Newscoisa #24: Perto de muita água
Newscoisa #24: Perto de muita água
Perto de muita água tudo é feliz. Já repeti o mantra tantas vezes. Eu sou. Ou o mais perto da felicidade a que se pode chegar. Em qualquer lugar que haja mar, me reconheço. Mas há aquele cantinho que é mais meu. Onde, ao entrar, o sei bem dentro de mim, como se ele, que me embala, fosse meu próprio abraço. O sal corrói o canto da boca, por isso o riso, talvez. A água avança e recua sobre o peito e por isso os espaços vazios. O mar é cemitério da dor.
Porque tem dia, tem hora, tem dor, que pede um peito maior. Um cigarro pela metade. Um pouco de silêncio. Uma bebida gelada. Algum azul.
A gente teima em sobreviver. E ainda sorri. A gente, já se sabe, sou eu. E ela.

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Acordo cedo, desço a escadinha (inha é jeito de dizer) lateral, vou pisando, leve, a areia, para despertar o mundo com delicadeza. Me aproximo do mar como quem aceita o convite pra primeira dança. A mistura de sol, sal e úmido vai lambendo perna, quadril, peito até chamejar olhos e sonhos. Deixo o mar lavar os cantos vazios cá dentro. Ardem cortes, arde a alma. Nuvens brincam de esconder-esconder o sol. Sento na areia, fico escutando os fragmentos de histórias que me trazem as ondas. A essa hora, o mar é amigável, tenta o contato, lambe delicadamente meus pés. Cantarolo, desafinada, quando o mar tem mais segredo é quando é calmaria. O mundo se intensifica, passa pertinho o senhor que toda manhã passeia com o dálmata. Chegam e partem duas senhorinhas de biquíni combinando. Ao meu redor, moços sozinhos, casais de mãos dadas, uma criança correndo na frente dos adultos sorridentes. Quando o garçom da barraca vizinha começa a lavar as cadeiras e montar as mesas, é hora de subir para o café. Antes, outro mergulho. Enquanto a onda me encobre, faço promessa: eu volto. Resisto a recolher mais conchinhas e subo a escada. Frutas, suco, pão de queijo, tapioca, ovo mexido, café, café, café, leite. A família espanhola já está por ali, com seu sotaque bonito, suas peles bronzeadas e seu menino pequeno tão simpático, uns três ou quatro carinhosos anos (já devem andar por aqui há um certo tempo, já fizeram passeios de buggy, conhecem as praias vizinhas e cumprimentam os ambulantes pelo nome). Mastigo devagar, beberico a segunda ou terceira xícara de café e deixo o pensamento pendular entre nada e coisa nenhuma. Tenho pequenos insights, chegam frases já arredondadas, bons motes pra escrita. Quase anoto. Quase. Chegaram oferecidas, partem ofendidas, quase nenhuma retornará. Pego o kindle, renovo o protetor solar, volto pra praia, agora embaixo de chapéu e guarda-sol. Água de coco e caipirinha e mergulho e páginas do livro. Repete. Não necessariamente nessa ordem. O corpo vai ficando molinho. Passa hora, passa outra. O mar já não sussurra, bem acordado, conta alto as belezas de margens diversas. O sol queima mapas de tesouro e aventuras na espuma que se deixa apreciar um instante e logo se entranha na areia. Volto pro quarto, banho demorado, lavar cabelos e deixar escorrer essa vontade do que não foi. Longos goles de água, quase como quem se afoga na própria sede. Livro e cochilo na rede na varandinha. Antes ou depois do sono, as frutas no frigobar, ata, banana, tangerina. Preguiça. Fim de tarde? O mar chama. Ele, que, aliás, é outro. Ou eu quem sou. Já não é preciso tanta proteção nem chapéu nem a pisada leve. Fico por ali, de mãos dadas com o João. É quando se ouve mais forte o ronco das ondas na beira do mar... São outros os passantes: o moço da tatuagem de hena, as adolescentes e suas saídas de banho coloridas e suas conversas altas e seus tererês divertidos, o vendedor com seu jegue-bar, mais famílias, mais casais, os guias negociando passeios de buggy pro dia seguinte. O mar se avermelha na linha do horizonte e eu rezo que o sentir esfrie em meu peito como geladas ficam as águas quando o sol vai