Newscoisa #50: Dama da noite, tabaco doce e coquilha
Newscoisa #50: Dama da noite, tabaco doce e coquilha
"Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela"
Assisti Halston faz uns dias e desde então tenho tido vontade de escrever sobre a minissérie, não só para louvá-la, também para comentar (e ver se encontro eco nisso) como a produção me fez lembrar de outras duas gratificantes experiências de audiovisual: o filme Trama Fantasma, e outra minissérie, Fosse/Verdon (vocês também? hein? hein?).
As relações entre os três produtos têm vários aspectos óbvios, mas o principal e mais cativante, pra mim, é que Daniel Day-Lewis, Sam Rockwell e Ewan McGregor conseguem fazer com que eu me importe muito com os personagens que eles interpretam, que tenha vontade de lhes fazer um cafuné ou rebolá-los no divã. Como brinde, cada um constrói uma relação em que a química é evidente, seja ela sexual ou não, com sua parceira de cena, o que faz com que eu veja não cada atriz, mas Alma, Gwen e Liza (alô, isso não significa que as atrizes não tiveram os méritos próprios na construção de suas próprias personagens, que elas não são talentosas, etc. Pronto, fechei disclaimer).
Você prometeu que cuidaria de mim e sempre me protegeria

Trama Fantasma é aquele filme inteligente que, nos primeiros dez minutos, já apresenta o personagem, a dinâmica das suas relações e nos deixa (pelo menos me deixou) profundamente intrigados e vinculados com a história. Um crítico do New York Times escreveu: “eu só vi este filme uma vez (...), e tenho certeza de que tem suas falhas. Eu ficarei feliz em ver mais uma dúzia de vezes até encontrá-las”. Eu já revi algumas vezes e sei que voltarei a ele muitas outras, não procurando as tais falhas (quem sou eu), mas pra reencontrar Daniel Day-Lewis magnético como nunca. Cada movimento que ele faz em cena é preciso, tem sentido, contexto e encanto. O trabalho do Ewan, em Halston, também é hipnótico, embora com diferenças, até porque calcado em uma pessoa real, então incorporar maneirismos, voz, movimentação, implica numa construção diversa. Mas são, ambos, elegantes em seus gestos. Dois estilistas. Dois artistas. Os atores manuseiam os tecidos com uma habilidade e graça que fazem crer que cada pano tem um propósito e conseguem me comover com pequenas contrações no rosto, com olhos marejando, com inclinação de cabeça. Fazem, de detalhes do corpo, outdoors do sentir.
Uma verdade, antes de tudo, sobre Trama Fantasma: é um filme bonito. Muito bonito. Bonito pra cacete. Fotografia, direção de arte, os ambientes e figurinos luxuosos, os enquadramentos, a trilha, tudo celebra o belo. Ou, como a personagem de novela antiga: cada mergulho é um flash. As cenas parecem coreografadas, há uma certa intencionalidade insinuada no movimento dos atores que prende o olhar. O melhor e mais aliciante do filme é que ele não tem clímax, reviravoltas, plotseiquelá, o que se tem é repetição e sua íntima relação com o gozo e com a pulsão de morte.

As metáforas são de uma extrema delicadeza, mensagens secretas costuradas no forro do filme. Votos. O amor sob medida. O humano sob escrutínio. A recusa de se mostrar em contraponto ao ambiente de exposição constante. O amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer. E desequilibra. Ele é um menino faminto*. Em miragem, mulheres tentam saciá-lo. Além de impossível, indesejável. É a falta que nos move. Melhor juntar a fome com a vontade de comer, não com a barriga cheia. Na incompreensão disto, um amor torto que se sustenta no regurgitar.
Eu não saberia dizer sobre o que é o filme. Li que é uma espécie de história de amor – mas todas não são? Pelo menos uma tentativa de? Nada do que é humano me é estranho. Talvez seja uma história de solidão. Do impossível de ser só. E de não ser só. Uma história de perda do que nunca existiu. Desamparo. “Você está aqui? Você está sempre aqui? Sinto sua falta. Eu penso em você o tempo todo”.
*Halston também, embora a voracidade dele se apresente de outra forma e acabe conduzindo a uma relação adoecida com o amante, com a cocaína e também com a indústria. Esse vazio que ele não preenche, que não há como preencher nem com dinheiro nem com elogios nem com fama nem com alcance nem com sexo nem com festa nem com álcool nem nem nem tem tons de necessidade de afeto. De cuidado. Quando Ewan/Halston reclama sobre a venda e a perda do controle sobre sua marca, ele diz ao David – e é disso, dessa fome, dessa carência, que se trata - Você prometeu que cuidaria de mim e sempre me protegeria (aliás ele fala isso e meu coração se parte em tantos pedacinhos que haja kintsugi).
Eu quero vestir todas as mulheres dos Estados Unidos

