Newscoisa #58: A generosidade da Renata, o que me comove em Crepúsculo dos Deuses e livros que são companhia e livros que pedem companhia. Ou, sim, eu estou amando a autobiografia do Woody Allen, mas o bom pode doer.
Newscoisa #58: A generosidade da Renata, o que me comove em Crepúsculo dos Deuses e livros que são companhia e livros que pedem companhia. Ou, sim, eu estou amando a autobiografia do Woody Allen, mas o bom pode doer.
"O pobre coitado sempre quis ter um piscina.
Bem, no fim ele conseguiu uma”
Eu tenho essa amiga. Que já elogiei de tantas formas e sempre me parece insuficiente. A Renata me sabe muito. Adivinha o tanto certo de palavras pra me fazer sair do casco sem bater acintosamente nem deixar pra lá. Ela me encontra quando eu mesma nem sei onde me perdi. E não é, eu sei, porque é fácil ou óbvio pra ela. Temos comuns, claro: Agatha, por exemplo. Mas mesmo em alguns comuns, temos os nossos comos diversos. E há a diferença. Seja na estrada que trilhamos até o encontro, seja em gosto, expectativa, preferência. Forma e conteúdo. A generosidade dela atravessa tudo e segura minha mão. Foi ela que disse: olha só essas conversas sobre filmes, agora já falei de Casablanca, estou aqui falando de Crepúsculo dos Deuses e lembrando porque sempre gostei muito desse filme. Foi ela que disse: li a autobiografia do Woody Allen e tal e coisa e agora estou lendo também e já fui da euforia à solidão. E, sem nem precisar dizer pra mim, gente, meu irmão fez um livro e é o Marcelo Lins e seu “Um longe perto” que tem servido de bóia quando não consigo mais ler o Woody sem sentir que estou me afogando na tristeza de ser só e eu mesma, ou ainda, ser só eu mesma.
“Não precisávamos de diálogos. Tínhamos rostos." Gosto demais de Crepúsculo dos Deuses. Não sei se bonito é um termo que se aplique. É um filme tristíssimo. Hipnótico. Cativante. Norma é uma personagem que provoca, ao mesmo tempo, uma certa repulsa e alguma compaixão. Ser esquecida é tão, tão difícil. Especialmente depois da ilusão de eternidade. Eu entendo completamente (vejo gente correndo, agora, tchau meu povo) a atração que criar e sustentar a fantasia de ser novamente amada exerce sobre ela. Entendo a necessidade que se impõe de barrar toda contradição, todo indício de que o que se julga viver não é o que há para ser vivido. Ela não atira, penso, para evitar que o rapaz vá embora, mas para evitar que a ida dele conte uma história outra que não a que ela necessita para se manter viva. Afinal, a uma estrela ninguém quer abandonar, se ele mantém esse desejo logo ela não é uma estrela. Insuportável. Norma é uma espécie de assombração (não por acaso sua primeira aparição é uma não-presença, voz sem corpo, uma convocação de um lugar além). Ela concentra um mistério. Ou vários. Do que é a fama. E de como se pode perdê-la. O que é o belo. Qual o poder da imagem. E o da palavra. São mesmo os poderes da imagem e da palavra ou, simplesmente, da indústria (já que quando Norma volta ao estúdio basta o holofote iluminá-la para voltar a ser “vista e admirada”)? Uma busca simples no dicionário, assombrar é causar assombro, deixar atônito; espantar, aterrorizar, consternar.

