Newscoisa #56: Domingo e outras cartas
Newscoisa #56: Domingo e outras cartas
"Vou pra rua e bebo a tempestade"
Domingo não é dia de, disse a Fal. Não é dia de saber você. Nem contar as histórias, mesmo em sussurros, que se empilham até quase me emparedar. Não é dia de me faltar o ar ou desnudar dentes em microalegrias. E sem saber que era, sem poder ser, fiz outro caminho. Foi dia de me espreguiçar na varanda e deixar que o sol germinasse sementinhas de dias melhores no já úmido território singrado pelas lâminas da impossibilidade. Dia de espantar os pesadelos com espantalhos montados em xícaras de café. Dia de antecipar azuis espiando pela tela um tanto de casas e mares e distâncias. Dia do juízo cantar alto os forrós da década de 90 pra aproveitar o eco dos corredores vazios no corpo. E quando já não era dia, espalhar úrsulas le guins e reportagens do sportv como amuletos para afastar os fantasmas do desalento. Mesmo quando já não era dia fazer um prato bonito. Alimentar as esperanças. Trançar o cabelo e jogar pela varanda o caminho para que chegue um inesperado.

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Escrevi cartas. Com caneta de ponta fina acariciando as folhas, as palavras pousando suaves e dançando na pauta do papel branquinho. Tão bom escrever cartas que não se esforçam pra não dizer tudo que quer ser dito. Cartas sem pressa de ser laço. Com entrelinhas confortáveis. Que não precisam ser nada mais do que elas mesmas, frestas do cotidiano. Cartas que falam de lua sorridente, redes cor-de-rosa, cheiro de refogado, conchas recolhidas em dias incertos. Cartas que flertam com o tempo, deixando-o confuso e fazendo com que o que se lê tão depois tenha, ainda, o frescor do quase impensado. Gosto de livros de correspondência. Do sem jeito apaixonado das cartas de Simone até a amizade reconfortante de Clarice e Fernando Sabino. Das reais como as de Zelda, das inventadas como em Relações Perigosas. Gosto de livros de cartas. E li muitos. Mas a poucos li tantas vezes quanto li um brevíssimo livro juvenil chamado Ana e Pedro. Se conseguisse entender porque volto tanto a ele, talvez entendesse muito mais do que o necessário sobre mim mesma. Aproximando-me só um pouco do abismo, sem dar tempo para o chamado da vertigem, conto que gosto do que é dito e do que não precisa ser. Tanta verdade quando Ana/Vivina diz que nos damos a conhecer não só pelas palavras que usamos, mas pela letra também. E tem a brincadeira com o sobrenome de Ana T. Gosto que gostem de escrever um ao outro. Cartas que eu gostava de escrever: as declarações de amor das minhas amigas, em nossa adolescência e juventude. Elas me diziam o que sentiam e eu descrevia em comos nas longas epístolas (para o amor juvenil, uma certa solenidade porque se leva tudo tão a sério). Fruir o sentir alheio sem precisar colocar o coração na roda me garantiu um certo aprendizado. Depois, minha letra redonda, minha escrita afetada e, por trás delas, algum encanto que manteve o vai e vem de afetos sustentados mesmo à distância. Hoje escrevi cartas como aquelas, sem filtro ou esforço, apenas pelo prazer de dizer.
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Memória é como a pele que recobre um corte: cicatriz.
Status: reconstruindo aquele Vilarejo, cantado por Marisa Monte, no descampado do peito.
O importante, quando na areia movediça, é não se afobar.
Eu perguntei. Com aquele desejo envergonhado de que a resposta fosse brecha. Mas você passou a chave. Tal qual um cover mal feito eu escorrego pela porta sem os agudos de Elis.
Esta semana teve rinha de millenials contra geração z. Poderia dizer que acompanhei tudo à distância pois #velha, mas nem isso seria verdadeiro. Não acompanhei. Não sei o como nem o porquê e só fiquei sabendo o "o quê", com atraso.
Eu gosto de muitas e muitas coisas no meu corpo (além de gostar muito dele, como um todo), mas tenho que dar destaque pras essas pintinhas no nariz (sardas?) e para os risquinhos que se evidenciam do lado do olho quando sorrio.
Dia de promoção na Amazon. Eu sei, eu sei, Jeff Bezos. Aceito toda crítica de quem morar na mesma cidade em que eu moro. Mas, dizia eu, promoção. Comprei amaciantes. E dois livros. Investiguei o que fazia uma Alexa mas não é pra mim, embora admire um rádio-relógio que faz companhia para esquecidos de todas as idades. É pra quem vive em um mundo muito mais adiante que o meu, em que faz sentido falar em voz alta e a casa reagir.
