Newscoisa #19: Antigos Carnavais e outros feriados
Newscoisa #19: Antigos Carnavais e outros feriados
"Eu não sou difícil de ler
Faça sua parte (...)
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular"
Ela bordava lentamente. A agulha demorava a atravessar o tecido e indecisamente seguia para o próximo ponto. Alguém desavisado podia pensar que isso acontecia porque seus dedos enrijecidos pela idade tinham dificuldade de executar os movimentos com precisão e agilidade. E o observador não estaria errado. Mas a maior razão para o trabalho parecer tão amador é porque era isso exatamente o que ele era. Durante a vida ela nunca tinha cogitado, desejado ou tentado aprender nenhuma dessas atividades que, depreciativamente ela pensava, exigiam habilidades manuais. Deu mais um leve impulso para a cadeira balançar e sorriu com a ironia da situação. Tinha se tornado uma entusiasta. Comprara o necessário naquele mega conglomerado que, pela internet, vendia livro, celular, panelas e sabe-se lá quantas coisas mais. Inclusive agulha, linha e um bastidor. E fora seguindo aulinhas em vídeos e podcasts do mais básico até, bom, até o básico mesmo, porque ainda estava tateando. O mesmo observador desavisado, mesmo atento e minucioso no exame, provavelmente não reconheceria nada no trabalho que ela segurava tão carinhosamente – ou quase nada. Mas ela sabia direitinho o que bordava. Não dá pra ver? Confete e serpentina.
O que era memória, o que era imaginação, o que era a idade enlinhando uma na outra, ela já não se importava. Bordava um carnaval e aquele encontro. Encontros de meninice, definitivos. Experimentar encantos em infâncias teve um sabor de absoluto, ainda não tinha aprendido nuance, contemporização e ponderação. Ainda não provara precaução e receio. Ainda não se esquivava, protelava, avaliava. Ainda não pensava se devia, se podia, se não era demais. Ainda não tinha aprendido que ela era sim, demais, e colocava o carro na frente dos bois, ao lado dos bois, em cima dos bois, atropelando os bois.
Foi bem no meio de uma careta. Os dedos enfiados na boca, esticando o sorriso, exibindo dentes branquinhos, alinhados, os dentes de osso quase zerados, dentes de saudáveis dez anos. Ela exibia a careta quando o menino saiu correndo daquela casa, a casa cheia, cheinha de gente, a casa que tinha luzes acesas durante toda a madrugada e de onde vinham risos que competiam com o seu e dos seus. Um pirata com uma bola de futebol. Ela bordava o movimento do menino. Sua chegada em espantos. Bordava as bochechas arredondadas e os olhos que já se queriam tristes antes de qualquer sofrer. Não, não tristes - ela suspende o trabalho da agulha e fica lembrando o mergulho naquele olhar que a olhava – nostálgicos. Ele tinha olhos que iriam suspirar. Mas não naquele dia. Ou naquela hora. Naquele instante ele atravessou o grupo de crianças e, de frente pra sua careta, perguntou se ela não queria brincar. E ela queria. Bordava também, imprecisamente, seu próprio maiô branco, seu shortinho de listas azuis, seu cabelo escuro, grosso e curto e sua curiosidade. Brincaram de se saber.
Ela estava velha, com cabelo ralo e acinzentado, há muito não usava shorts e comedia sua curiosidade. Mas sabia o cantinho em que ainda era aquela menina e que aquele encontro, aquele menino, aquele sentir, ainda moravam nela. Mesmo quando ela foi se tornando área superpopulosa, afetos vários, moços, filhos, netos, vizinhos, amigos e um monte de outros carnavais, ele permaneceu, naquele jeito que ele tinha de ser tão terna presença ao sentar ao seu lado, cantar os samba-enredos, segurar sua mão, contar fragmentos do passeio à lagoa, explicar com ar sábio coisas que nem entendia direito de terreiros, carnavais, tios, madrugadas, que não, ele não estava vestido de pirata, ele era o Simbad. E ele permaneceu, ainda mais, naquela forma de sua ausência ter uma existência sólida, quando ele ouvia um chamado e corria pra dentro da casa sem nunca se despedir, como se seu ir e vir fosse uma certeza que ela compartilhasse.
