Newscoisa #57: As coisas que o Fabiano sabe e esse espanto apaixonado diante d'A palavra que resta de Stênio Gardel
Newscoisa #57: As coisas que o Fabiano sabe e esse espanto apaixonado diante d'A palavra que resta de Stênio Gardel
Como eu disse no twitter: se o Fabiano Camilo te indicar um livro, leia (mas garanta a caixa de lenços ao lado, just in case). Foi ele que me falou sobre A palavra que resta e até leu um trecho pra mim. Mesmo com toda dificuldade que ando tendo pra ler como antes da infinitena, corri e comprei o meu. Vai que. E foi. Fui. Porque o livro é correnteza.

A palavra que resta é um livro incrível. Queria poder presentear todos que amo com um exemplar. É, também, um dos poucos trabalhos que invejei, aquele sentimento que mistura a admiração deslumbrada, um susto gostoso e a vontade de ter feito aquilo. Há muitos autores que respeito, há muitos que livros que aprecio. Mas esse tem, na escrita, um algo que ecoa como possível em mim. A forma como as palavras se encontram, se alinham, se enlinham, se afagam é de uma beleza que me é familiar e estranha. Estranha porque tecido único, próprio do autor; familiar porque em ritmo que reconheço, talvez um certo sotaque cearense.
Sim, eu estava esperando a oportunidade de dizer que Stênio Gardel é cearense, me julguem.
(destaco, para que não haja mal entendido: o bonito que há é trabalho do autor ao saber contar uma história, ela mesma dolorida, triste, sobrevivente, de gente teimosa que insiste em sobreviver e fazer belezas, elas mesmas, ali onde tanto se faz aflição. Tal como Stênio e muitos outros artistas cearenses).
Eu percorri as 149 páginas soluçando. E sou grata por ser capaz de sentir.
se você se importa com SPOILERS não leia a partir daqui
Não é só querer alguma coisa. É querer alguma coisa com alguém. Ou de alguém. Gaudêncio queria aprender a ler e escrever, mas queria mais, queria que Cícero o ensinasse. Porque amar é dar o que não se tem etc (beijinho, Lacan), já entendemos, mas como saber-se amado? Talvez imaginando ser possível receber, do outro, uma dádiva que tornasse completo, que encerrasse a dúvida, uma dádiva que fosse, ela mesma, passado e futuro. Fantasiando o impossível. Sustentando a demanda de que produza um saber sobre aquilo que não quer ser sabido. Ao negar-se o aprendizado, Gaudêncio desresponsabilizava-se do dizer-se e podia, aí, sustentar qualquer narrativa, não como liberdade (pois era dito pelos outros), mas como um vagar (tal como seu trabalho de chapa, o movimento disfarçando a imobilidade interna).
A transição que Gaudêncio faz é uma experiência subjetiva bonita que nem sei dizer. Quando ele enfim decide aprender a ler, apesar de ter Cícero como uma espécie de móbil e companhia, tem um além. Mais do que saber enfim, as palavras de Cícero, é o momento de se apropriar de palavras para si. Para se nomear. É bonita demais a sequência em que ele se prepara para trocar de carteira de identidade, agora podendo assinar seu próprio nome. Fiquei com a sensação de que se decidir a aprender a ler e escrever derivou e determinou, ao mesmo tempo, a superação da necessidade de sentir-se completo recebendo apenas de Cícero a capacidade de contar/criar/ter uma história. Assim, decidir-se pelo aprendizado foi possível apenas quando Gaudêncio saiu do lugar de transição e movimento aleatório trabalhando como chapa, quando construiu novos laços, quando foi capaz de voltar para o lugar de origem e dar sentido em um para além da culpa e da insuficiência, quando encontrou-se no trabalho que realizava, quando criou outro núcleo de afeto.
No encontro/embate com Suzzanný - um pequeno intervalo para louvar o trecho em que Gaudêncio se pergunta sobre os “excessos”, o “desnecessário” das letras dobradas no nome de Suzzanný e o autor nos presenteia com um discreto toque sobre a beleza da individualidade, de abraçar o que é único e fazer, disso, nome próprio:
"...não sei pra quê é dois zês e dois enes se só dá pra pronunciar um, não é como o "r" e "rr" ou "s" e "ss", pra diferenciar, tanta letra só se for pra ser diferente, que não tem em qualquer canto e quando a gente vê não esquece mais, que nem a dona, e não pode esquecer o acento no "y", senão fica Suzzânny, Ai, abuso só de ouvir Suzzânny, é Suzzanný, que custa?, verdade, Suzzanný" -
Gaudêncio se pergunta se a violência emerge nele por ela lhe ser igual ou por diferente e é no reconhecimento de que são, concomitantemente, semelhantes e diversos, alvos e potência, que ele se vislumbra e vai conseguindo dar sentido à violência que ele mesmo sofre(u) e vai se cuidando ao descobrir-se capaz de cuidar dela. É um livro que se volta para os traumas, para o sofrimento, para a angústia que constitui uma certa experiência de marginalização e exclusão? Pois claro. Mas tem essa brecha, sabe? Do bonito que é se permitir encontrar de verdade alguém. E o afeto que vai sendo construído neste novo grupo (e tendo Suzzanný como catalisadora) é belo e forte justamente porque não ignora a diversidade em nome de um certo Nome e norma natural, mas se nutre da intenção e do esforço.
