Newscoisa #68: Saudades, Tina, Anderson, Verônica e Nós, o pistoleiro
Newscoisa #68: Saudade, Tina, Anderson e Verônica
“Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade”***
Parece um texto sobre faroestes. E é. Mas é também outra coisa.
Um dos meus gêneros cinematográficos preferidos é o faroeste. Por tantos e vastos motivos que eu não vou declinar aqui, tenho um certo pudor. Entre os que posso enunciar, não é o menor deles a capacidade de resumir, em uma cena, todo um conceito. Como a imagem no final de Rastros de Ódio, com Wayne emoldurado pela soleira da porta, na fronteira entre um mundo acolhedor, íntimo, familiar e a solidão do que é externo, desafiador, inclemente. Como um eco, encontramos a partida de Shane e tantos outros finais icônicos, em que vemos apenas o protagonista e a imensidão.
Um herói (moderno?) deve estar à parte da sociedade para protegê-la, é verdade, encontra-se essa premissa não só nos faroestes, mas também nas grandes responsabilidades do homem-aranha e em várias outras referências literárias e cinematográficas. Acontece que esta questão, no faroeste, tem uma camada a mais: o herói-pistoleiro deve ficar à parte e à margem da sociedade porque a forma como ele a defende o conspurca, o compromete, o torna inapto para o convívio entre os inocentes. Porque – e isso os faroestes realmente bons não nos deixam esquecer - esse herói-pistoleiro, ele mata. Mesmo que ele relute. Ele mata. E não importa que ele mate os corruptos, os malvados, os injustos. Ele mata - e matar não é o correto. Não é o bom. Não é digno. O próprio herói-pistoleiro reconhece esse abismo que cava cada vez mais fundo quanto mais faz o que precisa ser feito. É ele quem parte quando os que ele protegeu ainda desejam sua presença. Porque ele sabe este ainda. Pensa que o brilho no olho dos que o celebram se tornará, com o tempo, desconfiança, talvez medo. E sua presença será cada vez mais desconfortável – ele projeta. Assim, ele vai embora. É isso que ele faz: ele mata e ele vai embora. O que lhe confere essa ética extrema e enraizada, suponho, é a lida diária com a morte.

Um exemplo interessante por sua contradição está em O homem que matou o facínora. O personagem de James Stewart é aclamado como o matador de Valance e, por esse status de herói, ele se estabelece politicamente e tenta tornar o mundo “melhor” de acordo com a visão que ele tinha sobre como o Oeste devia vir a ser. Entretanto – e isso é muito relevante – a ele é permitido a permanência, o enraizamento, a companhia dos bons e inocentes porque ele sabe que não foi ele quem matou Valance. Embora ele traga algum pudor por se aproveitar da ação de outrem – mesmo autorizado – entre tudo que ele carrega (sonhos, culpa, constrangimento, esperança) não se encontra o indesculpável. Ele não carrega uma morte consigo. É justamente não ser o herói que se supõe que ele seja que o permite ser o homem que ele se torna: relevante, respeitado e responsável por mudanças significativas. Ele nunca matou e, por isso, ele não volta a matar. A ética de um pistoleiro/herói que o impulsiona à ação, e – consequentemente – à solidão, depende da sociedade e ainda mais de como ele se percebe e como se sente na relação com os demais, além, claro, da imposição a que ele se submete de sustentar com outras mortes subsequentes, a primeira. Ransom Stoddard pode ser quem é porque não tem a morte no cotidiano. Talvez culpa, alguma vergonha, mas não o definitivo que traça a fronteira que exila.
Recentemente revi 7 homens e um destino (sim, de novo, me deixa). É bonito demais (e nada sutil) como é construída essa dicotomia entre o enraizado, o agricultor, o que produz vida, e o andarilho, o pistoleiro, o que carrega consigo a morte (aliás, que bela e otimista versão dos 7 samurais/7 homens e um destino é o Vida de Inseto, né?).
Gosto muito de como são apresentados os pistoleiros e seus motivos (tem pouca coisa que me toque mais do que os moços do vilarejo oferecendo como pagamento um nadinha, mas que é “tudo de valor que temos no povoado” e o Chris respondendo: “já me ofereceram muito pelo meu trabalho, mas nunca tudo”) e, igualmente, de como vamos conhecendo as nuances dos moradores da vila que, em um primeiro momento, parecem se dividir apenas entre os que querem resistir ao bando explorador e os que tem medo de que essa posição de resistência piore ainda mais a situação deles (e se você julga um desses grupos e tem uma posição forte e definitiva sobre como deviam se comportar, sugiro que se abra às zonas cinzentas do viver) mas que vão ganhando características próprias, interessantes, divertidas, complexas.

Para quem foi plantado, a morte é um distante fim de ciclo, processo quase natural, no qual se deixa sementes. Para o pistoleiro, a morte está no horizonte de curto prazo e, para ela, ele deve estar sempre preparado - o resto é interlúdio. Aos pistoleiros cabe colocar-se como potencial sacrifício, sabendo que a morte honrada é a única possibilidade de redenção. Bom, não sei como vocês lidam com a finitude, mas os pistoleiros (e eu, e eu, e eu) embora resignados a ela, não encaram sempre com tranquilidade nem o percurso nem a linha de chegada. Há o medo. De morrer, mas especialmente de não morrer como se deve. E há o desejo, insidioso, sedutor, de: quem sabe, talvez, só dessa vez, só a ele ser permitido ser outro. O anseio por estabilidade. Ser um plantador e também ter raízes. O desejo de pertencer. Nós, que já vimos os filmes e lemos os filmes, logo no arrepiamos. Sabemos que a vida, zombeteira, oferece um tanto de paz e uma solidão ainda mais vasta que se sucede à perda e à necessidade de voltar a ser quem se era. Porque enraizar-se significa aposentar o cinturão (ou, em outro gênero, abrir mão dos poderes, como fez o super homem) e isso logo se mostra uma decisão difícil de se sustentar (já viram Os Imperdoáveis ou Matar ou Morrer? Gary Cooper conta pra você como isso acontece – e, olha, essa é a versão branda). Há os que precisam ser protegidos e/ou vingados.