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Você quase sempre me pergunta sobre o que fiz no dia e eu reluto, disfarço e mal respondo. As palavras parecem roupas grandes demais para as miudezas, daí elas se inibem de aparecer mal vestidas e terminarem fazendo papel de bobas. Palavras pra dizer que hoje me deu vontade do teu colo, do teu olho, de você, quais são que não pareçam demasiado solenes ou exigentes? Enrodilhada na lembrança do abraço que me cabe tão certo, dizer que acordei com o pé frio, pensei em encostar em você e me esquentar e, ao pensar nisso, me encolhi na cama e fiquei vendo o sol iluminar o azul profundo da janela. Tive vontade de contar que fiz café e ele estava tão ruim, mas tão ruim, que eu ri alto e só consegui beber disfarçando o sabor na lembrança dos seus movimentos fazendo o pequeno almoço em qualquer hora que venha a ser a nossa manhã. Depois, troquei de roupa, desci e fui ao mercado. O grande, aquele perto da igreja. Andei vendo os peixes, as verduras, os queijos. Sentindo os cheiros. Tão estranho o que se tornou íntimo tão rápido. Tal como você. Comprei morangos. Havia sol, mas o vento era frio e assanhava meu cabelo. Como você faz. Respondi e-mails, escrevi pra minha família, corrigi o trabalho de uma amiga. Senti sua falta entre um coisa e outra. Pensei em almoçar, mas preferi comer os morangos que sujaram meus dedos, mancharam a minha boca e me transportaram para o Porto, naquele dia de cerejas, morangos e Bethania. Coloquei roupa na máquina, lavei a louça do café e a cumbuquinha dos morangos. Os pequenos afazeres são âncoras. E começou a chover. Forte. A água batucando na janela e criando desenhos aos quais eu tentava dar sentido. Não fiz mais nada, só sentei no sofá vendo a chuva, com uma certa vontade de chorar, nem tudo saudade, nem tudo tristeza, um aperto de ser bonito. Depois sol, sol, sol e era hora do computador e de preparar os slides da minha apresentação. Te escrevo entre a memória e a intenção. Vou, daqui a pouco, até o Jardim tomar um café melhor, curtir a bagunça na pequena lagoa, espiar o verde voltando. Pensei em levar um livro, O Livro, mas desisti. Quero só sentar lá e deixar o tempo se distrair. Esvaziar-me e me deixar ocupar pelo desejo feliz de te receber, hoje em anseio, breve em casa e corpo. Deixar o dia, que é estranhamento longo e se estende depois das 18hs, se desmanchar lento entre risos de crianças andando de bicicleta, murmúrios de idosos alimentando patos e variadas idades em ruídos junto ao balcão da pequena lanchonete. Mais tarde, além do depois e do café e do Jardim, farei massa com cogumelos e bacon. E me lembrarei de novo de você, antecipo. Estudarei mais um pouco, lerei os blogs amigos e esperarei ver você, um pouquinho, no Skype. E, assim, é menos um dia, menos a sexta. Depois, menos o sábado. Menos o domingo. E mais você em mim.
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Eles trocavam cartas. É que precisavam que o largo do tempo entre uma mensagem e outra se tornasse espaço pro bem querer que crescia tanto entre os dois, para os dois, nos dois. Para caber. Para saber lidar. Numa contradição que os encabulava, quanto maior ficava o bem querer – e mais espaço exigia na vida de cada um – menos espaço permitia entre um corpo e outro, quando se encontravam. Então eles trocavam cartas, escreviam palavras que nunca bastavam e guardavam nas entrelinhas todo amor-e-desejo-e-vem-viver-em-mim enquanto cobriam páginas com futebol, dias de sol, descrições extensas do local de trabalho e sonhavam viagens de encontro quando o que queriam mesmo dizer era sobre perder-se um no outro. Uma certeza ela tinha: precisava de uma escrivaninha com gavetas maiores ou uma saudade menor.
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Já que estou tratando de cartas, uma fresta:
Cada deck de tarot tem suas cartas mais bonitas, mais instigantes, mais isso ou aquilo. O que se mantém constante, pra mim, é o fascínio da Roda da Fortuna e o belo pungente no 3 de espadas. Ainda não conheci uma versão destas cartas que não me toque (não, eu não sei ler as cartas, mas não há muito mistério em um coração transpassado ou no girar de uma roda... a gente olha e sabe: dói; a gente olha e canta: tudo que sobre, desce, tudo que vem, vem e volta... nenhuma dor sempre será)

“Do meu coração ela fez almofada furadinha de alfinetes"
(Dalton Trevisan)