Newscoisa #100: In yum, escadas e um bocado de confissões fazendo de conta que é comentário de filme
Newscoisa #100: In yum, escadas e um bocado de confissões fazendo de conta que é comentário de filme
Acho que não tem spoiler do filme, gente.
Do filme.
Eu ia começar este texto procurando uma briguinha. Ia dizer que o filme Vidas Passadas é tudo que muita gente acha que a trilogia do amanhecer é – e mais ainda. Mas percebi, ao lembrar da delicadeza do filme, que isso iria contra o que Vidas Passadas me deu. Sigo então, o caminho outro, das confissões não solicitadas e não de todo verdadeiras ou esclarecedoras. Paciência.
Vou, então, começar dizendo que Vidas Passadas é um filme para amar e lembrar, também pela trilha sonora que mais do que acompanha a trajetória dos personagens, a define e conforma; pela fotografia que potencializa a sutileza do roteiro no uso que faz das figuras que constrói e na utilização da iluminação criando um clima ora melancólico, ora enternecedor e leve, pelo roteiro inteligente e potente, que faz bom uso de diálogos e silêncios. E a direção? Nada mais há a dizer além de: prestem atenção na escada. A escada me quebrou demais. Roteirizar e filmar as cenas das escadas, eu já daria um Oscar só pra isso. Vidas Passadas é uma história de amor e não evita clichês, porém, de forma elegante, os questiona, os reinventa, os subverte.
Plácido seria o termo que eu usaria para falar deste filme. É como a superfície de um açude sutilmente estremecida por lampejos de vento. Concomitante a esta beleza serena, um desconforto, uma inquietude, uma agonia (em cearensês). Agridoce eu também poderia ter usado para adjetivar, sem me afastar da verdade. Não é um filme sobre dúvida, sobre uma mulher dividida entre dois amores ou mesmo duas vidas e identidades, embora a sinopse possa dar a entender – sem malícia ou oportunismo, apenas porque a descrição do que acontece é tão insuficiente ante o que se sente diante do que acontece. É bem mais sobre (re)inventar-se e o que se deixa pra trás ou se carrega além, neste processo. E sobre o processo fragmentário na subjetividade, incrementado por imigrações. Como Nora diz ao marido, sobre o reencontro com o amigo de infância, ela não se sente tão coreana quando está com ele, Hae Sung (porque sua formação, sua trajetória, experiências e valores foram construídos mesclados a outra cultura?) mas, também, com Hae Sung ela se sente mais coreana do que vinha se sentindo (porque com ele ela resgata a infância coreana, as primeiras vivências, os padrões aprendidos, acessa as lembranças e tudo que era ela?).
Quem somos com o outro? E quem somos para o outro? E como esse quem somos se aproxima ou se distancia de quem pretendemos ser? Mais do que encontrar ou reencontrar um Outro, o filme Vidas Passadas apresenta, acho, o (re) encontro de Nora com ela mesma e a afirmação de seus sonhos, projetos, desejos.
A história contada no filme é simples, em três momentos bem delimitados.Depois de um certo prólogo, temos a infância dos personagens: Nora (ainda Na Young) e Hae Sung, na Coréia, em um período em que tirar a primeira ou segunda melhor nota em matemática é um acontecimento que pode levar ao choro (misturado, talvez, com o incômodo saber sobre uma despedida que se aproxima) e que a descoberta de sentimentos transformando o colega de escola em alguém especial é cortada pela decisão da família de Nora de imigrar para o Canadá. Para imigrar, Na Young tem que escolher outro nome (outra identidade? outra rotina? outra vida?) e, em determinado momento, ela diz que não gosta de nenhum nome em inglês. É então que o pai propõe Leonore, tendo por apelido Nora. Apesar de repudiar a "nova vida" ao relutar na escolha de um nome outro, quando perguntada sobre como se sente sobre imigrar, Nora diz que vai porque quer. E porque ela quer ir embora? Porque, diz tranquila, “sul-coreanos não ganham Prêmio Nobel de Literatura”, uma aspiração - algo ingênua, mas com um discernimento crítico admirável - indicativa de que Nora tem propósitos e ambições e que nos aponta, de certa forma, a jovem e a mulher que a seguir acompanharemos.
O segundo momento vem passados 12 anos. Vemos como Nora migrou com a família para Toronto e, depois, sozinha, para Nova York. Jovem, trabalhando com o que gosta (a escrita), mirando, então, no Pulitzer. Em uma inquietude nostálgica, ela acha Hae Sung (que a procurava) pelo facebook e enredam-se, os dois, em uma troca virtual que fica no limite entre amizade, flerte, namoro, uma relação profunda e intensa e, ao mesmo tempo, sem estrutura ou perspectiva. Eles fazem contas de quando poderão se encontrar e o tempo mínimo parece ser dois anos. Tempo demais para Nora, que decide cortar o vínculo que pode vir a distraí-la dos propósitos e levar a decisões que a tirem do rumo que almeja. Nem sei comentar o quanto esse trecho do filme é suave e, ao mesmo tempo avassalador. Novamente as coisas materiais e cotidianas se revelam decisivas para a configuração dos afetos. Não, não basta o querer bem. Tem que caber no bolso, na agenda e ornar com as prioridades e aspirações.
Nora e Hae Sung voltam a se encontrar 12 anos depois, quando ele, finalmente, viaja para os EUA. A Nora que o recebe e o leva por pontos turísticos é uma mulher que avançou na carreira, casou, mudou de bairro e isso de muitas formas, a afasta de Hae Sung mas, de forma inteligentemente desenvolvida no filme, também os aproxima porque o necessário para Nora ser quem é, foi o que sempre cativou Hae Sung, desde que Nora era Na Young. É gostoso ver o reencontro dos dois, a falta de jeito nos abraços iniciais e, nesta mesma falta de jeito, uma sintonia, um certo conforto. Como se eles fossem feitos um para o outro. Como se.
