Newscoisa #54: Fogos de artifício no peito
Newscoisa #54: Fogos de artifício no peito
O difícil que é ter que escrever carinho quando queria escrever, bom, você sabe o quê.

Tem essa amiga que é escritora e faz os melhores diarinhos. Desde um desde – ou seja, desde que tive coragem de começar a comentar no blog dela – procuro responder com notícias minhas. É quase como trocar cartas. Cartinhas miúdas, de quase vizinhas, de amigas que já sabem todas as manchetes e colunas principais. Cartinhas com a sessão de anúncios, alguns obituários, do meu lado a coluna de esporte, do lado dela os apontamentos de moda e cultura. Hoje não recebi missiva. Respondo a notícias imaginárias. Adianto que dormi tão mal quanto em qualquer outra noite vazia. Sonhei com uma loja de departamentos e o rosto do moço (aquele que ainda corre) em todos os rótulos de todos os enlatados. Comprei o estoque inteiro – e guardei num bunker pintado como um arco-íris. No sonho, não pareceu estranho. Como não estranhei, no sonho, os cartões de racionamento que eu trocava por mensagens de zap. Dele. Sempre ele. E seu cabelo macio. Com um cheiro que meu analista fez questão de enfatizar que eu desconheço. Também não pareceu estranho que o bunker fosse feito de caixinhas de dvd. Todas as instituições funcionando normalmente. A única coisa estranha é como tenho lembrado do que me visita nas poucas horas de sono. Dois ou três em duas semanas pode parecer irrisório, mas para quem passa anos dormindo e acordando sem memórias, tem seu peso. Pois acordei lembrando que os cartões nunca bastavam, mas o pior mesmo foi não ter certeza se, no bunker, eu tinha abridor pras latinhas. Você sabe como as histéricas gostam de manter o suspense. Acordei na horinha dos remédios, arrastei o sonho pela casa enquanto escovava dentes, tomava banho, dobrava lençóis, espiava o judô, recolhia taça e garrafas, atendia chamadas. Escrevi cartas, coloquei dedicatórias em livros, tomei baldes de café. Amargos, café e cartas. Um pouco menos - espero - as dedicatórias. Dei corda na caixinha-de-música-que-foi-presente-e-foi-também-passaporte e deixei que me embalasse as dores. Depois, falar longamente com gente querida. Café, café, café e comer o resto do empadão de ontem, aquele, só beliscado. Perceber que estou gastando dinheiro demais, este mês, com comida pronta. Que estou gastando dinheiro demais este mês, aliás. Mais banho. Corrigir os últimos trabalhos. Lançar notas. Descobrir que não eram os últimos. Receber mensagens. Não as esperadas. Provavelmente acabaram os meus cartões de racionamento também do lado de cá do sono. Cair no futebol pra esquecer a angústia. Ver a angústia, saliente, empurrar o jogador no chão, de olhos abertos. Chorar junto com os demais jogadores e pessoas da torcida. Esperar. Depois de quinze meses (ou quarenta e seis anos) ainda não fiquei boa nisso. Tomar outro banho – aqui é quente, pô. Sair pra encher o tanque e calibrar os pneus. Voltar com a notícia do jogador fora de perigo e o recomeço do jogo. Maior que a vida, eu digo, mas não nesse sentido. Lembrar de pedir os remédios na farmácia. Dez caixas, 150 dias. Vôlei. Ginástica rítmica classificada pras olimpíadas. Mais futebol. Exausta desse vazio, pedir o jantar na hora do lanche. Foda-se. Arrumar a mochila. Comer o risoto frio, a salada murcha. Pelo menos a carne estava macia e o molho, saboroso. Que vontade de uma comida bonita. Bobó, você diria. Temperado com uma colherinha de cachaça. Lavar as louças do dia. Ouvir aquela playlist que a gente finge que é nossa. Ouvir o áudio da antiga leitura de tarot. Aumentar o volume do futebol. Receber a mensagem esperada. Com notícias indesejadas. Fazer piadinhas pra disfarçar o aperto do teu peito. Opa, do meu. Lembrar daquelas cenas de E o vento levou. Do retorno dos homens no fim da guerra. Da visita no feriado. Eu e a Scarlett não temos direito à alegria, mas podemos tecer paninhos com franja para amarrar na cintura e chorar nas despedidas. Tirar minha pressão, como um gesto torto de solidariedade. 116/78. Uma adolescente. Que é onde me sinto: na adolescência esquisita de outra pessoa. Mas os batimentos, ah, os batimentos. 102 e galopando. Nós dois sabemos quem não vai dormir hoje. No spotify aleatório (não tenho conta premium, já contei isso?), Cazuza canta como se nós tivéssemos nos conhecido aos 17 anos. Pulo, claro. E o quinteto violado canta como se tivéssemos nos conhecido sempre – e foi, não é? “Se o que nos consome fosse apenas fome, cantaria o pão, como o que sugere a fome para quem come; como o que sugere a fala, para quem cala, como que sugere a tinta, para quem pinta, como que sugere a cama, para quem ama”. Vim escrever essa garrafinha, torcendo pra amiga chamar; pra outra amiga, não. Vou tomar o provável último banho do dia. Queria ter lembrado de ferver longamente canela em pau, casca de maçã e louro. Queria pegar um avião e tentar te esquecer no teu abraço. Fico pensando se queria não querer. De vez em quando olho no zap se as setinhas ficaram azuis. Amanhã é Santo Antônio. Se eu estivesse em Lisboa, teria alguma paz.
(A verdade é que você cuida sim, de mim, o melhor que pode. É que chegamos tarde demais. E ao local errado. De qualquer jeito, obrigada por procurar me confortar. Vamos dormir melhor. Ou tentar.)
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Fizemos uma esperança, eu e amiga das igrejas e cervejas. Agora, um girassol no um peito.

