Newscoisa #55: Casablanca, Desencanto e a hora certa de dizer adeus
Newscoisa #55: Casablanca, Desencanto e a hora certa de dizer adeus
“Eu nasci quando você me beijou;
eu morri quando você me deixou;
eu vivi nos poucos dias em que você me amou”.
(No Silêncio da Noite)
Estava a toa na vida, a Renata me chamou pra ver algo tão bom quanto a banda, uma série de aulinhas/conversas sobre clássicos do cinema. Nesta leva, Mágico de Oz, Cidadão Kane, Casablanca e Crepúsculo dos Deuses (um dos motivos pelos quais eu topei, aliás, foi ver Crepúsculo dos Deuses e não Sunset Boulevard no programa. Eu acho pedante pra cacete quem chama os filmes pelos nomes originais, desculpa mundo dos sabidos).
Eu tenho amigas maravilhosas vocês não acham? Renata pensou que eu poderia me interessar e gostar e ela estava certíssima. O encontro, a cada semana, é momento de alegria, alívio e refúgio. Quem já frequenta a casa a mais tempo sabe que eu sou arriada por cinema. Pelo aspecto lúdico, entretenimento, arte, encanto, histórias incríveis, imagens embriagadoras e tudo mais referente ao poder dos filmes nos inspirarem, instruírem, emocionarem. Mas também sou fascinada pela indústria propriamente dita, o que há de técnica, suor, ofício, labor, no planejamento, orçamento, realização de cada etapa dos projetos. E as aulas alcançam – mesmo com pouco mais de duas horas dedicadas a cada filme – esses dois aspectos com bastante eficiência. Na semana que acaba hoje, foi Casablanca. Imediatamente lembrei do post que escrevi em 2011 para o divertidíssimo meme sobre cinema que fiz com Verônica e Tina (e contou com participações glamourosas como o post sobre filme noir do Anderson). Até pensei em reescrever meu texto pois é um tantinho ingênuo, mas depois achei melhor deixar como era, eu até gostava daquela Luciana que dizia assim:
O Meme Dos Filmes hoje está "in love". E haja suspiros, coraçõezinhos e música chiclete para o “melhor filme romântico”, né? O cinema tem seus gêneros e os gêneros tem seus clichês. No filme romântico tem alguns itens imprescindíveis:
1. o desencontro dos amantes

(Tarde Demais Para Esquecer)
2. um beijo inesquecível

(A Dama e o Vagabundo)
3. um cara com passado polêmico (aventureiro e/ou meio galinha e/ou desiludido),

(Se meu apartamento falasse)
4. uma mulher de gênio forte

(Nosso amor de ontem)
5. uma música tema de fazer querer ralar os pulsos no asfalto,

(Suplício de uma Saudade, essa canção)
6. troca de olhares sugestivos

(Luzes da Cidade)
7. uma bela frase de efeito

"Você sabe assobiar, não sabe, Steve? Você só tem que unir os lábios e soprar"
Aventura na Martinica
8. e, se possível, um final não muito feliz ou, pelo menos, não felizes para sempre

(As Pontes de Madison)
Um bom filme é aquele que explora os clichês do seu gênero sem ficar refém dos mesmos. O melhor filme romântico, pra mim, aquele que tem tudo, tudo mesmo, na dose certinha, é o maior clichê ambulante já feito: Casablanca. O desencontro dos amantes em Paris, vidas distintas e o reencontro atribulado no Bar do Rick; um beijo inesquecível (se não me engano é só um ou dois mesmo, mas a tensão erótica é imensa); um cara com passado polêmico (e quem melhor que Bogart?); uma mulher com gênio forte (a fogo sob gelo Ingrind Bergman); uma música tema de fazer querer ralar os pulsos no asfalto (play, Sam! Play As Times Goes By); troca de olhares sugestivos – e o maridão ali ao lado, de boa; uma bela frase de efeito (uma? Casablanca esbanja, de “Nós sempre teremos Paris!” ao “Loius, eu acho que este é o começo de uma bela amizade”) e, se possível, um final não muito feliz ou, pelo menos, não felizes para sempre (e quem não fica dividido entre a admiração pela renúncia e a vontade de sair batendo nos dois?). Casablanca nos deixa o gostinho e o conforto de que sim, o grande amor é o quadro na parede da memória, aquele que dói mais.

