Newscoisa #15: Colcha de retalhos
Newscoisa #15: Colcha de retalhos
“Young lovers seek perfection.
Old lovers learn the art of sewing spreads together
and of seeing beauty
in the multiplicity of patches.”
Eu não tenho habilidades. Não sei desenhar, assoviar, pintar, piscar, bordar, cultivar plantas, estalar os dedos. A lista das coisas que não sei comporia, só ela, muitas e muitas newscoisas. Não saber escrever sobre o que leio, por exemplo, me faz imensa falta. Se eu soubesse, contaria para vocês que só agora li “alguma coisa urgentemente” de João Gilberto Noll (talvez até arrumasse um jeito elegante de dizer que li o livro inteiro, “o cego e a dançarina”, mas que queria tratar mesmo era deste conto específico). Diria um assim: leiam comigo. E mais: levem band-aids e água oxigenada e um abanador e trinquem os dentes, vai doer um pouco. Poderia ser gentil e mentir: depois passa. Contaria para vocês de um adolescente, antes menino, e seu pai, depois ausência. Trataria da sua solidão e vulnerabilidade. Sua, do menino, mas também a de quem lê. E do pai. Diria que se a comunicação é uma quase impossibilidade em tempos “comuns”, a imposição do silêncio na ditadura empresta a essa relação uma fragilidade ímpar. Falaria de ecos e uma orfandade repetida, reencenada, ressignificada. Desamparo. Acrescentaria, talvez, algo sobre a dificuldade de agir quando não podemos dizer (nos) e/ou quando algo não nos foi dito. Suspeitaria que é difícil seguir quando não se sabe de onde se vem ou como e partilharia isso com frases bem construídas. Terminaria dizendo que, caso lhes agradasse a leitura, seguissem para Miguel, Miguel, não tens abelhas e vendes mel, dali, também, há muito o que se dizer.
Mas eu não sei. O que eu sei é que essa semana muitas coisas me comoveram de formas variadas. E apesar de não saber costurar (outro item para a lista), trago a imagem de uma colcha de retalhos ao montar a newscoisa de hoje. Cada fragmento carrega memória, é uma história completa, um inteiro sentir. E, ainda assim, tudo em aberto. Uma colcha de retalhos realmente bonita tem uma harmonia insuspeita. Espero ter me aproximado de alguma forma. Torço que vocês apreciem os pontos de encontro que vislumbrei entre esses pedacinhos coloridos.
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A leveza. A força. A beleza. (aperte aqui ou na imagem convite)

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E tem esse conto do autor israelense Etgar Keret, Escrita Criativa (tem no livro "De repente, uma batida na porta")
ESCRITA CRIATIVA
"O primeiro conto que Maya escreveu foi sobre um mundo em que as pessoas se dividem em duas, em vez de se reproduzir. Nesse mundo, cada pessoa pode, a qualquer momento, se transformar em dois seres, cada um com metade de sua idade. Há quem escolha fazer isso quando jovem, mulheres de dezoito anos dividem-se em duas meninas de nove. Outros esperam até se estabelecer profissional e financeiramente, e fazem isto apenas na meia idade. A heroína do conto de Maya era alguém indivisível, que já tinha passado dos oitenta e, apesar de todas as pressões sociais, insistia em não se dividir. No final do conto, ela morre. Era um conto bom, exceto pelo final. Havia algo de deprimente, deprimente e previsível. Mas, no workshop elogiaram bastante este final. O professor da oficina, que devia ser um escritor conhecido ou algo assim, embora Aviad nunca tivesse ouvido falar dele, disse-lhe que “na banalidade do final há algo perscrutador”, ou qualquer outra bobagem do gênero. Aviad viu quanto este elogio a fez feliz. Ela estava realmente muito emocionada quando lhe contou a respeito, citando a frase do escritor como se recita um versículo da Bíblia. E Aviad, que no início tinha tentado sugerir algo em relação ao final, recuou imediatamente e disse que era tudo uma questão de gosto e que ele realmente não entendia muito daquilo. Tinha sido ideia da mãe que ela fosse para uma oficina de escrita criativa. Ela contou que a filha de amigos tinha participado de uma no ano anterior e gostado muito. Aviad também sentiu que seria bom para Maya sair mais de casa, fazer alguma coisa para si mesma. Ele podia enterrar-se no trabalho, sempre havia algo que precisava resolver. Mas ela, desde o aborto, ficou presa em casa. Sempre que ele chegava, encontrava-a na sala, sentada assim, ereta. Não lia, não assistia à TV, nem sequer chorava. Quando Maya hesitou sobre o curso, Aviad soube como convencê-la. “Vá uma vez para experimentar”, disse