Newscoisa #66: Banal
Newscoisa #66: Banal
Já faz um tempo que eu vejo as pessoas falarem em “voltar ao normal”. E as duas partes desta expressão me causam espanto. Tanto a ideia de retorno como a definição de normalidade me distanciam desta conversa. Morreram mais de seiscentas mil pessoas - só no Brasil. Isso é horror. Não sabermos exatamente quantas. Isso é horror. Os que tiveram discernimento – e puderam – passaram mais de 500 dias com pouquíssimo contato com outras pessoas além daquelas com as quais dividem a residência ou uma curta vizinhança. Isto é horror. Crianças nasceram e nunca foram tocadas por alguns parentes. Isto é horror. Eu poderia passar um tempo enorme e ocupar muitas linhas com as várias faces do horror. Mas não é esse o caminho que eu vim seguir. Essa pequena divagação foi para marcar o que me parece uma impossibilidade: uma retomada direta de uma linha do tempo suspensa pela pandemia. Não dá só pra soltar o freio de mão e retomar a marcha. E também não vou entrar no mérito do que havia ou não, naquele lugar em que estávamos, que o tornaria atraente e desejável para almejarmos uma volta. Então eu nem pretendo nem conseguiria voltar ao normal.
Entretanto – e isso tem me ocupado – penso que está no tempo de reinventar um banal pra mim. Criar uma forma de estar no mundo e chamar: vida. Que inclua, mas seja mais do que regar minhas plantas, dar minhas aulas e xingar o governo. Que contemple, em alguma medida, pequenos planos (mesmo que eu não seja apegada a eles). Que resgate pedaços importantes de quem eu fui e sou. Recentemente escrevi lá no Cais de Saudades que já não pretendia recuperar todos os meus pequenos pedaços e descobrir como reencaixá-los. Superei a luciana- quebra-cabeça. Também entendi que não cabe kintsugi em tudo que é fresta. Olhando meus cacos todos no chão, bordas ásperas, algumas pontas esfareladas, percebi que o caminho – pra mim - é uma espécie de bricolagem.
Muito, muito tempo atrás eu vi Colcha de Retalhos - é um filme fofinho - e o que mais me marcou foi a relação entre as irmãs, especialmente quando uma delas quebra toda a coleção de porcelana da outra em uma crise de raiva bem justificável e, depois, transforma aquela devastação em beleza, cobrindo uma parede com os pedaços quebrados. É uma forma dolorida e bonita de lidar com uma materialidade partida, de manter a memória de tudo, do amor, da traição, da ira, do perdão, mas não ficar presa a isso, reconhecer que não é possível retomar um normal, mas ser capaz de reinventar o vínculo que as unia através da criatividade e da sensibilidade. Esse é o caminho que almejo: reinventar-me sem esquecimento nem superação. Não me apegar à dor, à angústia, à perda, à raiva, ao ódio, tal como eu os vivi. Que eles – que me mudaram – sejam transformados em mim e por mim. Mas também não buscar, ingenuamente, apenas reencontrar o riso, a beleza, a sabedoria, o amor que eram tão meus e voltar inteira a eles. Não esperar que sejam como eram em mim e como eu era com eles. Quero aceitar a impossibilidade do regresso e da permanência e usar essas porcelanas partidas em um novo projeto. Talvez uma nova estrada de tijolos amarelos? O que entendo que eu preciso, a partir de agora, é me abraçar. E depois me soltar e dar aquele empurrãozinho de “vai, vai lá”.
De um jeito elegante, disse Joan Didion, no ensaio chamado “Sobre ter um caderno”:
"Acho que é aconselhável continuarmos aceitando as pessoas que um dia fomos, quer as consideremos companhias atraentes, quer não. Caso contrário, elas vão aparecer sem avisar e vão nos pegar de surpresa, batendo sem parar na porta da mente às quatro da manhã de uma noite mal dormida, e exigindo saber quem as abandonou, quem as traiu, quem vai fazer as pazes. Nós esquecemos muito cedo das coisas que pensávamos que nunca esqueceríamos. Esquecemos os amores e as traições, esquecemos o que sussurramos e o que gritamos, esquecemos quem já fomos."
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Pequenos passinhos que eu nem sei dizer direito quais são.