Mais do que uma carta guardada a vida inteira, diz-nos o texto, é uma carta que guardava toda uma vida. Não, suspeito, pelo que ela continha, mais pelo que ela provoca. No cinema, tem-se o MacGuffin, um objeto, uma pessoa, um evento que mobilizam toda a ação, que tem muita importância para os protagonistas e que, no fim das contas, se mostra irrelevante em si mesmo, sua relevância vem do próprio fato de toda a trama girar ao redor dele. Não vale tanto o que é, mas o que representa, o que motiva e leva a narrativa pra frente. Num olhar mais ligeiro pode-se pensar que a carta de Cícero é um MacGuffin, mas me parece que além de apressada é uma conclusão equivocada. A escolha do autor de não apresentar um conteúdo final para a carta não indica a irrelevância do que ela é em oposição ao que ela representa. Ela representa pelo que ela, justamente, é. Mais que uma mensagem, uma mensagem escrita. Algo que se coloca como enigma também em sua forma, não apenas em conteúdo. O que ele carrega no envelope cerrado é a escrita tanto quanto o dito, até ser a escrita, ela mesma, mais e maior do que o dito poderia ser naquilo anteriormente escrito. Um aprendizado imenso pelo que a escrita pode vir a dizer, não pelo que decifra. Quando enfim Gaudêncio se viu pronto para lidar com o que quer que Cícero tivesse tencionado transmitir, o que quer que isso fosse já era menor do que sua prontidão. Saber o que a vida poderia ter sido é menos relevante do que reconhecer a vida que é.
O vai e vem da narrativa lembra o atual do inconsciente. Tudo ao mesmo tempo já. O passado não é apenas memória, é um agora no corpo, nos medos, desejos, pensamentos e sentimentos do personagem. As corcundas são hoje nas costas cansadas, mas o são pela história de carregar e descarregar caminhões tanto pelo peso da cruz de repetir a infelicidade de sua família. Um ontem que é enquanto Gaudêncio for. Também o futuro está espalhado em todo agora, em cada ato que é, pronto pra ser criado em seu ineditismo, mas resultado de cada ação do então. E é o contar-se que vai dando a materialidade e o sentido do vivido. O autor – e, um dia, Gaudêncio – dominam a materialidade da palavra. “Escreveu ao lado do nome, o nome dele. O final era com “u”? Com “o” ficava mais bonito. Seis letras só, mas cabia tanta coisa que era pesado. Feito a cruz, [Cícero] começava com c, como coração e cu.” O que as palavras dizem importa tanto quanto o como dizem e é por isso que a diagramação do livro é um deslumbre a mais, não uma firula, mas uma imposição do concreto da narrativa. Achei um trecho de entrevista que ilustra e expande essa minha sensação, Stênio Gardel diz: “a escolha dos nomes dos personagens é sempre um momento importante e também divertido no processo de escrita. Procurei nomes que dissessem alguma coisa para além do nome em si. O Raimundo, como todos nós, é um mundo inteiro, então gostei que ‘mundo’ estivesse no nome dele. Além disso, possui também ‘imundo’, que é uma palavra significativa para a história dele”.

(escolhi esta foto do autor por motivos de: rede)
São complexos os personagens do livro e cada um parece pronto para sair das páginas e estre(l)ar um outro texto como protagonista. Interessa-nos suas histórias, suas paixões, suas nuances: além do próprio Gaudêncio, Marcinha, Damião e Adalberto, Caetana, Sazzanný, Cícero, Solange, Alex, não importa quão poucas ou tantas vezes apareçam na narrativa. Em certo momento do livro (e não demora), importa-nos menos o que vai acontecer e mais com quem acontece. E construir personagens que nos conquistam, em um texto que faz com que nos importemos verdadeiramente com eles, é um dos talentos de Stênio Gardel, tão grande como a habilidade de apurar as frases, ourivesaria meticulosa. Em alguns momentos em que mistura tempos, oralidade e escrita, memória e anseios, é puro kintsugi, une tudo com ouro.
É um livro sobre exclusão. Sobre homofobia. Sobre a violência a que são submetidos os lidos como diferentes e, assim, marginalizados, silenciados. E isso já é imenso, pela delicadeza e intensidade com que trabalha estes temas sem amedrontar-se ou escorregar para saídas fáceis, personagens e tramas esquemáticos. É também um livro sobre prazer, medo, desejo, rejeição, solidão, afetos que, caudalosos, podem ser ameaçadores como a cheia de um rio e, também como ela, podem ser lembrança nostálgica e idealizada. Um livro sobre vulnerabilidades e vínculos, sobre violência na história familiar e sobre a beleza dos encontros e dos novos laços e cuidados possíveis. E é, para mim, principalmente um livro sobre escolha (não só de ler ou não a carta mas assenhorar-se do tempo/espaço que é existir) e sobre a potência emancipatória da capacidade de narrar.