(Luciana, só tem filme norte-americano nessa conversa?
eu tinha que usar algum filtro, né, gente)
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Eu era outra. A que sou, agora, também diria: vejam Desencanto. Diria a você: veja-me. Desencanto é de David Lean, o mesmo diretor de Doutor Jivago e Lawrence da Arábia, mas não há nada de super produção aqui. Há um adultério cometido por pessoas comuns, uma estação de trem, anos 40, muito cinza e uma das mais bem contadas histórias de amor que já existiu. Nem uma hora e meia e cabe tanto do que é humano. Conhecemos Laura – e ela sofre. Ela não sofria antes. Antes era uma mulher de meia idade com vida confortável, marido gentil e filhos ativos, mas que não chegam a causar problemas. Não há nada de errado na vida de Laura no antes. Nem mesmo aquele tédio que os narradores gostam de imputar aos personagens para justificar o que lhes acontece. Nada disso. Antes do quê? Antes de um momento qualquer do estar viva. Em Desencanto o que lhe acontece é apenas a vida. Laura se apaixona. Não porque qualquer coisa esteja errada, mas porque o amor é o que é, ele acontece. Qualquer pessoa pode se apaixonar. Até eu (isso eu não sabia em 2011). Apaixonou-se Laura, apaixonou-se Alec. Ela não estava insatisfeita, não estava procurando nada. Mas porque era ela, porque era ele, apaixonaram-se. Não há como prevenir-se de um encontro assim. De uma pessoa que parece saber você como você nunca quis se dar a conhecer. Que está na sua madrugada mais insone. Como este amor, tudo mais no filme é trivial. É um filme sem maniqueísmos, não há um marido malvado, uma vamp sedutora, um amante audaz. Só pessoas comuns, suas responsabilidades, dúvidas e desejos. Só a vida correndo. Tudo que poderia acontecer com você. Comigo. Que acontece com qualquer um. Tanto que começamos o filme em uma cena, não tão curta, em que os protagonistas não estão envolvidos. Mas isso da vida, do amor, do banal, sim, ali estão.

