Newscoisa #07: Nordestes e outras miragens
E a asa branca
Tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre,
Mas alegre a natureza
Pois lá tem minha gente. Abraço que chega meio de lado. Sorriso que nem precisa de dente. Açude. Garrafa de feijão enchendo um quarto. Memória em hipérboles de deixar meu riso ainda mais solto. Carne torrada. Fogão a lenha. Jogo de baralho. Pé descalço. Anos que nem parecem ter sido mas foram muitos e difíceis. Cartão de aposentado pra um, 3 doses de cachaça por dia pra sustentar as pernas do outro que pega num pega os cem anos. Conversas. Apostas. Ausências. Leite da vaca – e se você faz a piadinha de que sempre é da vaca não sabe mesmo do que estou falando. Gema tão laranjinha que parece pintada com giz de cera. Galinha no terreiro, capote solto além da cerca. Uma pessoa que passa pra agradecer um favor antigo e toma um café. Uma buzinada na estrada pra saudar. Outro que compra fiado uma garrafa de vinho de 5 reais. Uma rede na varanda. Vento na varanda. A vida na varanda. Antena. Celular sem sinal. Cafuné. Caçar cabelo branco. Jerimum caboclo. Pizza, viva. Crianças. Casa nova. Concurso, moto, trabalho. Formaturas e orgulho. Azulejo. Onça, alma, adevogado, paquera, madrinha, festa de são Gonçalo, barca de noé (barca mesmo, nesta estória de tio-avô, não arca, que arca é pra qualquer teólogo). A arte de contar, se alguém pensa que já viu, se não for esta, foi muito pouco quase nada. Mãe Bia, Capazorelha, O Vó, Pai Sal, gente que já não está, mas é como se. "Manel, qué casar com uma santa?". Relógio de ouro. Rádio consertado com mel. Vaca que vaza. Parede que fala, boneca que dança ao som de palmas, calça rasgada num susto, bolsinha perdida e achada, "vestigar". Um passado dolorido, mas também bonito. Um presente bonito, mas também dolorido. Eu já fui. Fui? Lá chegando, já estava.
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E para todos os males, Belchior,
duas vezes ao dia. Sem moderação.
Eu brinco, sempre, o Nordeste é o meu país. E é daquelas piadas clichê, há fumaça e há, mesmo, fogo. Porque apesar dos amores tantos por Rios e Atenas e anos 20 em Paris e um monte de outras referências, quando aperta, é com Gonzaga e Belchior e Gil e em palavras de Patativa e violas de Amâncio que minha alma geme e é no sussurro de Mucuripes e pífanos e cantorias de Alceu que minha vista espicha além da dor.
É no deboche, na capacidade de rir da desgraça e de nós mesmos, na vaia pro sol, na história que engancha em outra, no “mais, menina” e no “entendeu” e no “vixe maria”, que eu me encontro e sossego.
Minha pátria minha língua e a minha é aquele cantado de resfolego da sanfona, tamborete, cangote, lundu, rebolar no mato, chegadinho – o de comer, xodó, chamego, furdunço, marmota, mungango, moleira, debulhar feijão, leite mugido, história de trancoso, esprangida, saliente e mungunzá salgado. Com milho e feijão e linguiça e sei lá mais tantas gostosuras de aprender com bisavós e avô e mãe e pai e tudo.
Meu povo é cor de barro, olhos estreitos do sol, rosto com arabescos do fácil sorrir. Tem coisa mais linda não que minha bisavó, a pele tão enrugada e marcada que não se podia saber que um dia foi jovem. A mim, sempre pareceu que ela nasceu assim: com a história do mundo desenhada no rosto. Eu nunca tive medo de envelhecer e sei que é, muito e tanto, por causa dela e dos meus tios-avôs, meu Nordeste fora do tempo. Que não morre, se encanta.
O meu Nordeste é um sem limite, sertão que tremula em sol e mar que se mistura com céu. É de valentia, desafiar na enxada o ocre sem águas ou o mundão de azul na estreita jangada, sem dia ou certeza de volta. É de ternuras, um aboio, uma ciranda, uma bênção. Uma excelência. Sabemos todos, como sabia Ednardo, que cantar parece com não morrer, é igual a não se esquecer que a vida é que tem razão.
Então, gente, eu ando cantando. Baixinho ou bradando desafinada. Vou pra varanda, pego sol e deixo-me cacto, espinho e insuspeita flor. Se escrevo coisas ácidas, é a maresia em mim. Se pareço inóspita, é meu craquelado de terra sem chuva. Não temam, minhas donzelas, minha sorte nessa guerra, jovenzinha eu estava num curta do Pavão Mysterioso. Pretendo sobrevivências.
É certo que não posso me visitar em Pedra Branca ou Canoa Quebrada, mas sempre tem um Antônio Nóbrega na agulha. Digo e garanto que tem pouca experiência mais complexa e emocionante que um espetáculo dele. Deixo uma musiquinha pra vocês (clica aqui ou na imagem).

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Aprendi a amar cantadores de viola com meu pai. Meu Nordeste também é litoral e lambe-lhe a areia um mar que é assim:
"O mar tem contraste muito curioso,
animais terríveis, ostra nacarada,
a água é salgada, o peixe é insosso,
a água não presta, o peixe é gostoso,
carrega a jangada, mas é perigoso,
dá vida a quem pesca, mas pode matar
não para o balanço, não sai do lugar,
seu banho refresca, seu vento resseca,
enche mas não sangra, vaza mas não seca
no doce balando das ondas do mar"
De tudo e tanto, a saudade do mar é das coisas que mais me consome. Hoje liguei pra casa e pedi pro meu pai lembrar esses versos. Foi como um mergulho. O rosto salgado, a alma limpa.
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eu estou lendo tudo, os otimistas, os pessimistas, os revoltados, os angustiados, os que apostam na resistência do cotidiano, os que convocam para grandes ações, os ponderados, os estrategistas, os analistas do ontem, os profetas do "e se", os projetistas dos amanhãs. estou semeando tudo em meu peito pra ver o que cria raiz. no momento eu não tenho nenhuma análise, nenhuma convicção, nenhum caminho. tenho apenas esta ternura acintosa, ruidosa, escandalosa pela vida.
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A alegria de poder desejar sem mas ou porém, sem além, sem amanhãs, sem medo do medo do outro, sem pisar em ovos (ups), sem pudor, sem precisar impressionar, sem explicar, sem promessa, sem disfarce, sem roupas. O respiro de poder escutar fotos, tocar textos, sentir o cheiro do outro nas canções sugeridas, anotar dança no caderninho da vontade.
Imagens borradas, claros anseios.
Declaração de interesses: vadiar no teu corpo uma noite inteira.
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E há vezes que se sente um frio por dentro que não há Nordeste que resolva.
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No De tarde fui nadar, estes dias a Renata escreveu uma Carta para Rita e eu falei sobre meu apreço pelas fotos dos amigos, no Velho Álbum de Retratos. Um pouco antes a Rita faxinou com Virginia Woolf (Vozes do Além) e a Fal trouxe Eugênia e um pôr-do-sol (Aqui, assim).
No Cais de Saudades eu ultrapassei os Cem dias e me revelei Quebradora do Correntes.