Repousa o bastidor no colo enquanto se estica, devagar, para pegar a garrafinha de água – com o ridículo, mas necessário canudo – que espera na mesinha ao lado, junto ao celular com botão de emergência. Apesar do cuidado e do canudo, sente uma gota da água escorregando entre seus lábios frouxos, contorcendo-se na inclinação do queixo e pingando, com excelente mira, no centro do trabalho. Em um desses imprevisíveis deslizamentos do lembrar, ela cantarola o samba-enredo do ano: “cada gota de suor (que cai) é um pingo de felicidade”. Não o samba-enredo vencedor, o samba-enredo dele. Império Serrano. Com aquela voz que dava compasso ao seu acelerado coração, ele insistia no prognóstico: é essa a escola que vai ser campeã. Não foi. Como não foram os tantos outros planos que ele insinuou. Um futuro. Casamento, Filhos. Ela ri, no hoje, solta, como não sabia – ainda – rir no tempo do encontro. Foi a partir daí que ela deixou uma parte do coração viver de samba?
Tinha o cabelo macio, ela recorda ou inventa, o menino do vir e ir. Seus dedos acariciam o bordado no arremedo daquele carinho que ela ofereceu, como quem ensina: não é isso, um cafuné. E mergulhou os dedos entre os fios, e massageou o couro cabeludo e enredou um deles nos pelinhos da nuca e voltou de palma aberta pro topo da cabeça e fez movimentos suaves e firmes. Não é assim – e se demorou na carícia. Cafuné é com o dedão, em ritmadas batidinhas. Ele, que fechara os olhos quando ela lhe tocara o cabelo, abre-os num susto quando ela se inclina pra fazer o gesto do cafuné do outro lado da cabeça e, nariz com nariz, eles respiram o anseio do outro de que se faça o que eles não sabem que um dia desejarão.
Ela queria poder bordar aquele ar quente que escapuliu dos lábios dele. Ou a textura do cabelo. A promessa do que viria a ser aquela voz. Ela envelheceu. Espera que ele também. Borda como quem reza e em cada ponto faz a prece de que ele tenha os filhos e os netos e os sambas que pretendia. Que ele tenha aprendido não só a reconhecer a alegria que precisava, mas acolher sem medo essa vontade e ali se deixar ficar. Porque naquele carnaval ele foi, na sua corrida um pouco torta de pernas de lateral direito, como quem volta num já. Mas ela, também chamada, não estaria mais nesse quando. Eles descobriram, ali, os impossíveis da infância. E ficaram com a solidão de não ter nem o outro nem uma despedida. Foi o ano em que nasceu a saudade.
Ela bordava, também, seu segredo melancólico: por muito, muito tempo, ela acreditou que em 2001, quem sabe, um esbarrão na rua, um amigo em comum apresentando, a mesma sala num mesmo emprego, uma viagem espacial? Ela cultivava o samba vencedor como uma profecia. Mas chegou o ano, o carnaval, a vida com suas belezas todas – mas não, não chegou o ziriguidum.
*****************
É tão bonito isso, sabe: aprender a te querer bem.
Palavras que fazem sorrir: elefante, escorrega, costurar.
Sabe o que dizem sobre o isolamento na infinitena: boca vazia, oficina do cigarro
"Além disso, Mathilde é uma otimista.
Tem para si que, se aquele fio não a levar ao seu amante,
paciência, não importa, ela ainda pode se enforcar com ele"

**************
Hoje é aniversário de namoro dos meus pais. 52 anos juntos. Eles que ligaram pra me contar, sabem que gosto desses fuxicos. Antes desse dia, eles já vinham se olhando (minha mãe espiava pela brecha da porta quando meu pai ia e voltava do trabalho; ele podia fazer outro caminho, mas preferia passava bem em frente à casa onde ela morava). Os amigos vinham alcovitando, aí foi marcada esse piquenique na praia. Aproveitar o feriado. E o primeiro beijo foi num: vamos ali, nas pedras, olhar o mar. E olharam o além e olharam um pro outro e nunca mais deixaram de ver um ao outro no seu próprio horizonte. Depois fecharam os olhos e se viram num roçar leve de lábios com gosto de futuro. Acabado o piquenique, eles ainda esticaram pro cinema. Pro dia não terminar. Não sabiam nem que filme estava passando (e descobriram, já dentro da sala, que era um documentário cheio de pessoas peladas). Uma das coisas que mais gosto nesta história: minha mãe que deu o dinheiro pra amiga comprar o ingresso dela e do meu pai, porque ficou sabendo que ele estava na liseira. Não é o tanto de horas, dias e anos que me comove na história deles, mas como eles viveram esse tempo.
*****************
No De tarde fui nadar, a Renata Lins fez um texto lindo sobre a amiga Do outro lado da rua. E só pro caso de você ter perdido nosso futuro de vista, deixei E na hora do enlace lá no Cais de Saudades.
***********
Continuo curtindo todos os comentários, viu? Dos emojis aos textos com muitas palavrinhas. Obrigada por resgatarem as garrafinhas do mar.