Os protagonistas são encantadores, profundos, autênticos e bem desenvolvidos ante uma câmera íntima, mas não voyeurista, que nos permite acompanhar a sensível construção e reconstrução dos laços e da comunicação entre os dois personagens. É o que é dito (e que diálogos bem escritos!) mas também o que se comunica nos silêncios, nos toques, nos sorrisos, nos olhares e em um certo espanto de encontrar o outro ali, onde se espera mesmo que ele esteja. Como quando eram crianças, Nora chorava com frequência e Hae Sung simplesmente ficava ao seu lado.
Escrito com menos talento ou representado com menos delicadeza e humor, a outra ponta do triângulo, o marido de Nora, seria apenas o incômodo de uma pontada que esse vértice nos causaria. Mas não. Cativante é o que penso ao pensar em Arthur. E vulnerável. Gente boa, educado, doce e morrendo de medo de ficar sozinho de Nora, é como o percebemos nos poucos dias que Hae Sung está na cidade. Arthur sempre reconheceu (como eu sei? Ele diz, não com essas palavras, mas nesse sentido) que havia algo em Nora que ele nunca poderia acessar. Ele supõe que é algo codificado pela origem estrangeira de Nora: “você sonha em coreano” - e é, mas não é só, há algo em todos que é inacessível ao dito e, por isso, ao outro, algo que escapa. Ele está certo ao reconhecer que a intimidade de partilhar uma língua (não apenas em seu aspecto formal, mas uma língua cheia de memória, de afetos, de sabores, de cheiros) é sedutor. E uma língua assim, desenvolvida na infância, quase antes daquelas palavras incompreendidas apresentadas pelo Kundera, ainda mais. A presença de Hang Sue na cidade, a sintonia que Hang Sue e Nora demonstram ao conversar, as memórias que compartilham, os passados que não viveram e os futuros que poderiam tecer a partir das afinidades culturais e momentos partilhados, tudo isso potencializa as inseguranças de Arthur e o assombram, mas sem o fazerem atravessar a linha do respeito e gentileza. São três personagens complexos, não perfeitos ou romantizáveis, em relações adultas, relações que oferecem momentos de felicidade e encontro, mas também demandam decisões difíceis.
O amor, como a vida, não é plano, nem linear. E, muito menos, excludente. Somos o que a vida nos faz e o que fazemos da vida. E somos, também, forjados pelos nossos afetos e pelos destinos que damos a eles.É com isso que Nora tem que lidar. E lida.
Destino é uma palavra importante, nesta história. Nora nos apresenta à In Yum, que é, pelo que entendi, uma manifestação do destino meio circular. Se interagimos com alguém nesta vida, é porque já interagimos em vidas passadas. E, ao interagir com alguém nesta vida, o destino vai nos levar a encontrá-la na vida futura. In Yum não só é o inevitável, é uma nuance do destino que desvenda essa conexão aparentemente inexplicável que sentimos por ou com alguém. Um vínculo profundo que indica que as almas já se cruzaram, se relacionaram, se tocaram em vidas que já não são. Um vínculo profundo que não garante absolutamente nada na vida que é. Esta segunda parte é a “sabedoria” que precisamos (que eu preciso) construir.
Aquele safanão gostoso vem quando Hae Sung diz que Nora é uma pessoa que parte. Que vai embora. Isso é mais do que o que ela faz. É o que ela é, pra ele. E isso é parte importante do que o cativa. Mas ele não a cristaliza nesta posição de quem vai embora. Ele acrescenta: para Arthur, ela é uma pessoa que fica.
Quando escolhemos, perdemos. Abrimos mão de tudo que não vai ser. Muitas vezes eu fico fixada nisso. Não quero largar. Difícil deixar ir. Mas quando se deixa alguma coisa pra trás, se ganha algo, concomitantemente – é o que diz a mãe de Nora. E é dolorido reconhecer que o que se tem é uma espécie de “só isso” porque não é mais isto nem aquilo outro. Mas é também bonito saber exatamente quem se é, como se fez e o que se quer. Nora escolhe. Não entre dois homens. Não entre duas culturas. Nem mesmo entre dois países ou duas identidades. Nora se escolhe. Sempre.
Semana sim, semana não o meu analista me interrompe – ou mesmo termina a sessão – quando eu digo “as lucianas”. O filme Vidas Passadas me deu este tapão no ouvido. Não tem várias lucianas. Nem em vidas não vividas, nem várias lucianas no passado desta que sou. Tem a que ficou, a que é, com as escolhas que fez. O que posso fazer com isso é me reconciliar com quem estou e me despedir, não sem dor, com um abraço e soluços, das ideias de vidas que não existiram, de caminhos decorrentes de escolhas que não foram feitas, oportunidades que não foram aproveitadas, relacionamentos que não foram vividos.
Sempre muito elegante e sutil, a diretora não coloca, na legenda, 12 anos depois. Ela coloca: 12 anos passaram. As vidas passadas que atravessam o filme, fiquei matutando, não são apenas as outras reencarnações dos personagens, mas a vida pela qual eles passaram e que passou por eles e pra eles. Não apenas os “e ses” acumulados mas, principalmente, o que efetivamente se passou. A beleza está em poder sorrir pra essas vidas que não serão, abraçar os lampejos da vida que foi e seguir, do jeito que der, na vida que se espera que venha a ser, encontrar a escada concernente e nela subir.