sumindo. Aí lembro que não sei rezar. E dou uma risada que quase me lembra o todo que sou. Fico por ali, sentindo o vento me assanhar o cabelo e embaralhar planos, até começarem a desmontar as barracas. Subir a ladeira pra procurar o lugar certo de ver o dia acabar. Depois, pousada, outro banho, esticar as pernas na cama. Uns episódios de série até a fome começar a chegar. Aquele empurrãozinho pra bater perna. Ladeira. Ladeira. Ladeira. Uma volta rápida na Broadway ainda semi-deserta, sentar pra jantar. Todo dia frutos do mar? Sim. Mais umas voltas ouvindo os sotaques, as idades, os gêneros, os estados d’alma chegando para ocupar a rua estreita. Passear entre barraquinhas de miçangas, promoções de tatuagem de hena, uma roda de capoeira, uma oficina de gesso e pintura pra criança. Sentar no bar de sempre. Ver as vidas. Rir alto das próprias bobagens. Papear com quem chega. Ficar na rua até qualquer hora, sem certo. Voltar pra casa (sim, chamar de casa qualquer lugar em que durmo mais de duas vezes) acolhendo os ruídos distantes, as ruazinhas desertas, aquela segurança morna, a certeza do bom. Antes da curva, olhar na direção do mar. Escuro, eu apenas o escuto. Ou é meu coração? Casa, então. Mais livros, futebol, série ou filme. Sono. Amanhã, de novo. Reaprender viver toda em mim.
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É entrar no mar e reencontrar o equilíbrio do corpo. Não é seguir com as ondas, não é ficar rígida, é me deixar mover, sentir que dentro e fora é apenas um jeito de organizar o espaço, antes e depois é somente a forma de nomear o tempo. É ver o mar, sentir seu cheiro e entender o que é necessário entender, esquecer o que é necessário esquecer, acolher o que é necessário acolher, deixar ir o que já não deve ficar. O mar é o único lar que faz sentido pra mim. Ou seu abraço – sussurra a esperança insistente.
A gente (a gente aqui é sempre eu, né, todo mundo já sacou) pensa que está preparada pra alguma coisa (faz tempo desisti de estar preparada pra qualquer coisa). Por exemplo, eu pensava estar preparada para esperar o resgate em alto mar por algum tempo, se fosse o caso. Porque eu sei boiar. Posso boiar por horas. É só soltar o corpo e respirar. Em uma dessas coisas sou imbatível e se não sou tão boa assim em respirar, 45 anos de prática me deram algum know how. Então: eu boio bem. Pronto. Preparadíssima. Mas, claro, a gente (eu, eu) só pensa, nesses casos, nas coisas mais evidentes. E as disfarçadas? As sutis? Por exemplo: e a temperatura da água? Posso boiar por um tempão, mas se a água estiver gelada a hipotermia não vai me deixar esperar o resgate. É isso, a água está gelada e nenhum sinal de bóia ou resgate.
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Eu adoro ouvir a Bethania falando do público de boate, especialmente quando ela diz: é um público mais molinho. Bate logo uma vaidade narcísica, não sei se por ser molinha ou por ser, essa, uma expressão tão minha. Mas é isso, gente que bebe um pouquinho, namora um pouquinho, a gente leva mais fácil mesmo, Bethania (tá lá no show Maricotinha, depois que ela canta Sábado em Copacabana).
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eu faço drama e amor até mais tarde e tenho muitos posts de manhã
tem música que me quebra em tantos pedacinhos miúdos que depois só com bricolagem
tem o "eu lírico", mais comum.
eu pratico o "você lírico".
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“Ela vai entrando, cumprindo uma coragem. Avançando, abre o mar pelo meio. Ela brinca com a água. Com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes. E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. (...) E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo.”
(Clarice Lispector)
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Eu, se fosse você, mergulhava em mim.
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Dentro do mar tem rio, dentro de mim tem o quê?
