Newscoisa #59: Pernas pra que te quero ou Moderno é amar
Newscoisa #59: Pernas pra que te quero ou Moderno é amar
"No amor, as mulheres são profissionais;
os homens, amadores"
Eu amo Os Incompreendidos, de Truffaut, sempre que termina fico com os olhos cheios de mar. Não sei quando vi este filme pela primeira vez. Sei que escrevi a primeira frase deste texto após uma das vezes em que o revi, 2012. Semana passada voltei a ele por causa das aulas sobre Nouvelle Vague e senti o mesmo. Sempre me arrebata. Truffaut, Godard, Rivette, aqueles moços todos que escreveram e bancaram uma ideia na revista Cahiers do Cinema, são responsáveis por muito da produção e, não só, do reconhecimento do que é a beleza que os filmes oferecem. De uma forma corajosa, apontaram que, no sistema, há brechas.
Pois eram modernos, os meninos. E fizeram, do cinema narrativo e de entretenimento, uma arte moderna. A sétima. Se assim conhecemos os filmes, é a eles que devemos. Anticonformistas. Perigosos, os moços que trabalhavam no escuro e revolucionaram os ditos sobre filmes. Do pequeno caderno amarelo fizeram espaço de subversão, e reinterpretaram, em arte, o divertimento e a emoção que eram tratados tantas vezes como lixo cultural.
Diziam os pequenos revolucionários, logo mais grandes diretores: a um filme, se assina. E trataram ligeiro de buscar inovações que foram da estética às técnicas de realização. Nessa onda, a dramaturgia e narrativa foram subordinadas aos elementos principais do cinema: imagem, som, espaço, tempo, e especialmente, à montagem. Saindo da artificialidade dos estúdios, a vida cotidiana é retratada de forma fluida, complexa e intensa.

Em Os Incompreendidos, acompanhamos, entendemos, sentimos, a solidão de Antoine Doinel. É uma história de amor fracassado. Não o tipo de amor que mais vemos relacionado ao fracasso, o romântico, mas o familiar. Dói a indiferença dos adultos e a forma como se apressam em distanciar-se de Antoine. O fracasso da família, da escola, do Estado em oferecer horizonte. Mesmo assim, ele vai em busca de. O mar é minha terra vermelha de Tara, quantas vezes repeti isso? Eu não lembro o que pensei na primeira vez que vi o oceano. Tive a sorte de crescer com ele bem perto, bem dentro. Ainda assim, sua imensidão me encanta, assusta, convida, inspira. Quando Antoine foge e corre, corre, corre (e que cena tão bem filmada) e enfim chega a essa fronteira de liberdade, tudo em nós se inquieta. A partir dali, um mistério. Uma iniciação. Não importa quantas vezes eu reveja este filme, a perplexidade, a empolgação, a ternura, sempre me preenchem. A coragem de não oferecer respostas. Um olhar direto, límpido. A humanidade. Os heróis desaparecem ante o homem comum, personagens imperfeitos. O homem moderno e sua absoluta solidão. A desagregação, a fuga da linearidade, tudo se materializa na montagem que permite a quebra da narrativa. Tão perto da realidade, o espectador se remexe, inquieto, na poltrona, o cinema o convoca a refletir. Cinema de autor.
Mas as aparentemente mais complexas criações humanas são, na maior parte das vezes, aterradoramente simples. E todo o autoral no cinema, tão explicitamente adotado por Godard, Rohmer, Rivette e Chabrol e Truffaut, foi resumido ternamente por este último: o papel do diretor de cinema é mostrar uma mulher bonita fazendo coisas bonitas. Ou, como um amigo que sabe usar as palavras traduziu: fazer coisas belas a mulheres belas. Entendo eu: o cinema é um olhar. Um olhar muitas vezes arrebatado, fascinado, desconcertado.
Um olhar que revela a tórrida sensualidade de Bardot em “Desprezo” de Godard, que explora a vulnerabilidade de Deneuve em “Repulsa ao sexo” de Polanski, que encontra a espontânea sexualidade de Marylin no “Pecado Mora ao Lado” de Billy Wilder, que faz etéreo a estonteante química de Grace Kelly em “Interlúdio” de Hitchcock. Um olhar que se faz escuta para a escaldante canção de Rita em “Gilda” de Charles Vidor, que se faz tátil para acompanhar as longas pernas de Cyd Charisse em "Roda da Fortuna" de Minnelli, que se faz luz para dançar no olhar cínico de Jean Seberg em “Acossado” de Godard, que se fixa no vitral atraente que é a mirada triste de Liz Taylor em “Gata em Teto de Zinco Quente” de Richard Brooks, que é contorno para os mistérios e corpo farto de Sophia Loren em “Matrimônio à Italiana” de Vittorio de Sica ...os momentos se sucedem, o mágico momento em que os diretores se fazem um olhar desbravador que é, também, o nosso.