Já comparamos muitas vezes este período de infinitena com o dia da marmota. Quem dera. Não me parece que tivemos aprendizados significativos, diferente do Bill Murray. Por exemplo, voltaram a circular expressões do naipe #VaiDarCerto. Da minha parte, meio milhão de mortos é um indício (cof, cof) que já deu muito errado. Esperança que partilho não se forja no forno do alheamento e da indiferença, mas sob a marretada do desassossego.
Alguns dizem que gostariam de voltar ao normal. Outros protestam, o normal já era vil e insustentável. Eu concordo (e discordo) das duas galeras. O que me faz falta é o banal e é ele que eu gostaria de ter novamente. As coisas simples, que não demandavam muita reflexão. Não me preocupar com esbarrões. Não ter medo de agendar uma ida ao dentista. Sair rapidinho pra comprar aquele ingrediente da receita que faltou. O banal de marcar e furar com os amigos. De ir ao posto de saúde receber vacinas que nunca suspeitamos nomes, delas ou de seus fabricantes. De comer fritura. Porque fritura eu raramente faço em casa. É comida de restaurante, de praia, de rua. E não tem rua, nem praia, nem restaurante nesse agora. E nem pense em delivery de fritura, é tão melancólico que você chora. A vida não deixou de seguir, nesses meses em que mal a encontramos em nós mesmos. Especialmente nos seus maiores feitos: pessoas engravidam, outras morrem, uns nascem, gente se forma, se casa, se mata. Os grandes espetáculos, a vida sustenta. O que me faz falta são suas miudezas.

Por causa do Fabiano Camilo dei uma acelerada na leitura d’ O Feiticeiro de Terramar, da Ursula K. Le Guin (não, não foi desse livro dela que ele falou e nem foi um trecho desse livro que ele leu e eu chorei, é que minha mente é tortuosa). Mas eu ia mesmo contar é como fico emocionada com autores que, além de escrever primorosamente, tem boas histórias pra contar. Eu admiro os que não tem o sobre, mas com seu talento tecem palavras tão bem que nos distraem e nem reparamos muito nisso (e sei que é essa minha turma, embora, claro, o “tão bem” seja discutível). Admiro mesmo. Mas, poxa, os que colocam nos livros o resultado de um trabalho com as duas agulhas, me fascinam como mágico em festinha infantil: eu nunca sei como conseguem. De onde veio esse coelho ou essa história é o que arregala os olhos.
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Hoje é o dia dos namorados. Gosto muito. Tem gente que torce o nariz porque sei que lá data comercial inventada. Eu cedinho esbarrei em um tuíte que retratou muito o que penso (e volta e meia tento expressar). O autor comentava que o dia dos namorados, assim como natal ou carnaval, são todas "datas inventadas". Aliás, acrescentava, o próprio calendário é uma invenção. Entretanto, disse ele, digo sempre eu, qualquer razão para celebrar, festejar, abraçar, viver com alegria é bem vinda desde que não se torne compulsória, obrigatória, que não constranja ninguém.
Recomendo muito que vocês sigam o @anarcofino no twitter, nem sempre concordo com ele, mas o humor, a qualidade da informação e o senso crítico, eu garanto.

Passou, um tanto de vezes, hoje, o tuíte que fala que namorar é criar uma nova linguagem, verbal e não-verbal e tal e coisa. E é mesmo - como são todas as relações íntimas, penso eu. Lá em casa eu e meus irmãos tratamos nossos pais, como “meu pai” pra cá, “minha mãe” pra lá, é um reconhecimento tácito que são diferentes pra cada um de nós, forjados na especificidade de cada relação, mas divago. Eu queria dizer mesmo é que fiquei lembrando da crônica do Verissimo que acabou aparecendo no episódio Mãe é mãe, do Comédias da Vida Privada, programa de antigas terças-feiras, na Globo. Aquele texto do apelido. Da importância do apelido nos relacionamentos longos. O que me ensinou que é preciso nomear o outro em mim. Quando fazemos isso, damos-lhe uma história, um je ne sais quoid, particularidades que só são, nele, pra nós e em nós. A enormidade desse gesto trivial, que vem disfarçado de um diminutivo, uma característica física, uma piada que fica ou um roubo circular a uma crônica do Verissimo, só quem ama sem poder dizer o nome é que sabe.
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Estava escrevendo essa garrafinha pra ter a sensação de que saí por cima.
A vida vem e puxa o tapete daquele jeitinho maroto.
E bem na beiradinha do abismo.

Chega, tenho que desapegar X Nunca mais vou dormir enquanto não tiver notícias.
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Seguro com as duas mãos meu guarda-chuva colorido e sussurro pra corda bamba: já estou pronta. Sabemos eu, a corda, o guarda-chuva colorido e o público curioso, de que não, não estou.
"olhando o céu viu uma estrela, imaginou coisas de amor"
eu sou o pequenino grão de areia.
(talvez seja a hora de me recolher)
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Pode ter campanha de divulgação de livro tão delícia quanto, mas mais delícia que a do Éter, tô pra ver.




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