado com uma mula. Sem cabeça ou com, as risadas nos impediam de concordar. Olha aí, eu já sou capaz de sorrir pensando em você, mesmo sem sua mão no meu ombro, sem sua voz na minha orelha, sem a latinha tocando seus lábios e voltando pros meus. Já estou quase, o bar é na metade do quarteirão seguinte e a latinha ainda pesa. Decido fazer um U e chegar ao bar pelo outro lado. Mal não faz, andar pela cidade permite perder o cheiro de guardado que impregnava minhas roupas, meus sapatos, minha vida, desde que. Estranho isso de decidir sem ter com quem. Sozinha, ainda estou aprendendo a soletrar.
O coração acelerado deve ser dos metros a mais e não de estar parada na porta de armazém do nosso bar, decidindo onde sentar. Nossa mesa? Sim ou não, sim ou não, sim ou não antes que o João me reconheça e traga a cerveja ou pior, perguntas na bandeja sem que eu esteja bem apoiada e não precise das pernas pra me sustentar. Ainda não confio. A luz amarelada, o balcão encerado e o latão de gasolina de apoio, o piso de caquinho de cerâmica vermelha, as paredes meio desbotadas, os bonitos quadros em preto e branco, tudo parece tão o mesmo, até o blues que lamenta na caixa de som parece a mesma canção da última vez em que bebemos e conversamos e rimos alto e sua mão na minha coxa e beijamos e pagamos e dissemos até a próxima e não mais. Não é a nossa mesa, mas é na calçada. Aquela, da quina da porta, passagem do garçom, dá pra ver a rua, quem entra, quem sai, costas pra parede, a íntima piada de filha de mafioso que não se repetirá. Água de coco e uma cerveja? É a única pergunta que João me faz depois de me saudar com afeto. Seus olhos inquietos me contam que ele sabe. Se tudo não sei, mas o bastante. Não, não, dessa vez uma água de coco e uma caipirinha. Sem açúcar, o dobro do gelo. Por favor. E um prato de torresmo que não é porque estamos em transição que os melhores costumes vão se perder. Com meio limãozinho? Com meio limãozinho.
Não faço mais nada a não ser estar ali. Não tiro o livro da bolsa, não acendo o cigarro, não olho mensagens no celular. Sinto o duro da cadeira nas costas, o vento esfriando a pele, os ruídos da rua com seus bares abrindo e sendo ocupados, quase todo mundo chega a pé mesmo, vez ou outra uma manobra de carro buscando brechas entre os vários proibidos das placas. É proibido sonhar, diz a que se situa ao lado da minha mesa, mesmo que ninguém mais a decifre. Sinto principalmente o que precisava sentir: que você não está aqui. Nem suas piadas ruins, nem sua perna grande esbarrando na minha, nem seus dedos entrelaçados nos meus, nem os convites desajeitados pra dançar, nem as longas histórias de como descobriu aquele bar que era seu, que ficou nosso e agora trato de tornar meu, tomando um longo gole da caipirinha e mastigando resoluta o torresmo, o barulhinho ritmado é confortador.
Como é ser eu? Lembrar ou inventar? Outra caipirinha, eu bebo bem, isso eu ainda sei. Daqui a pouco, o mundo, eu sei. Sempre passa um conhecido por aqui. Alguém vai sentar. Vai pedir uma bebida. E outro. Talvez eu divida cervejas. E mesmo que todos pisem com cuidado, alguém vai dizer seu nome. E todos vão me olhar. Não é disso que tenho medo. Gravei um pen drive com só dizendo seu nome e escutei e repeti e escutei por dias e horas e tanto até o nome de todas as coisas serem o seu e o som do seu soar vazio. Não tenho medo. Antes de sair, liguei pra amiga do outro estado e pedi apenas: diz o nome dele. Ela disse. Baixo e alto e rápido e bem devagar e até cantou. Eu, olhando no espelho meu próprio e inexpressivo rosto. Não preciso ter medo. Mas. Quando a mesa ficar mais cheia e uma cadeira encostar na minha e o corpo sentir o calor de um corpo outro, e o cheiro de suor e cerveja e álcool nos hálitos, uma língua atravessar dentes e percorrer lábios meio displicente, quando uma voz for mais grave ou bem humorada, quando alguém perguntar se eu danço, quando eu disser que sim e meu peito reagir a outro peito que roça o meu e uma mão grande pousar no elástico da saia e uma respiração esquentar meu pescoço e uma coxa encontrar espaço entre as minhas, quem eu estarei desejando?
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Assisti Pequenos incêndios por toda parte e tenho alguns comentários iniciais:
- eu amo a língua portuguesa, mas o nome fica mais sonoro em inglês mesmo
- mais um trabalho impecável da Reese Witherspoon e que talento a menina Lexi Underwood
- eu realmente tenho pouca paciência pra adolescência
- tá tudo muito bom, bom, mas não curti a abordagem da adoção
- a série é vixe atrás de vixe, isso eu amei, amei de verdade
Tudo isso é menos importante que ver o Pacey de cueca. E um Pacey mais velho, como eu queria que ele fosse desde que ele, bem, não era. Mas já podia ser.
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Durante a semana eu estiquei a baladeira no Cais de Saudades e dancei forrozinho com um moço que é uma vontade, no À tarde fui nadar. Estando você lá no blog coletivo, aproveita também o passeio por Nárnia com a Rita Paschoalin e o convite a pensar concepções e comportamentos sobre a beleza com a Renata Lins e seu Pecado Original.
Nas madrugadas, recito, suavemente, a oração do AA. Serenidade. Coragem. Sabedoria. Para acolher o vazio que será. Para aceitar ser uma pessoa que também se despede em dor. Para pisar suavemente.