De todos os olhares que fazem coisas belas a mulheres belas, o mais terno e comovente é o do próprio Truffaut, não por acaso identificado com o título de um dos seus maiores filmes: o homem que amava as mulheres. E amava sem idealizações, um amor com um pé na tristeza, um amor de quem sabe a vida em incompletudes.

(A história de Adèle H. )
Amando as mulheres, não as amava em abstratas considerações, mas na sua materialidade. Era um homem de pernas, obviamente (não deixe de ver o link, sério). Seu curta-metragem “Les Mistons” (1957) inicia com Bernadette Jouve, ao som de um belo tema de Maurice Le Roux, serelepe e bela, andando de bicicleta pelas ruas. E uma voz, em off, narra a paixão de todos os garotos pela beleza de Bernadette. E, claro, pelas pernas que se revelavam quando a saia esvoaçava. Desde aí, as pernas só foram ficando mais salientes. Em “Domicílio Conjugal”, de 1970, o olhar do espectador segue as pernas de Claude Jade pelas ruas de Paris, em um plano que focaliza pés, pernas, joelhos e metade das coxas. Arte. Logo na abertura de “O Homem que Amava as Mulheres”, de 1977, ele faz uma das mais provocantes e ternas sequências do cinema: o caixão do protagonista na sepultura e uma das muitas mulheres que assistem ao enterro comenta que, daquela posição, ele teria uma perfeita visão da coisa que ele mais amava na vida: as pernas das mulheres. Em “A Mulher do Lado”, de 1981, as pernas olhadas e apresentadas por Truffaut são as longas pernas de Fanny Ardant (seu interesse amoroso desde o começo dos anos 80 até sua morte em 1984) sempre presentes. A câmera, quase discreta, não se fixa, mas passeia por elas, entrevistas do comportado calção para jogar tênis. Até a cena de uma festa onde o leve vestido usado por Fanny Ardant se enrosca em uma cadeira e ela se levanta, diante do marido, de amigos e do amante, apenas com sua roupa de baixo e se tem a visão esplendorosa de suas extensas pernas. Coerentemente, em seu último filme, “De repente, num domingo”, de 1983, ainda estão as pernas: na bela fotografia em preto e branco se acompanha as pernas da mesma Fanny Ardant pelas ruas de uma cidadezinha do interior. E, se fica alguma dúvida, ela se esvai ao ouvirmos, por um personagem seu, mas todos eles são mesmo ele, que as pernas das mulheres são como compassos que traçam o mundo. Aliás, assistam os trailers dos dois últimos filmes citados, são uma delícia (trailer 1 e trailer 2)
Era, pois, um homem que sabia olhar e mostrar, em belezas, o corpo. E essa é a mais apaixonada das declarações. Truffaut nos ofereceu uma concepção política e estética da vida que se vislumbra em seus filmes. Privilegiou, sempre, as pessoas às ideias, o mundo das emoções à uma suposta superioridade da vida intelectual. A ele, suspeito, interessavam os sentimentos e as relações de todos os dias. E contava isso tudo de forma curta, direta, perceptível. Sabia fazer, das suas histórias, as nossas; e os seus filmes sempre operam como facilitadores de uma melhor compreensão de nós mesmos e de como nos relacionarmos. Seus filmes guardam uma coerência de estilo e temas, sem perder a dinâmica, a capacidade de se reinventar. Quanto ao estilo, logo se sabe, uma elegante melancolia, a euforia contida, a preferência do sorriso à gargalhada. E os temas, os mesmos, sempre novos: a infância conturbada, marginal; a construção da masculinidade, a maravilhosa capacidade para a infelicidade que nos faz tão humanos, a procura do amor, a obsessão pela morte, os trágicos, infelizes e cruéis romances e o próprio ato de criar. Arriscaria dizer que todos os seus filmes são declarações de amor, amor à arte e a todas as formas de amor, mesmo os mais amargos. Talentoso, passeou pelos gêneros, sempre com sua direção limpa, límpida, envolvente.

Truffaut sabia o moderno. E o olhar moderno é, assim, desencantado e faminto. Solitário e esperançoso. É de Truffaut o ousado “Jules et Jim”. Não que triângulos amorosos sejam inéditos. Mas este é melancolicamente divertido. É um filme sobre a existência humana e suas dúvidas, mas sem precisar falsear os dramas. Ele sabe, como Rosa, que viver é muito perigoso. Deparamo-nos com a beleza e a incrível dor dos diferentes modos de amar. E vislumbramos o motor que é esse medo permanente de perder quem amamos.
