Newscoisa #64: Galinha demais e outras cartas
Newscoisa #64: Galinha demais e outras cartas
Escrevi carta,
envelopei desejos inconfessos.
Às vezes as pessoas perguntam como eu faço pra manter a autoestima. Eu escrevo cartas, por exemplo. Escrevo cartas por todos os motivos bons, mas também pra lidar com as não-respostas. Ou melhor, para lidar com minha fantasia sobre as não-respostas. Quando manda uma mensagem no zap (ou qualquer outro canal rápido de comunicação) e a resposta demora, eu logo imagino a pessoa pegando seu celular, vendo a notificação, sacundindo a cabeça com um ar de enfado e pensando (sim, na minha fantasia eu escuto os pensamentos alheios): “ah, não, luciana, de novo” ou “vou responder agora não, mais tarde eu digo alguma coisa”. Na minha cabeça nunca é: “puxa, que vontade de ler logo essa mensagem, que pena que eu não posso” ou “quero responder direitinho, vou deixar pra mais tarde, com mais tempo pra caprichar”. Ou seja, quando não há respostas eu penso coisas ruins sobre mim. Então melhor não. Melhor pular. Deixar passar.
Com cartas não me sinto assim. Quando escrevo uma carta e não vem resposta, penso coisas ruins alheias a mim, às vezes ruins para ou sobre a outra pessoa (cof, cof, eu nunca disse que minha fantasia era amigável). Se a resposta não vem ou demora, na minha imaginação, a carta que enviei pode ter se extraviado. O destinatário morreu. Ou sofreu um acidente grave e está impedido de se mexer. A letra da pessoa é horrível e ela tem pudor de escrever. Ou está respondendo, mas tem tanto a dizer que ainda não terminou. A pessoa ficou tão embasbacada com a minha carta que ainda está curtindo o momento, relendo e relendo. Talvez tenha ficado emocionada e não sabe o que dizer em uma resposta. Quem sabe a pessoa já escreveu e envelopou, mas está impedida de ir aos correios. Pode ir aos correios, mas está sem grana para postar. Mandou a carta, mas ainda vai demorar porque os correios da cidade dela está de greve. Mandou resposta, mas a carta extraviou de lá pra cá. Todas essas situações fantasiadas (e muitas outras, pode crer, minha imaginação não é mole) são estranhamente confortadoras. Pegam a ansiedade no colo, dão cafuné, botam pra dormir. Entorpecem, me deixam seguir esquecendo que eu esperava, até eu não esperar mais. É isso, as cartas ensinam e demandam uma certa displicência.
Claro que essa não é a única coisa que faz o espelho me sorrir de volta todo dia, mas escrever cartas, ajuda. Escrever cartas, saber que não há nada de errado comigo ou com as minhas cartas: somos admiráveis, interessantes, amáveis. Só não aconteceu da sua vontade cruzar com a minha.
Decidi: aquela mensagem foi a última. Se eu soubesse que era, teria caprichado mais. Gosto do grandes gestos finais quase tanto quanto dos grandes atos de amor. Não por acaso escrevi a carta do nosso futuro término quando nem éramos um par de qualquer tipo (que acabamos nos tornando, embora sem palavra pra descrever). E ela está maravilhosa. Cada frase boa que benzadeus. Consigo vê-lo de blusa salmão, os punhos dobrados, a testa vincada, o cabelo desalinhado (mas de uma forma charmosa), sentado naquela poltrona do todo dia, sacudindo a cabeça, atordoado, cada frase doendo em todos os vocês que você não foi comigo. Mas não vou enviá-la agora. Porque neste momento mandaria ainda querendo impressioná-lo, desejando provocar alguma emoção. Talvez eu até esperasse uma resposta - o que, aliás, fere de morte a minha diretriz para enviar cartas. Não, não vou remetê-la agora, é muito arriscado. Ela vai quando for desimportante (a carta? você? enviá-la? uma resposta qualquer?).
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Atualização de status: hoje eu comprei um livro. Na estante virtual mesmo. Baratinho, com envio e tudo não deu 20 reais. Nunca lerei esse livro. Não tenho interesse significativo no que lá está escrito ou nas bonitas fotos que deve conter. É só mais um passo me levando pra longe de você. De uma forma confusa e tortuosa, tento recuperar meu espaço em mim. Não vou mais esperar que você lembre a sua promessa. Não vou esperar que você consiga um envelope, pergunte meu endereço, vá até o correio e despache. Eu mesma comprei o livro, só para ignorá-lo. Aprendi com os cachorros no texto do Douglas Adams. Aquele, que você não leu.
Por mais que me ignorassem por completo sempre que íamos caminhar juntos, eram incapazes de ir sem mim. Isso revelava que aquelas cadelas que nem eram minhas tinham uma forte inclinação para a filosofia, pois haviam percebido que eu precisava estar lá para que elas pudessem me ignorar devidamente. Você não pode ignorar alguém que não está por perto, porque não é isso que “ignorar” significa.
Maggie e Trudie, sábias cadelas. Mantendo-me nesta lógica, é certo que não posso ignorar você. Mas poderei ignorar o livro. Ele, sim, estará perto. E, com sorte, poderei esquecer você. Esquecer é melhor que ignorar, suponho.
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Qualquer lugar, em algum dia de qualquer mês de um entre os tantos anos
Oi!
Pensando em você eu me peguei pensando em Ana e Pedro. Você não deve conhecer, é um livro infanto-juvenil escrito por Vivina de Assis e Ronald Claver. Um livrinho só de cartas trocadas por dois personagens adolescentes que nunca se viram, mas que ah, em algum momento, passam a querer muito que isso aconteça. Pedro é mineiro, sabe, como você. Quando eu li o livro eu já não era menina e, ainda assim, por vezes Pedro me fazia sorrir. Com a mão no queixo. Com seu passeio a Peçanha. Com seu gosto por caquis. Com seus sonhos em que montanhas se tornam ondas e, a seguir, as curvas de Ana. Ana é do litoral (piscadinha). Pedro me fazia sorrir, como sorri quando você me mandou o caderno de Paris.
Gosto de cartas e de livros. E de livros de cartas. Gosto de cartas, eu disse, de receber, claro, e ainda mais de escrevê-las. Uma carta desdenha o calendário, ignora manchetes, prescinde de motivo, sua única urgência é existir. Parafraseando Goethe: por que me vejo compelida a escrever? Não é preciso, querido, fazer pergunta tão evidente, porque, na verdade, nada tenho para te dizer. Entretanto tuas mãos queridas receberão este papel. Assim é, não escrevo cartas para dar notícias, para informar, embora isso possa se passar. Escreve-se – eu escrevo – para ficar próxima. Como uma forma de burlar a geografia, uma carta é a tentativa de um abraço. Um papel que liga duas solidões, li em algum lugar que perdi nas esquinas da memória. Provavelmente em um livro. Eu diria: que liga dois anseios. Suspendo a caneta um minuto. Há sempre tanto pra dizer e, no entanto, nossa relação é feita de silêncio e esperas. E anseio. De que você seja real. Carne, sangue e desejo. E letra.
Quem sabe reduzir tudo isso a um postal seja uma boa ideia.
Uma dedicatória simples: para você, com carinho.
E ficar esperando que você faça o que tem feito: me adivinhado.
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PS: eu gosto de cartas. De emails. De blogs. Do Diarinho da Fal. De postais. De bilhetes. E gosto, muito, de comentários. Comenta aqui, vai.