Deixar atônito; espantar, aterrorizar, consternar. Tudo pertinente quando se trata de Norma, desde a festa de ano novo apenas para os dois até as tentativas de intimidar, com dinheiro ou morte, além da consternação que acompanha quem se vê junto de uma pessoa com tão pouco senso do que é real na sua vida cotidiana. Também no dicionário: maravilhar, causar admiração. E é inevitável reconhecer um encanto em Norma. Quando imita Chaplin, por exemplo. Ou o que se evidencia na relação com o mordomo. Max é um personagem muito interessante. Primeiro marido, antigo diretor de Norma, ele se anula, aos seus anseios e eventuais talentos, para manter a vida dela em um estado “ideal”. É interessante por ele mesmo e interessante por fazer pensar no charme que Norma devia ter para manter uma pessoa nesse tipo de relação/dedicação. Joe Gills, bom, Joe é o substituto do macaquinho (eu sempre me espanto como as pessoas comentam coisas absurdamente transparentes como se fosse uma grande sacada que só a pessoa teve ou teria). Falei, em uma garrafinha passada sobre Casablanca. Quando Rick renuncia à Ilsa, é tudo verdadeiro e forte e temos amor e redenção enlaçados. A tentativa de Joe de abrir mão do amor de Betty em busca de alguma dignidade é, como tudo o mais no personagem, titubeante e incompleto (não pensem que desgosto do personagem, gosto demais, mas não por ele ser o que os grandes e fortes demonstravam ser, mas justamente por suas falhas e pecados). Acho engraçado que Joe se encante com Betty quando é tão parecido com Norma, no que se refere ao trabalho. Betty é flexível. Corrige nariz. Corrige carreira. Corrige o texto alheio. Acha possível equilibrar a chama de quem escreve e as necessidades padronizadas da indústria. Norma, ah, Norma não se curva. Inflexível, só vê um único caminho possível: o dela. Pra ela. Joe acha que deve ser como Betty, mas notamos que ele também é orgulhoso: “talvez [meus roteiros] não estejam sendo originais o suficiente, talvez estejam sendo originais demais. A única certeza é que eles não vendem”. É um pouco cínico, mas é preciso apontar: menos comoventes, mas mais sobreviventes, os personagens que se adaptam.
A direção desse filme é de Billy Wilder (assim como o roteiro) então nem adianta ficar procurando adjetivos além de primoroso pra todo o trabalho realizado. Mas um intervalo pra falar dos planos sequência é sempre bem vindo. Plano sequência vive no limite entre uma exibição esnobe de técnica (olha o que eu sei fazer, mamãe!) e uma imposição narrativa que demanda um recurso que nos carregue, respiração suspensa, até um ponto relevante. E é claro que nos filmes de Wilder a segunda opção é sempre a correta. Como o plano sequência dos créditos iniciais, o plano sequência curto mas envolvente que culmina no beijo de Joe e Betty ou a revelação da depressão de Norma apresentada na ausência de remédios, fechaduras e coisas afiadas que Max evita ter em casa.
Outra evidência do enorme talento de um dos maiores diretores de todos é o uso da luz/sombra para ir além de dar o “clima” da história, pra contar a própria história. Como naquela cena em que Norma e Gil assistem um antigo filme em que ela é a protagonista, ela fica em pé e a luz do projetor incide sobre ela como holofotes. Sabemos, ali, como Norma se sente. Ainda a estrela. E isso vai ecoar próximo ao fim do filme e dar substância à conclusão de que ninguém deseja, nunca, afastar-se de uma estrela. Isso é usar a luz pra levar a história adiante. A sombra também tem seu momento de brilhar (#desculpem): a cena em que Max espera, quase numa tocaia, o retorno de Joe e, naquela conversa, revela que foi marido e diretor de Norma. Acho que essa é a cena mais escura do filme. As sombras dançando sobre os personagens enfatizam a tensão da situação, mas não só, elas apontam que para se tornar quem se é, servil e pronto pra facilitar a vida de Norma, Max precisou abrir mão de partes de si, que agora são relegadas à escuridão e ao esquecimento.
E olha que nem falamos da piscina pra ele ou dos espelhos pra ela. Billy Wilder, roteirista e diretor, não maneira nem deixa barato: cuidado com o que você deseja num nível hard.

Crepúsculo dos Deuses é um filme sobre decadência, é a observação mais recorrente. Sobre como a indústria cinematográfica mói gente. Também. Sobre a espetacularização da dor e a indiferença ao humano. Sobre esgotos e submundos, como revela o primeiro contato que temos com o filme. Sunset Boulevard não pelas belas casas, mas pelo seu meio fio e canaletas. Mas me toca principalmente por debruçar-se sobre os fracassos. Éticos, estéticos, profissionais, amorosos. Todos. Tantos. No fim de tudo, Joe Gillis diz que a vida foi benevolente com Norma. Podemos sacudir a cabeça, incrédulos: presa, louca, solitária. Mas se afastarmos o véu do evidente, as luzes, a atenção, o direito à última cena, tudo isso é cruel pelo que diz de quem explora o drama e de quem se regozija com ele no noticiário, mas e para Norma? O que significa, pra ela, uma última cena grandiosa, atenção e luzes e flashes?