Eu sempre penso em Truffaut quando vejo a bela Leila Diniz. Ele a teria amado. E a teria filmado como se fosse uma carícia. E teria feito, provavelmente, um filme que é um poema. A sorte nossa é que Domingos Oliveira o fez, por ele: “Todas as Mulheres do Mundo” (sei que não está mais em voga gostar de, mas eu sou essa pessoa desconectada mesmo). O frescor do filme, criatividade, a inteligência e o amor ao belo se alinham à estética de que o Truffaut se tornou expoente. O moderno, no cinema brasileiro, se espalha em construções do cinema novo, na busca do realismo, na ênfase no autoral, Godard e Pasolinni tão mais presentes. Neste filme de Domingos Oliveira, é Truffaut que entrevejo. E, talvez por isso, é o tipo de filme que não envelhece pra mim.

Ensinou-me Truffaut que o moderno, no cinema, é o de sempre, o eterno: gentileza, amor, entrega. Olhos para a beleza. Quando capta o olhar do menino que caminha pela praia após ter visto o mar pela primeira vez, Truffaut traz-nos o homem moderno, inteiro: a angústia, a perplexidade, o deslumbramento, a vontade. A solitária dúvida sobre o destino, com a qual, cada um e a seu momento, se depara sempre. Somos em fragmentos, fragmentos com os quais tentamos fazer narrativas e dar sentido. Que só é possível com a paixão. Truffaut era desses apaixonados: pela vida, pelas mulheres, pela memória. Pelas histórias. Truffaut era o homem que amava o cinema. E eu aprendi, um tanto, a amar, com ele.
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Minha gratidão à mllima, Heloísa e à Júlia Chiacchio que tão gentilmente responderam às garrafinhas e com quem agora imagino bater papo quando estou escrevendo.
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Na editoria limite entre real e ficção + diarinhos da Fal, voltei a escrever regularmente no blog Cais de Saudades. Da última garrafinha pra cá:
Invasões realmente bárbaras: (...) eu corri em direção ao despenhadeiro pensando que tinha asas. O amor começa em uma metáfora. E se mantém no apelido. Confiante, desafiei os dois. E me estrepei. Sei hoje. Naquele agora, sorri. Um apelido que é uma convocação, o que eu estava pensando? Afiei adagas, muito antes dos roteiristas de Loki anunciarem o perigo. Em minha defesa, estava acostumada ao movimento: entra, desarma, sai. Tudo limpo, sem perdas ou algum dano mais permanente. Bastava os aviões estarem funcionando, um boteco, um quarto de hotel. Entra, desarma, sai. Fui treinada. Entra. Especialista. Desarma. Sobrevivente. Sai. Não sabia que você era labirinto. Futebol, cantiga e, pior que nudes, áudios. Trinta dias e eu já estava perdida. Não é só o sono, Kundera. Também o riso, na madrugada, é corpo de delito.
Mais uma dose: (...) Por aqui, entendi que todos, todos, todos, todos os dias serão difíceis até o dia em que eu serei a mais fácil de todas. Não é que não seja o bastante. É que é de outra natureza. Eu sei que você gosta de mim. Como não gostar? Mas o que eu quero é um abraço e algum esquecimento (...)
Brilhar e brincar de desesconde - desesconde: eu imagino uns leitores assim, tentando acompanhar tudo que escrevo, soterrados em palavras minhas. Talvez tenha sido isso. Sinto falta de você por perto, imagino que você pegou alguma saída no caminho, mas talvez você só tenha ficado preso em algum dito. Amanhã é domingo, vou assar legumes, trocar os lençóis da cama, tomar banho de sol, varrer o quarto, lavar o banheiro, esquecer você. Hoje é sábado, dia de sábado eu minto.
Silêncio que se vai cantar o fado: Hoje é um dia de silêncios. O óbvio. O da torcida de basquete. Maior, o da torcida do Flamengo. O silêncio da noite. O silêncio dos inocentes. O silêncio no quarto. O silêncio dos bons. O silêncio entre duas fileiras antes de batalha. O silêncio das estrelas. O silêncio em todas as caixinhas**. Silêncio que se vai cantar o fado. Tem coisas que calam tão fundo, seja lá o que essa frase signifique. O mar parece nunca silenciar. Mas eu nunca estive na Depressão Challenger, talvez lá seja silêncio. Uma coisa engraçada é isso de saber (ou não) que se é valiosa. Eu sei o meu valor. Uma pérola perfeita. Porém, ah, porém, dá uma batucadinha pra disfarçar, nem todo mundo tem fôlego ou equipamento para mergulhar e encontrar a concha. Isso sem mencionar eventuais águas turbulentas.
Um intervalo pra delicadeza e, sim, Graúna, Loki e alguns personagens não nomeados ocupando quadros na parede da memória: Aquele trajeto, ora alegre, ora dolorido, do ” eu te desejo, amor” para o “eu te desejo amor”.