ele, “assim como uma criança vai para a colônia de férias.” Mais tarde percebeu que tinha sido um pouco insensível usar uma criança como exemplo, depois de tudo o que eles tinham passado dois meses antes. Mas Maya até sorriu com este exemplo, e disse que cairia bem agora uma colônia de férias. O segundo conto que ela escreveu foi sobre um mundo em que as pessoas podem ver apenas aqueles a quem amam. O protagonista era um homem casado e apaixonado pela esposa. Certo dia, a esposa esbarrou nele no corredor, e o copo que ele segurava caiu e se espatifou no chão. Poucos dias depois, ela se sentou sobre o marido, que cochilava em uma poltrona. Nas duas ocasiões, ela se saiu com uma desculpa: estava justamente pensando em outra coisa, não estava olhando quando se sentou. Mas o marido começou a suspeitar que o amor dela por ele tinha acabado. Para testar esta teoria, ele decidiu fazer algo drástico: raspar o lado esquerdo do bigode. Ele chegou em casa com meio bigode, segurando um buquê de anêmonas. A esposa agradeceu-lhe as flores e sorriu. Ele percebeu como ela tateava o ar para lhe dar um beijo. Maya chamou esta história de “Meio Bigode”, e disse a Aviad que, ao lê-la em voz alta na oficina, algumas pessoas tinham chorado. Aviad sorriu para ela e disse: “Minha talentosa”, e beijou-a na testa. Naquela mesma noite, eles brigaram por alguma bobagem. Ela esquecera de repassar uma mensagem ou algo assim, e ele gritou com ela. Ele fora o culpado e, no final, se desculpou. “Eu tive um dia infernal no trabalho”, disse, acariciando a perna dela em uma tentativa de fazer as pazes. “Você me perdoa?” Ela o perdoou. O professor de escrita criativa havia publicado um romance e uma coleção de contos. Nenhum foi um grande sucesso, mas tiveram algumas boas críticas. Foi o que a vendedora de uma livraria próxima ao escritório dele disse a Aviad. O romance era muito grosso, 624 páginas. Aviad comprou o livro de contos. Deixou-o na sua mesa e o leu nos intervalos de almoço. Todos os contos da coletânea se passavam no exterior, cada um em um país diferente. Era uma espécie de chamariz. A sinopse na contracapa dizia que o escritor tinha trabalhado durante anos como guia turístico e viajado muito pelo mundo. Havia ali também uma pequena fotografia em preto e branco do autor. Ele tinha o tipo de sorriso presunçoso de alguém que se sente sortudo por ser quem é. O escritor tinha dito a Maya, ela contou para Aviad, que, quando o curso da oficina acabasse, ele iria enviar as histórias dela para o seu editor. E que, embora ela não devesse ter muitas esperanças, nos últimos anos as editoras estavam procurando desesperadamente novos talentos. Sua terceira história até que começava engraçada. Era sobre uma mulher grávida que dá à luz um gato. O herói da história era o marido, que suspeitava que o gato não fosse dele. Na tampa da caçamba de lixo, bem em frente ao dormitório do casal, sempre cochilava um gato gordo ruivo que lançava olhares depreciativos ao marido cada vez que ele descia para jogar o lixo fora. No final, houve um choque violento entre o marido e o gato. O marido jogou uma pedra no gato, que contra-atacou com mordidas e arranhões. Na fila de vacinação contra tétano aguardavam, junto com o marido ferido, a esposa e o gatinho que ainda era amamentado. O marido estava com dores e humilhado, mas esforçou-se para não chorar. O filhote, sentindo o seu sofrimento, soltou-se do abraço da mãe, foi até ele, lambeu seu rosto com ternura e soltou um miau consolador. – Você ouviu isso? – perguntou a mãe emocionada. – Ele disse “papai”. Naquele momento, o marido já não conseguia conter as lágrimas, e Aviad, quando leu essa passagem, teve que se esforçar para não chorar junto. Maya disse que tinha começado a escrever o conto antes mesmo de saber que estava grávida. “Que engraçado”, admirou-se, “o meu cérebro ainda não sabia, mas meu subconsciente, sim.” Na terça-feira seguinte, quando Aviad deveria buscá-la no curso, chegou meia hora mais cedo, deixou o carro no estacionamento e foi procurá-la na sala de aula. Maya ficou surpresa ao vê-lo ali, e ele insistiu que ela o apresentasse ao escritor. O escritor cheirava a perfume. Ele apertou frouxamente a mão de Aviad e disse-lhe que, se Maya o tinha escolhido para marido, ele devia ser uma pessoa muito especial. Três semanas depois, Aviad inscreveu-se em um curso de escrita criativa para principiantes. Ele não contou nada a Maya, e, para maior segurança, instruiu sua secretária a