Lendo A palavra que resta pensei em Central do Brasil. E por um momento fiquei achando que, claro, tem carta, né. E sertão. E margens. Mas não é isso. Ou não só por isso. É a ternura com que se trata os personagens. E a coragem, deles, do autor e a que nos convoca.
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As coisas que o Fabiano sabe: beijar na boca, indicar bons livros, ser presente na vida dos amigos, fazer nudes, escrever textos instigantes, encontrar promoções de livros, cativar, a diferença entre chá e infusão. Ser maravilhoso.
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Mesmo depois de tudo, eu ainda quero te proteger. Do mundo. Dos outros. Das palavras, duras, mesmo que elas nunca cheguem a você. Dos pensamentos, condenatórios, mesmo que você nunca os venha a conhecer. Eu ainda tento te proteger de mim. Principalmente, especialmente, eu ainda tento te proteger de mim. Mesmo que você seja grande, forte e use esta roupa impermeável e eu seja fraca de marré, marré, marré, eu ainda tento de proteger de mim, eu te adivinho um Aquiles invertido, que só mergulhou o calcanhar, vulnerável e desprotegido e eu ainda tento te proteger de mim. Ainda escolho as palavras mais leves. Ainda dou voltas nos ditos. Nunca bato a porta. Nunca exijo a chave. Desculpa aí qualquer coisa, essa coisa que pesa em cuidado no meu peito. Eu devia te amar melhor. Eu devia amar melhor, ponto. Eu não sei como, então monto barricadas para me impedir de avançar. Mas não basta. Tenho boa mira e munição, vejo apagar o brilho em olhos onde eu já desejei desejar morar. É isso, eu me distraio com demasiada rapidez. Trago a crueldade na algibeira. Eu tentar te proteger de mim nada mais é do que o reconhecimento de que é tarde demais. Meu exército invadiu o seu país. Música antiga, trocadilhos bobos, eu não consigo nem te proteger da piada ruim. Então evito as verdades. Disfarço cenários. Aponto atalhos. Coloco o cobertor nas tuas pernas, velo teu sono, confiro o horário dos remédios, invento desculpas, aceito reprimendas, acolho o deboche, assumo culpas sobre nada. Palavras fáceis, gestos mansos e, ainda assim, a faca sempre mais afiada, o movimento sempre mais rápido, a estocada sempre mais precisa. Eu ainda tento te proteger. Uso meu corpo de escudo. Ainda tento te proteger. Sigo aparando os golpes. Preocupo-me ao ver sangue. Respiro aliviada: é meu.
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Voltei a escrever no Cais de Saudades: Infinitena #dia464 #dia01 e Infinitena #dia466 #dia03
Se a vida é um jogo, eu preferiria que fosse aquele curling raiz que a galera jogava com o varredor em uma mão, a cerveja na outra e o cigarro no canto da boca.
Tem toda essa vida que eu não vou viver e que, em certas noites, me assombra como um fantasma herdado por acaso. Toda essa vida que eu não vou viver, que eu escolhi não viver, esta vida dói em certas noites como se fosse a única vida possível de ser vivida. Toda essa vida que eu não vou viver e que, ainda assim, é minha, uma eu possível. Uma vida que não existe mas em certas noites me lembra o impossível que é essa vida minha que é.
O Zé Roberto é meio como o Chico Buarque, pra mim. Eu aceitaria qualquer coisa (eu sei, nada me será oferecido, estou só explicitando a disposição). Gosto de tudo, de como se move, de como fala, do grisalho nos cabelos e do ar de quem sempre está meio perdido, meio carente. Oi, meu Zé Velhinho.
Status: abraçando o mundo com as pernas, pernas pra que te quero, um passo maior que as pernas.
“Nada do que é humano me é estranho”, uso muito pra acolher os moços.
Eu digo sim. Para todas os caminhos que não vamos percorrer juntos, para as camas que não partilharemos, para as memórias que não teremos, para as promessas que não faremos.
Lembro Kundera e aquele lance de que é uma angústia que a vida não tenha ensaio nem esboço. Eu gostaria de ter vivido, também, aquela vida que seria nossa.
Tudo em technicolor tem um charme estranho, até a desesperança. Como bem sabia Clarice. Ou como eu gosto de pensar que ela saberia.
"Você lembra, lembra, naquele tempo eu tinha estrelas nos olhos, um jeito de herói...". Desculpa, do que você está falando mesmo? Não lembro não.
A sorte, o aumento, alguma coisa mais linda que o mundo, a festa, o carnaval, a morte. Nesta ordem. Com alguma sorte, a alegria de poder, vez em quando, esperar você ou um trem.
Minuto de Sabedoria
(contribuição da querida Fal):