Desencanto é a história mais, mais, mais triste. E mais bonita. Pontes de Madison, aquele filme da Meryl Streep com Robert de Niro e tantos outros assim, certamente comovem e são bons, tão bons, mas nenhum tem essa melancolia, essa angústia hipnotizante, essa incerteza, essa delicadeza nas coisas tão miúdas: uma mão no ombro, um dedo acariciando o dorso de uma mão, uma fotografia do joelho enviada pelo zapOPA, nenhum deles confere à vida esse lugar impávido ao sentir. Alec e Laura sentem-se bem, juntos. E sentem-se mal por se sentirem bem juntos, principalmente quando não estão juntos. A solução seria ficar mais e mais juntos, pra se sentir melhor. Mas. Pois é. Um filme tão sensível. De sombras. Nos rostos e no sentir. A estação de trem, lindamente fotografada, é mais que cenário, é personagem, é clima, é premonição. Transitória, efêmera, circunstancial. Uma história de amor honesta. Tanto que às vezes desvio os olhos, embaraçada por acompanhar tal relação. Um amor sem futuro, ordinário, banal, é o que se sente. Mesmo sabendo o desencanto. Ou, talvez, por causa dele.
Quem quiser assistir, tem inteiro e com legenda, no youtube.
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Eu nunca escrevi um só segredo, a não ser os que disfarço com letras maiúsculas em outdoors expostos nas avenidas de intenso trânsito.
Engraçado que as pessoas para quem fiz grandes gestos sempre os tomaram pelo que são, grandes porque meus e não pelo que ou quem os motivava. Não acontece o mesmo com as palavras. A gente (a gente sou sempre eu) se empolga um pouco, diz qualquer coisa mais arrumadinha e o povo já corre, assustado com o enorme, ignorando que elas são como são porque minhas e não por quem as mobiliza.
A amiga disse: tem Bethania no BIS. Corri pra lá. Música é perfume. Até tenho no notebook, mas fiquei. Bem na hora do arranjo de “Bom dia, tristeza”. É tão engraçado pensar como ela cantou tudo de um jeito que me ajuda a sentir. Ainda existe Drama, cigarros e noites insones. 30 anos depois descobri que aquela madrugada foi ensaio.
Você fez eclipse no meu peito, vivo – agora – no lado escuro do meu coração.
"Ah, o meu viver é te esperar pra te dizer adeus"
Num tempo outro, tiveram um caso breve e intenso que a vida e o desalento trataram de apartar. Em um tanto de anos que o susto esqueceu de contar, o reencontro. Tudo bem, pensaram, já não havia viço, nem fogo e nem riscos. Ela, arredia, tateante. Ele, insistente, embriagado pela combinação entre a beleza do impossível e a memória do gostado. Trocaram telefones, palavras, segredos, fracassos. Como se tudo fosse autorizado por mais anos vividos que os ainda a viver. E foram querendo dizer mais, ouvir mais, saber mais. Sentiram que onde era cicatriz ainda latejava. A distância necessária foi esvanecendo a ternura triste que disfarçava vontades do que não viveram juntos e a sombra desse enredo mais incomodava que acalentava. Já não queriam ficar, já não sabiam partir.
Vinícius disse, Bethania cantou: é melhor ser alegre do que triste. Um dia você será menos que saudade e não será morte sonhar seu nome.
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Eu ainda estou aqui, suspeito que sempre estarei aqui pra você.
Mas já não vou.
Estou muito, muito cansada. E fui muito, muito mal-acostumada. A ser amada. Bem amada. Bem tratada.
A ser contente.
Então, estamos aqui, eu e o riso. Como diria a personagem da Lauren Bacall: você sabe assoviar, não sabe?
Desencanto e Casablanca tem isso em comum: a despedida se impõe. Grandiosa e heróica ou banal e vulgar, o que importa é saber ir, saber ficar e, principalmente, saber usar luz e sombra pra mostrar o rosto no ângulo certo e deixar a mais bela imagem na memória do outro, depois do adeus.
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Essas não são as palavras que eu queria escrever. É que, de alguma forma, escrevendo esse texto de despedida e endereçando-o, ainda estou dizendo que meu mundo é você. Ou era. Até o momento em que selo o envelope. O tempo só nos aparece como uma constante linear e progressiva porque precisamos dessa ilusão para seguir vivendo. É preciso um depois do amar você. O certo é que, para pessoas como eu, para as quais o que não é dito se estende, as palavras são necessárias. A sorte é que são poucas, embora tenha sido muito o sentir.
Sabe, eu não costumo fazer planos. Mas os que faço são ótimos. São excelentes porque costumam não dar certo. E, não funcionando, trazem, juntinho ao fracasso, um mundo de possibilidades que eu não cogitava. É nisso que tento continuar acreditando enquanto desenlaço os fios que usava pra bordar minha vida na sua.
Não deve haver erro no que agora vou dizer. Eu tive todos estes dias para pensar. E quero dizer que lhe adoro. Jamais teria sido tão magoada sem lhe querer, tão mal, tanto bem. E por lhe gostar, não espero que você mude. Não altere seu estilo. As pessoas é que tem que decidir se querem continuar a seu lado ou não. E eu estou, francamente, desistindo.
Em algum momento entendi-o mal ou mal me fiz entender. Julgava ter, contigo, um relacionamento. Um relacionamento esquisito, frágil, incompleto, talvez amputado, mas sempre um relacionamento. Fiz esse julgamento em cima de palavras, claro, pois era basicamente o que existia entre nós. E não as resgato agora pra cobrar o que quer que seja, mas apenas pra me fazer entender. Julgava ter um relacionamento porque não costumo receber e enviar beijos, em especial saudosos ou por todo o corpo, inclusive atrás do joelho, de forma leviana ou circunstancial. Mas isso é coisa que você podia não saber. Julgava ter um relacionamento, também, por receber e enviar fotos e mensagens, até de pessoas próximas e queridas, que só costumo apresentar a outras pessoas próximas e queridas. Mas isso é, também, coisa que talvez lhe fosse desconhecida. E, ainda, acrescentava razão ao que eu julgava ser um relacionamento, os convites de ambos os lados pra se frequentar casa e cama, às vezes os dois.
Entendi, à força do meu pulso se acelerar ao receber suas mensagens e da besta no ventre agitar-se ao ver sua imagem, que talvez devêssemos um dia experimentar a sério o que eram promessas e ver no que dava. Não dá em nada, é o que percebo hoje.
É necessário dizer um adeus e, se houver um futuro, mesmo que não seja um nosso - nem mesmo em um fim de semana feliz, de quarto abafado e suor – é necessário que eu diga, também, que quando eu vier a encontrá-lo, daqui a alguns anos (sempre me parecerão anos, não importa quanto tempo venha a ser), desejo que meu coração cante com o encontro, como se fosse um bom presságio. Isso quer dizer apenas que, então, eu vou querer abraçá-lo e saber que sua vida foi muita boa.
De tudo que eu não digo, porque continuar a escrever é, ainda, o desejo de sua permanência, gostaria de poder dizer que você me partiu o coração. Daria a esta história uma poesia, uma beleza, uma tristeza que me são necessárias esteticamente. Não posso, meu coração está inteiro. Dolorido, é certo, mas inteiro. Queria poder, então, dizer que nada sinto e não me importo com este desfecho. Mas, para bem da sinceridade, isto também não seria verdadeiro. Dói dizer adeus a uma história que, aceito, não aconteceu. Reluto em não querer tuas mãos, tua boca, tua presença. Mas um homem deve fazer o que um homem precisa fazer, mesmo que esse homem seja uma mulher - e a mim, é certo, nunca faltou coragem. Adeus.
"Saímos do amor
como de um acidente aéreo
Havíamos perdido a roupa
os documentos
a mim me faltava um dente
a você a noção de tempo
Foi um ano longo como um século
ou um século curto como um dia?
Pelos móveis
pela casa
restos estragados:
copos fotos livros desfolhados
Éramos os sobreviventes
de um deslizamento
de um vulcão
de águas exaltadas
e nos despedimos com a vaga sensação
de termos sobrevivido
embora não soubéssemos para quê.
Cristina Peri Rossi (trad. Laura Erber)