Bob Fosse não foi estilista, mas viveu, criou e teve impacto na cultura norte-americana nos mesmos anos incríveis que Halston. Não tinha intenção de vestir todas as mulheres, mas não posso garantir que despir não fosse um propósito.
Fosse nasceu em 1927, Halston 5 anos depois. Fosse morreu em 1987, Halston morreu 3 anos depois. Fosse ganhou em 1973 os prêmios de Melhor Direção no Oscar (Cabaret), Tony (Pippin) e Emmy (Liza With Z). O único até hoje. Neste mesmo ano, 1973, acontece a Batalha de Versalhes, com estilistas norte-americanos e franceses, e as criações de Halston tem grande destaque. Além disso, 1973 também foi o ano em que ele vendeu sua linha para a Norton Simon, Inc. por $ 16 milhões (é dólar pra caramba hoje e ainda mais dólar na década de 70).
As minisséries que abordam a trajetória dos dois (no caso de Fosse, a trajetória dele enlinhada com a de Gwen Verdon) têm muito em comum além da presença da Liza Minnelli. Por exemplo, uma direção de arte impecável. Figurinos escandalosamente bem feitos. Um retrato cativante da época (e que época!). Tecnicamente são excelentes. Seguem caminhos diferentes em relação à edição e composição da narrativa. Halston opta por uma narrativa linear, na vibe ascensão e queda – e faz isso bem, embora possa soar um pouco quadradinha. Fosse/Verdon se apresenta com idas e vindas, fragmentariamente, uns momentos quebrados, interrupções na história, sequências intercaladas em um movimento que até emula as características das coreografias de Fosse e permite que, mesmo quem conhece a biografia dos personagens, se pergunte o que vai vir no episódio (ou na cena) seguinte. Além disso, o recurso de identificar o tempo que falta para a morte de Fosse acrescenta interesse à data dos fatos que estão sendo retratados.

Eu venho falando Fosse, Fosse, Fosse porque, bom, amo Bob Fosse, amo All Thath Jazz, amo a cobra do Pequeno Príncipe, amo Cabaret, amo musicais e amo as coreografias que ele criou. Além disso estou muito preocupada com o jeito de fazer Sam Rockwell vir morar comigo. Mas é preciso reconhecer que a) Gwen Verdon teve luz própria e enorme impacto na trajetória de Fosse e b) Michelle Williams teve uma atuação primorosa na minissérie. Williams apresenta uma caracterização vocal e corporal marcantes, além de um sorriso que (juro, olha no youtube) revive Verdon. Assim, são dois grandes atores em dois grandes papéis e a potência da relação e a paixão pelo trabalho que a minissérie consegue retratar torna mágico acompanharmos a produção.
Gwen Verdon foi reconhecida como uma das melhores, senão a melhor dançarina da Broadway. Dá pra encontrar vídeos no youtube que testemunham este talento e técnica. E tem os Tonys pra reforçar. Na série vemos com a idade pesa de forma diferente para homens e mulheres no desempenho e avaliação do trabalho. Acompanhamos também como a participação que ela teve no sucesso de Fosse foi subestimada. Mas, uffa, o programa não cai na armadilha de retratá-la como vítima passiva. Pelo contrário, vemos uma mulher complexa, ambígua, talentosa, carente, empolgada, insegura e tantas outras facetas que não vou listar aqui (assistam!).
Teve quem criticasse os longos diálogos, as digressões dos personagens e mesmo a narrativa não-linear que, segundo alguns comentaristas, pode ter atrapalhado o alcance do programa, tornando-o interessante apenas para um determinado nicho. Não sei dizer se foi assim com Fosse/Verdon e se tem sido assim com Halston. Caso seja isso, tô no coração desse nicho aí porque me acertaram em cheio.
Críticas não importam