Um novo amigo na varanda. Uma praia com sobrinhos. Aulinha de hidro na casa da amiga. Suspirar no airbnnb. Diálogos com a Fal. Novos cadernos. Três Corações. Uma cerveja na casa da irmã-vizinha. E cozinhar feijão*.
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Quando voltou o futebol, eu fui contra (não que minha opinião tivesse a mínima importância). Tornou-se uma das minhas bóias, mais, um dos meus tubos de oxigênio nesses meses todos de dor e solidão. Daí começou a disputa dos sambas para 2022. Fui contra (não que minha opinião tenha a mínima importância #2). E agora eu não consigo parar de cantar o samba da Mangueira.
E daí? Nada. Ou talvez a impressão de o amor sabe ser mediador.
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*Tem gente que vive cada momento com intensidade. Que tem perguntas perturbadoras e alegrias ensurdecedoras. Que se envolve em grandes casos de amor. Que tem desencontros dramáticos. Desavenças épicas. Eu não sou essa gente. Sou banal. Eu sou do feijão com arroz. Não, eu sou do feijão com farinha. E ainda faço capitão. Juro. Enfio a mão no prato, amasso e faço os bonequinhos. Mas, enfim, eu ia dizendo, tenho alegrias pequeninas: o cheiro do café, a primeira colherada do iogurte sabor desconhecido (quem faz iogurte de strawberry?), o envelope na caixa do correio, um áudio carinhoso no celular, o barulho do eléctrico na memória, o mergulho no mar, um cafuné. Essas alegrias que amanhã são passado e não deixarão memória, a não ser aquele morninho no peito que, às vezes, por falta da palavra mais certa, a gente soletra: bom.
Não tive uma infância idílica, mas também não recordo nenhuma dor mais expressiva: passei por ela. E passei brincando de carimba, festejando aniversário e batizado das bonecas, fazendo poses divertidas para fotos de momentos dos quais não me recordo. Passei na casa dos primos, na praia com a família, correndo na rua, lendo deitada na rede do sítio. Passei comendo pastel com caldo de cana. Minha infância tem sabor de feira.
Não tive uma adolescência digna de nota. Nenhum registro de coração partido, não vivi grandes esperanças nem enormes desenganos. Passei por ela. E passei beijando meu melhor amigo, vendo filmes no Corujão da Globo, devorando as letras empilhadas na estante. Passei tomando banho de bica, decorando as músicas da Bethania, treinando os olhos da Maysa. Passei viajando pra Bahia, pra Minas, pros municípios do Ceará, pra dentro dos livros, pro interior de mim mesma. Minha adolescência tem sabor de estrada.
Daí pra cá, nada de heroico ou trágico: casei, descasei – mas com um moço tão bom que ficamos amigos. Tive um filho – que amo, que todos amam. Fiz faculdade, trabalhei, amei, fui e voltei. Aprendi a fazer peixe. Escrevi umas coisas aqui e ali. Dei uns beijos, ganhei outros. Perdi projetos, ganhei amplitude. Mudei de cidade. Mudei outra vez. Comprei casa. Vendi (ou quase). Procuro o mar quando estou dolorida. Procuro o mar quando estou contente. Me encontro. Deito no colo da mãe, faço chamego no pai, cutuco e sou cutucada por irmãos e amigos. Tenho as alegrias do dia: uma cozinha ocupada, uma cama bagunçada, as roupas no varal, um livro aberto no sofá, um filme que quase cheira a guardado. Nenhuma lembrança para o amanhã. Vou passando. Faço pesquisas, faço charme, faço linguiça com batata ao molho. Às vezes queria ter uma história melhor pra contar. Mas me distraio buscando um abraço. E cozinho feijão. Banal.

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Eu sempre achei meio insuficiente isso dos opostos que se atraem. Você poderia sorrir de canto de boca e pensar: Vasco/Flamengo. Portela/Mangueira. Cachoeira/Mar. Rock/Forró. E tanto mais. Mas eu sorriria com o outro lado da boca sabendo que os símbolos são enganadores. Uma espécie de jogo de espelhos. Para além deles (e, concomitantemente, entranhados neles) tem o jeito de. De torcer. De sonhar. De mergulhar. De mover-se. E, nisso, os encontros. As semelhanças. Parelhos.
Sim, eu ainda. Pois é. Um beijo. Me liga.

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