Dizem que os faroestes são filmes de homens, sobre homens, para homens. Assim como os filmes do Woody Allen, aliás. Eu diria que são mesmo filmes fálicos. E isso não os coloca - pelo contrário, os retira - na estrita caixinha “homens”. Afinal já faz tempo (e bota tempo nisso) que Freud advertiu pra não misturar falo com pênis. Não que os termos não se relacionem, mas não como sinônimos ou confirmação um do outro. O falo se relaciona intimamente com o pênis na medida em que o designa como ausente ou passível de vir a faltar. E é na brecha que a linguagem se impõe. O falo é semblante de um determinado gozo e o semblante envelopa o vazio, assim o falo faz crer na existência do que não existe ou está. Os filmes de faroeste não subsidiam a masculinidade, antes evocam o vazio no qual essa posição supõe se alicerçar. Isso significa apenas que estes filmes (talvez um pouco mais do que a média) operam e constroem (ao mesmo tempo em que são operados e construídos por) linguagem. Especialmente nos imensos silêncios que apresenta. Já repararam como os pistoleiros são monossilábicos? E, bom, somos todos fálicos, falantes, faltantes. Não dizer também é uma forma de contar algo. O a mais que talvez estes filmes não entreguem – e não se exige mesmo isso – é referência ao que foge do império da linguagem. O gozo sempre escapa à regulação e, assim, o falo é incapaz de ordenar completamente o sexual e seu campo. O que escapa, o feminino, um gozo outro, lá não o encontramos, a não ser como negativo da vastidão que incandesce.
Em 7 homens e um destino há uma sacada fenomenal neste campo. Entende-se que a existência dos pistoleiros/heróis fica à mercê da memória alheia. Já há um anúncio disso quando logo no começo do filme o senhor entusiasmado pelo comportamento de Chris e Vin no enterro do índio, antes de seguir na diligência, repete várias vezes que não só nunca vai esquecer o que viu como vai contar sobre o evento para várias pessoas. Os pistoleiros/heróis ficam à mercê da memória alheia, eu disse, por isso eles, assim como os demais heróis (vide Frodo, Lancelote, Arthur) precisam ser contados, narrados, cantados (olha o falo aê, gente). Ainda mais do que os heróis outros, argumento, os heróis/pistoleiros demandam essa existência discursiva porque não deixam frutos, descendência, herança (a não ser, eventualmente, o ódio - perdão pelo trocadilho, Peckinpah). Quando o moço jovem e empolgado comemora que o feito deles no dia certamente será celebrado em música que será repetida por anos, afinal, diz ele, esses vilarejos fazem música sobre tudo, os pistoleiros recitam o inventário do que aquele canto lhes custa:
Casa: nenhuma.
Esposa: nenhuma.
Filhos: nenhum.
Perspectivas: zero.
Lugares ao qual se apega: nenhum.
Pessoas que te seguram: nenhuma.
Homens para os quais você dá passagem: nenhum.
Insultos engolidos: nenhum.
Inimigos: nenhum.
- Nenhum inimigo?
- Vivo, nenhum.
A pergunta que Calvera (se) faz ao Chris é a mesma que me faço às vezes: você voltou? Um homem como você? Para/por um lugar como este? Porquê? Chris não responde. Ele não pode responder. É o que escapa, impossível de ser elaborado/enunciado. Um dos motivos, aliás, pelos quais o faroeste é um dos meus gêneros cinematográficos favoritos. Não me deixa esquecer que a linguagem é cobertor curto, mas quentinho e que estampa tão bonita.
Texto muito legal: O cowbay e o samurai, J. F. Botelho
***Sempre que leio este texto do Moacyr Scliar eu penso no Chris. Li, pela primeira vez, novinha, naquela coleção Para Gostar de Ler e influenciou demais meu apego aos pistoleiros solitários dos faroestes.
PS. Se alguém assiste 7 homens e um destino e pensa em white savior entendeu bem pouco da trajetória dos personagens. Afinal: só os fazendeiros venceram. Inclusive Bernardo.
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Post que eu curti muito escrever no Cais de Saudades: Porque eu quis. É sobre quem eu já consigo ser, mas também sobre comidinhas.
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3 décadas para entender que “se eu fosse o grande amor da sua vida e você fosse o grande amor da minha vida, a galinha tinha dois pescoços” era uma piada. Uma boa piada, mas uma piada. Você não gosta de misturar banana com comida do almoço. Eu gosto. Eu não estou errada. Você não está errado.
“E pra gente saber se a chama é verdadeira
Alimente o prazer, põe lenha na fogueira...”
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Se uma carta sai do coração das Gerais no dia 03 e chega na minha mãozinha dia 08 é porque os Correios tão soprando a favor, né?
Minha irmã fez uma figurinha de zap que sou eu gargalhando e agora estou querendo conversar com todo mundo no aplicativo só pra poder enviar a risada no meio do papo.
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O que eu posso dizer eu não quero. O que eu quero dizer, eu não devo. O que eu devo dizer, já não consigo.