Então, mas e a produção Halston, itself? Gostei demais. Inclusive adianto que não quero nem saber se a amizade entre Halston e Liza era aquilo mesmo, vou me apegar àquela delícia de amor. Cada vez que eles apareciam juntos eu me sentia emocionada. Aliás, “meu” Halston é o personagem feito pelo Ewan e só Meryl Streep pode me julgar. Acredito em tudo: na vulnerabilidade, na sofreguidão, na ambição, na elegância, nas patadas, na solidão, na genialidade. E no amorizade entre ele e Liza.
São só cinco episódios, fica um gostinho de: queria passar mais tempo com essa galera. Eu entendo zero de moda, mas acredito ter alguma sensibilidade pra beleza e os momentos em que a série retrata o processo criativo, os desfiles e tal, são um arraso. Por mim podia ter bem mais disso. O episódio da Batalha de Versalhes é um deleite. Também podia ter mais momentos como o do desenvolvimento do perfume feminino. Algumas vezes, pela agilidade da narrativa, parece que as respostas e saídas construídas pelo designer eram fáceis ou automáticas. Eu, por outro lado, penso que além do talento, da sensibilidade, dos insights, tinha muito trabalho envolvido nesse processo todo.
São só cinco episódios, eu disse, com ênfase no “só”. Sustento. Mas preciso fazer a ressalva de que são suficientes pra Ewan dar vida, carisma e complexidade ao personagem. A gente pode querer saber mais sobre os quês e comos, mas o quem está bem resolvido, do moço criativo e ambicioso, um tanto vulnerável, ao homem tenso, arisco, em um crescendo de confusão, mas sempre imaginativo e talentoso. Alguns vão achar o personagem um babaca. Meio insuportável. Minha dica: vejam pelos olhos de Liza e se encantem.

No decorrer dos episódios vemos e ouvimos referências às orquídeas e mais orquídeas. Elas são uma metáfora perfeita de como o trabalho de Halston me pareceu: delicado, um tantinho extravagante e muito, muito elegante. E sensual. Muito sensual. Nas cenas em que Halston desliza tecido pelo corpo das modelos, quase sinto o dorso de uma mão na minha própria pele.
A série tem seus pequenos gargalos (como a forma incipiente em que insere a sequência da morte da mãe e os flashbacks meio cafoninhas) mas também consegue se aproximar das características das orquídeas, incluindo aí as locações, o uso das cores e da luz, os figurinos e a trilha sonora.
Foram 5 episódios que me lembraram o que há de maravilhoso, belo e dolorido no humano e proque eu insisto em gostar tanto tanto tanto de gente.
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Sou grata aos que mandam comentários. Sempre.
Muito, muito grata. Obrigada, desta vez, à Renata Lins, Heloísa, Gabriel C., Marília Moschkovich.
Os tempos difíceis ficam um tantinho mais atravessáveis ao recordar que vou, nesta toada, na companhia querida de vocês.
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E vamos de propaganda! Quem quiser o livro Éter: 18 contos de batom borrado e outros anestésicos, dá um pulinho na loja da Drops Editora. Já comprou o Éter? Não seja por isso, na loja tem livros com prefácios meus (ui): A Canção da Borboleta Ausente, do Paulo Cândido e Como Ensinar Um Idiota a Dançar/ Faço Chá de Hortelã e Espero que Fique Tudo Bem (dois livros no mesmo volume) da Fal Azevedo.
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Sim, eu estou com saudades. Abri a sombrinha vermelha (#newscoisa49feelings).
E comecei aulas de natação. Pro caso de chorar um oceano.
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