Muitos repetem que o poder do filme de Wilder está em revelar uma Hollywood não tão glamourosa como se imagina. E, vá lá, isso certamente teve seu impacto em 1950. Mas quem de nós, hoje, tem ilusões sobre o glamour de Hollywood? E quem de nós consegue ver este filme e não se emocionar com sua magnitude? Crepúsculo dos Deuses é muito mais que uma denúncia sobre a indústria do cinema (embora, sim, esteja isso lá, claro). Seu magnetismo, penso, está muito mais ao desvelar o humano lá e cá. Fraquezas, vaidades, anseios. A relação disso com o material, sim. Precisamos, tal como Joe, pagar as contas. Vulneráveis. O horror, o horror. E também a beleza.
É um filme que me deixa orgulhosa de ser uma dessas “pessoas maravilhosas aí no escuro” [e quando Glória fala isso é muito menos para as platéias fictícias de Norma e muito mais para mim e para você, sempre que nos curvamos ao seu retorno magistral – quem não admira o uso perfeito que esta estrela de cinema mudo usou no filme inteiro? A voz infantil na cena pós-tentativa de suicídio, a voz ameaçadora ao telefone tentando acabar com o envolvimento de Joe e Betty, a voz fantasmagórica no primeiro encontro com Joe, todas as nuances ao longo do longa (#desculpemdenovo)]. Mas a vida não é só deixar-me enlevar e aprender e sentir nos e com os filmes. Daí de vez em quando me sinto Norma, debruçada na balaustrada me perguntando: mas que cena é essa? E faço o possível pra descer a escada oferecendo meu melhor ângulo para o Sr. De Mille.
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Ainda sobre as aulinhas de cinema, curti bastante os encontros, mas devo confessar que a melhor das quatro, pra mim, foi sobre o filme que eu (cof, cof) gosto menos. Talvez por ter me feito entender ainda mais porque, sendo um filme não tão gostável como os demais, é tão imenso. Ou, talvez, justamente por não mexer tanto com o sentir de todos nós, permitiu mais tempo de conversa sobre os comos, os caminhas do filme, sobre recursos e técnicas empregados.
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Então chegamos aos livros. Comecei a ler a autobiografia do Woody Allen e foi tão bom. Uma escrita tão certa. As pessoas, os eventos, o humor, tudo tão feito pra mim. Página após página após página após página aquela sensação de sim, Sim, SIM, SSIIMMMMM. Até que comecei a me sentir muito, muito só. Só desse você que nem existe, mas de quem vislumbrei fragmentos em um e outro (e me iludo imaginando completo aí, no tão longe, no tão incerto, fechado nos seus nãos e tristezas e coração falhando). Só de alguém. Ler, ver filmes, nascer, morrer, escrever uma tese, um livro, um bilhete, há tanto que é solitário. E tudo bem, a gente vai levando e até canta com Chico e Caetano. Mas há solidões insustentáveis. Como a vontade de ler trechos desse livro pra alguém e ver o olho acendendo que nem eu sei que o meu acendeu sem nem precisar de espelho. Não é gostar do livro e alguém gostar também. É a gente se encontrar no que gostou. Preciso ir devagar, agora. Parando quando sufoca.