dizer, se alguém ligasse de sua casa, que ele estava em uma reunião importante e não poderia ser incomodado. Além dele, havia na classe somente mulheres idosas, que lhe lançavam olhares maldosos. A professora era uma mulher jovem e magra de lenço na cabeça, e as mulheres na sala fofocavam a seu respeito dizendo que ela morava em um assentamento nos territórios ocupados e que tinha câncer. Ela pediu que todos fizessem um exercício de escrita automática. “Escrevam tudo o que lhes vem à cabeça”, disse. “Não pensem, apenas escrevam.” Aviad tentou parar de pensar. Foi muito difícil. As mulheres mais velhas ao seu redor escreveram em ritmo frenético, como alunas que tentam terminar uma prova antes que o professor lhes diga para largar as canetas, e depois de alguns minutos ele também começou a escrever. O conto que escreveu foi sobre um peixe que, certa vez, nadava alegremente no mar, quando uma bruxa malvada o transformou em um homem. O peixe não aceitou a sentença cruel e decidiu perseguir a bruxa malvada e obrigá-la a transformá-lo novamente em peixe. Como ele era um peixe especialmente rápido e empreendedor, conseguiu se casar enquanto a perseguia, e até mesmo criar uma pequena empresa de importação de produtos plásticos do Extremo Oriente. Com a ajuda do seu enorme conhecimento como peixe que havia cruzado os sete mares, a empresa começou a prosperar e até mesmo a ter ações negociadas na Bolsa. Enquanto isso, a bruxa malvada, que estava um pouco cansada depois de todos os seus anos de maldade, decidiu reencontrar todas as pessoas e criaturas que tinha enfeitiçado, pedir-lhes desculpas e restituir-lhes o seu estado natural. Em determinado momento, ela chegou ao peixe que tinha transformado em homem. A secretária do peixe pediu-lhe para esperar até que ele terminasse uma videoconferência internacional com seus sócios em Taiwan. Nessa fase de sua vida, o peixe mal se lembrava de que era de fato um peixe, e sua empresa agora controlava um pouco mais do que metade do mundo. A bruxa esperou várias horas, mas, quando viu que a reunião não iria acabar tão cedo, subiu na sua vassoura e voou para longe. O peixe continuou a progredir cada vez mais e principalmente a ficar muito ocupado, até que certo dia, quando já estava muito velho, olhou para fora da janela de uma das dezenas de enormes edifícios que comprara em um negócio imobiliário inteligente na faixa litorânea, e viu o mar. De repente, lembrou que era um peixe. Um peixe muito rico que controlava dezenas de empresas subsidiárias negociadas em mercados de ações ao redor do mundo, mas ainda assim, um peixe. Um peixe que, por anos, não tinha provado o sal do mar. Quando a professora viu que Aviad tinha largado a caneta, ela lançou-lhe um olhar indagador. “Eu não tenho um final”, ele sussurrou em tom de desculpa, mantendo a voz baixa, de modo a não perturbar as velhas senhoras que ainda estavam escrevendo."
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Se você não sabe, sou uma das cinco pessoas adultas no mundo que sustentam que curtem o Pequeno Príncipe (o próprio, o livro). De todos os personagens, talvez com quem eu tenha demorado mais a me entender foi com a rosa. Eu confundia vulnerabilidade com artificialidade (crescer tendo o amor como uma certeza faz destas coisas). Hoje, tenho uma rosa, lá num longe que nem sei onde é. Que me chega pelos olhos alheios, gentis o bastante para saber que me é cara. Na frente de casa, também em vermelhos, a rosa do deserto que é o meu coração. Campo minado.

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O que há para ser dito, pode ser dito só assim: "quando amor chegar diga 'entre. fique confortável'. Se o amor sair, peça-lhe para deixar a porta aberta" (assiste aqui que é lindinho)
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Palavras que me colocam sorriso nos olhos: alinhavar, apetecer, espinafrar.
Palavras que eu podia passar uns bons meses sem ler nem ouvir: romantizar, performar, desconstruir.
Dúvida de fim de feira: Dânae, Ismália, Rapunzel, Bela Adormecida... e quando estamos presas na torre, o que vislumbramos? Um príncipe agarrado aos nossos cabelos, um deus que nos invade feito chuva de ouro, ou o caminho sou eu quem faço, lua no céu, no mar e o salto para o desconhecido? A única alternativa é não ter alternativas?
Eu não sei falar sobre o que leio, mas a Rita sabe. Essa semana ela falou sobre o que está lendo e, até, ouvindo, no nosso À tarde fui nadar: "as histórias que ouço pela casa".