Newscoisa #62: O problema é o amor
Newscoisa #62: O problema é o amor"
"Olhe nos meus olhos e diga o que você vê
quando eles vêem que você me vê"
O problema é o amor, ela quase diz. Ou a sua versão mais difundida. Acreditar que. Como se fosse a febre e não a ternura e uma certa falta de imaginação que nos levam – ao fim do dia, todos os dias – de volta pra mesma casa, para a mesma cama, para o mesmo abraço, para a mesma troca de palavras ou de fluidos, para o conforto de não precisar existir por inteiro, um momentinho que seja.
O problema é o amor ou seu marketing caprichado, a impressão de que é preciso uma lingerie nova para um desejo antigo. Como se fosse necessária uma desculpa para abrir conta conjunta, comprar lençol de muitos fios e uma panela de ferro, entrelaçar pernas antes de dormir, segurar a mão quando troveja ou se recebe uma notícia ruim além do óbvio conforto de se ter alguém para segurar a mão, a bunda, as pontas.
O problema é o amor, a frase preparada tenta escapar pela garganta apertada, dentes trincados, lábios cerrados e sai meio gemido meio tosse, ele não entenderia, ele não entende, ela engasga, ele levanta a cabeça atento, esse ele que franze a testa, que vai buscar um copo d’água, que dá tapinhas carinhosos em suas costas, que esquece a mão na curva do quadril dela na displicência do gesto costumeiro, esse ele de traços borrados, que ela já nem saberia descrever, confusa sobre os limites entre o outro e quem ela se tornou.
Uma voz dentro dela perguntando se está tudo bem, não, é a voz dele que penetra o ouvido e vai ocupando todo o vazio, ela suspira pra exalar um pouquinho dessa presença e, depositando o copo na mesinha ao lado, se encaixa no abraço de sempre, sem susto, sem ânsia, sem febre, ternura e falta de imaginação, quem se importa, o problema é o amor, ela não esquece, mas, afinal, ema, ema, ema.
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Hitchcock deu o bizu: "filme suas cenas de assassinato como cenas de amor e suas cenas de amor como assassinatos." Ah, se eu tivesse talento para o cinema (porque para amor e assassinatos...)
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"Que coisa era o amor para que eu o amasse assim? O amor é escrever-me, transcrever-me, traduzir-me, colocar-me. É pegar em mim, e pôr-me ao mesmo tempo dentro e fora de mim; e reconhecer outra pessoa, trazê-la, reescrevendo-a, e pô-la dentro e fora de si, e tudo se encontrar. E o tempo? O tempo no tempo. E o lugar? O lugar no lugar.
Mas isso mata — pensei eu.
Sim, isso mata — respondi — Isso queima as mãos, e mata verdadeiramente.
Experimentei esta nova liberdade, e vi que era a loucura que eu esperara como quando se está sem casa e se faz a gente arquitecto, para construir uma casa e dizer: Eis a minha casa. Edificar a casa era queimar as mãos, coisa realmente mortal. E, depois de haver casa, podia-se entrar nela com a nossa morte."
fragmento de “Exercício Corporal III”, (1961–68) orginalmente publicado em “Retrato em Movimento” (1967); in Herberto Helder, “Poesia Toda 1953–1980″, Lisboa, 1
Continuo escrevendo quase diariamente no Cais de Saudades. São coisinhas cotidianas, afetos, memórias e ecos do diarinho da Fal, em uma espécie de livre associação. Os textos mais recentes:
Walk tall, Luciana: abacate com salmão defumado, queixas e a esperança de partir de cabeça erguida, apesar do fio da meia corrido, do salto quebrado, da mão trêmula agarrando a alça da bolsa, do rímel borrado, do dente mordendo lábio até o sangue.
Pássaro sem asa e um campo minado: inventário da infinitena e um sonho à beira do abismo.
Moça com decote debruçada na janela, aquarela, 2021: quando a gente não sabe o que fazer. Quando a gente sabe o que fazer, mas não quer. Quando a gente sabe e quer, mas não tem, por exemplo, grana ou tempo. Quando a gente sabe, quer, pode, mas tem medo de não segurar o tranco. Quando a gente não tem mais o que fazer. Quando, esse lugar onde moram meus fantasmas.
Era uma mulher com seu caderno: trocadinho ruim com frase de Clarice, ponderações sobre a escrita, flashes da análise e um caderno que veio de Paris.
Corpos em desalinho: uma carte de nove páginas, a segunda dose da vacina, um suco de laranja e claro, a promessa, outra vez, sim, outra vez, de deixar ir. Não esperar. Não pedir. Não tentar. De novo. Chamar o sol. Então, é isso. Mas, pra você saber, se estamos no escuro, corpos em desalinho e pés entrelaçados, é mais fácil dizer. Até adeus.
Izmália e outros sons: recordações de casamentos alheios, fofocas sobre o meu e o outro que eu quase, mas viajei pra Itália, live curtinha com a Fal e aquele choro doído por tudo que é impossibilidade. Tudo isso cantando bem alto que leva rum soco quase não dói.
Eu, no x-games da vida e uma dolorida resignação: batendo a cara no cimento, levantando pra tentar de novo, pés de barro, outra linha temporal, mais inventário da infinitena e uma reflexão sobre o futuro próximo.
Por um sopro, digo, por um fio: esse amor areia movediça, a versão “na volta a gente compra” dos relacionamentos amorosos, a Fal me mandou – de presente – uma caixa mágica e um envelope vermelho, a voz da Bethania e, sim, eu ainda queria que você viesse.