Mas é provável que vocês se interessem por algo além da viagem comigo nas sensações que a leitura me provoca, então recomendo o livro pelo humor que ri do humor autodepreciativo que pratica, num inception de rir de rir de si mesmo que me é muito caro. A escrita rápida, as viradas inesperadas e instigantes, os personagens falhos e cativantes, tudo isso está presente na narrativa como em um bom e já nosso conhecido trabalho de WA. Lamento demais que o título tenha sido desprezado na versão em português, A Propósito de Nada é um título perfeito para uma autobiografia. É preciso fazer vazio pra deixar os deslizantes significantes operarem. Não é o tudo que se conta, mas o nada que se preenche com as histórias, com as memórias, com as palavras. Quanto mais se sabe o tanto que ele fez, viu, viveu, mais faz sentido o título. Não é apenas uma brincadeira cínica – embora, também. É um libelo à narrativa. Quem procura informações sobre o método de trabalho vai se decepcionar (pelo menos até onde li), mas quem se anima em encontrar no livro o encanto, entretenimento, o engano, a mágica que ele repetiu filme após filme após livro após filme após livro após filme, olha, está bem servido. E fofocas, temos muitas. Se é evidente que ele minimiza a vida profissional e amplifica os afetos, também o é que ele faz isso com talento e clareza. Relações me interessam, afinal. Aparentemente desordenada, a autobiografia de WA traz uma lógica interna esperta: nossa memória não opera de forma linear, porque deveria ele contar do que se lembra em linha reta? E se há algo sombrio com o qual nos deparamos em algumas esquinas d’alma dele, bom, não há noites em todos nós? A forma livre com que ele consegue viver com as decisões que tomou me acerta em cheio. Quero gostar porque me identifico? Que seja. Gosto e gosto mesmo.

Não terminei a leitura talvez volte a comentar quando terminar, por enquanto deixo meu obrigada, Renata, não só pela indicação do livro do Woody Allen, mas por ter um irmão que me ofereceu a mão – em forma de outro livro – pra me tirar da angústia de não poder ler com um alguém. Porque o livro do Marcelo Lins é toda a companhia de que se precisa. Também não terminei de lê-lo, mas não porque precise de qualquer pausa além daquelas para sorrir, pensar, respirar fundo, refletir. Um livro com sabor e só não com cheiros por pura incompetência minha, como leitora. Um texto com detalhes, daqueles que parecem deslocar o olhar, nos fazendo ver como nunca vimos. Mais, como nunca pensamos ver. Um texto rico, de quem tem referências, estofo e – invejo demais – memória para citar trechos de um frevo, ditados ingleses, voltar ao quintal da casa do avô, características do Mar Morto, sem falar de nos contar que a Renata lia pra ele quando ele nem sabia ler. A minha Renata (que se fosse em quantidade, seria mais dele que minha, mas em fundura cada um tem uma, única, própria). O nome do livro é “Um longe perto”, da Agir Editora e tem pra vender na amazon também. Tal como a autobiografia do WA, ainda estou a meio, então talvez volte a falar sobre (eu sei, gente, mas é tese do Chicó, só sei que foi assim).
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Na editoria limite entre real e ficção + diarinhos da Fal, voltei a escrever regularmente no blog Cais de Saudades. Rolou aquele post da Samarcanda Particular, aí teve um intervalo e, depois disso, todo dia pode ser dia. Já fomos de:
Pão e Poesia para uma rainha delicada ou Infinitena #dia471 #dia08 #dia226nocalendáriokalúnico*: catar conchinhas, a música, o sorriso, coque samurai, Simone cantando e o agricultor de sentimentos.
Infinitena #dia470 #dia07 #diaZeronocalendáriokalúnico*: Loki, um pouco da biografia do WA, expectativas, livros chegando.
Infinitena #dia469 #dia06 #dia02e1/2nocalendáriokalúnico*: não aprendi a descascar camarão sem os pequenos cortes espalhados pelos dedos nem aprendi a querer assim sem os grandes talhos na alma.
Infinitena #dia468 #dia05 #dia307nocalendáriokalúnico*: vaidade, sol, cigarros, cibalenas vencidas e o esperar as Olimpíadas,
Infinitena #dia467 #dia04 #dia331nocalendáriokalúnico*: mensagem da amazon, milho, amanhãs e selfies. Ah, tirinha das cobras.
Infinitena #dia466 #dia03: There are worse things I could do e o ponto de inflexão, a caminho de ser um tantinho mais leve e livre
Infinitena #dia464 #dia01: um tanto do cotidiano, insere aleatoriamente Ursula Le Guin e termina com Teresa Cristina.
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Antes ninguém comentava e eu não me importava. Daí vocês comentaram e eu me acostumei (eu me acostumo fácil com o que é bom). Aí vocês não comentaram mais e eu estou me sentindo péssima (#dramática). Então isso é uma mescla de sugestão, pedido e dica: comenta aí, meu povo.
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Vacinada e tudo, mas segue a infinitena:
