Newscoisa #34: Luciana, assemble
Newscoisa #34: Luciana, assemble
Água salgada, a cura para todas as coisas, etc. Na impossibilidade do mergulho em Canoa, eu choro todo dia, sabe. Tanto que me acompanha, constante, uma dor de cabeça que já merece ser batizada.
Falando em Canoa Quebrada (ou ainda, falando da minha saudade de Canoa Quebrada), estou impressionadíssima com o tanto de natureza deserta que as pessoas encontraram perto de casa nesses últimos dias de 2020, primeiros de 2021. Porque óbvio que foram a pé ou de bicicleta, no máximo um bate e volta no carro da família, né, tudo gente conscienciosa.
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Queria estar falando ternuras? Sim. Entre sussurros de bobagens carinhosas: deixa eu ficar no seu abraço. Como quem lança sementes em terreno fértil: amor, desejo, ontem, sempre, quando, depois, agora, querido. Queria poder tocar? Ignorar geografia e tempo, estender a mão, leve, fortuita e delicadamente encontrar sua pele? Tanto. Mas o que eu queria mesmo, muito, era ainda te chamar pra contar que fiz bacalhau. Mais: queria molhar um pedaço de pão naquele azeite mais grosso do fundo da travessa com o sabor das cebolas e alhos e peixe misturados e deixar deslizar entre seus lábios, você fechando os olhos para saber melhor o gosto e o gostar, o pão macio e úmido - e cada vez mais no interior morno da tua boca - se desmanchando atrás dos seus dentes, aquele meio gemido de prazer escapando e seu sorriso, ah, o seu sorriso se imiscuindo na sua voz ao me dizer, maroto: tá quase.
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Tem uma frase do Homem-Aranha no Vingadores - Guerra Infinita que resume minha vida no segundo semestre de 2020: "eu devia ter ficado no ônibus". Putzgriles, como dói viver.
Aliás, ontem revi Vingadores Guerra Infinita e Ultimato. Eu sei que queima meu filme, mas eu gosto demais, paciência. E foi confortador porque, pra mim, 2020 foi o estalar de dedos do Thanos. Simbolicamente, metade de mim virou pó. E diferente do que o vilão pensava, quando metade da gente desaparece, nosso mundo inteiro acaba. Depois do fim dos mundos, os jeitos, lá como cá. Teve gente que seguiu – como o moço do grupo de apoio do Capitão América ou o Homem de Ferro, tateando, levando a incompletude como uma saudade, construindo um mundo novo pra poder ser, outra vez. Teve gente que se consumiu na desesperança, que nem o Gavião Arqueiro. Gente que listou as perdas e, para elas, fez monumentos e memoriais. Gente que tentou colar os pedacinhos que sobraram, fazendo o melhor possível com o pouco que restou de si, num arremedo do que a vida tinha sido.
Que 2021 venha como Ultimato. Sem resposta fácil ou simples. Com uma esperança capenga, esquisita, improvável. E com muita coragem.
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Eu sempre achei linda, linda demais a frase de Don Corleone, pouco antes de morrer: “a vida é tão bonita”. Eu sempre tive a ambição de chegar à morte com essa sensação. Pensava – e penso – que poder se sentir assim, deixando uma coisa realmente preciosa, é um privilégio. É capaz de dizer essa frase ao morrer quem está de bem com a vida que levou. Depois de ver os filmes deste ciclo Marvel (que começa com Homem de Ferro e termina com Ultimato) queria, além de me despedir da vida reconhecendo sua beleza atroz, sair dela com a compreensão tranquila de quem sou/fui. Poder dizer, com simplicidade: eu sou o homem de ferro, sem nenhum juízo de valor embutido, sem um adjetivo nas entrelinhas, sem me gabar nem me envergonhar. Saber-me responsável pelas minhas decisões, pelos meus atos. Reconhecer a trajetória que me levou a eles. Cada organismo tem seu próprio jeito de morrer, disse algo assim o Freud. Poder dizer eu sou o homem de ferro como quem se responsabiliza pela pessoa que me tornei e pelo jeito de morrer que vivi a cada dia, é o meu novo projeto. No fim, com sorte, será assim: eu sou Luciana, a vida é tão bonita e um estalar de dedos.
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Lá no Cais de Saudades um post, com o mesmo nome dessa garrafinha, desses quase sem palavras (tem sempre aquilo que é impossível de nomear), sobre como eu vou tentando o desapego.
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Enfim, meu momento:
