Newscoisa #70: Estrela do mar
Newscoisa #70: Estrela do mar
Um pequenino grão de areia, Que era um pobre (eterno) sonhador
Olhando o céu viu uma estrela, imaginou coisas de amor
Passaram anos, muitos anos, ela no céu e ele no mar
Dizem que nunca o pobrezinho pode com ela encontrar
Se houve ou se não houve alguma coisa entre eles dois
Ninguém soube até hoje explicar
O que há de verdade (o certo) é que depois, muito depois
Apareceu a estrela do mar
Dizem que a estrela-do-mar é o organismo com maior poder de regeneração. Obviamente quem diz isso nunca viu meu coração. Ou ainda: não tema, meu talento é fazer tudo ser fácil pra você.
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Eu sei cada vez menos de qualquer coisa. Do pouco que ainda sei, quase nada lembro. Então, volteamos ao vento. Lembro Tim Maia e penso que a companhia é boa. O jornal dos ontens, a notícia que for, a dor da gente. Da gente não. Sua. Minha. Nada de nós. Não mais. Queria saber te dizer: não se preocupe. Chegue mais perto, moço bonito, não vou morder. Nem beijar. Digo apenas: pode ser um café. E soluço no divã virtual que nem isso. Eu já sei todos os fins da estrada. Da história. E é sempre um eu e o abismo. E eu quase grito seu nome antes de voar, mas tenho pudor do eco.
Depois que você passou ligeirinho por mim, não consegui dormir e fui me visitar em passados. Coisas que me constituem. Evitei cuidadosamente as que se tornaram nossas, tão rápido. Nada de Verissimos, por exemplo. Ou samba. Ou, ou, ou. Como uma espécie de arqueologia de mim mesma, busquei aquelas coisinhas de um mítico antes. Existia, eu? Sei que vivi muitos dias antes dos dias em que você passou a viver em mim. Eu sei. Mas saber não é um sentir. Fiz escavação. Fósseis, monumentos, artefatos de uma época A. V. O desejo moveu placas tectônicas no meu peito. Descobri um coração e suas brechas. Entre ruínas, jarros, pratos, urnas mortuárias, fivelas de cabelo, a tentativa de dizer alguma coisa. Qualquer coisa. O que nos faz humanos, suspeito, mais do que pensar, ser o animal que ri, amar ou ter o dedão opositor, é a incompletude, a falta que você me faz. Ou que ela faz ao Sabino – tão bom que essa aí não seja uma história de amor. Ou seja, mas não do tipo que se espera. Eu te espero. Estou esperando. Eu sei, você sabe, meu analista sabe e resmunga. Cantarolei como o grupo Metrô. Você não vem. Ou vem, mas não chega.
A falta, eu dizia, não só a existência da falta, mas os esforços que fazemos por conta dela, o quanto nos dedicamos a escamoteá-la, disfarçá-la, esquecê-la, negá-la e afins. Melhor correr e sentir o assobio no peito. Uma das mais e menos (sim, as duas coisas ao mesmo tempo) bem sucedidas tentativas humana de lidar com a incompletude é a comunicação. A gente (a gente sou sempre eu, mas, desta vez, não só) manda brasa na fala, na escrita, nos desenhos, whatever, com a ilusão gostosa de que pode ser que alguém, em algum lugar, receba a mensagem (por isso enfio mensagens em garrafas e torço pra chegar na sua praia). E, olha só, por vezes um alguém em algum lugar até recebe, mas o quem, o onde, o quando e o tal o quê não são o que planejamos. A não ser que a sorte mude e você. Mas não. Eu sei. Na maior parte dos casos, apenas se atira no que viu e se acerta no que não viu. A gente vai ali, pensa que volta logo, pensa que é um respiro, pensa que é um pequeno vão. E escava abismos. Simone falando em amor como um vôo sobre o Atântico e acreditando no além do momento, escrevendo “eu serei para sempre sua”, apostando em afetos que sobrevivem a oceanos, ridícula, ridícula, ridícula ela, ridículas cartas, sábio poeta, inevitável ridículo, ridícula eu, eu, eu, eu. E, em breve lampejo, também felizes os que são ridículos (mas não agora, agora sigo insone e quase sinto raiva. De você? De mim? Das cartas que nunca serão enviadas).
Eu nunca me afoguei, mas imagino que seja um pouco parecido com tentar alguma comunicação numa relação como a nossa (se me permite a palavra). A gente vai cada vez mais fundo e fica cada vez mais difícil voltar à superfície. É cansativo. Demanda força e certa inocência de supor que será diferente se voltarmos à tona mais uma vez. Cada vez que imergimos, a gente (eu, eu, eu) se pergunta se vale a pena mesmo todo esforço que vem acompanhado daquela queimação no peito, peso nos braços, olhos ardendo, engasgo. Tão mais fácil deveria ser sucumbir. E, no entanto. Insisto. Insisto. Tusso, me debato, cuspo, inspiro. Insisto porque em algum lugar, parece que no brasil, um disco roda na vitrola e canta Luiz Gonzaga: “ói eu aqui de novo, xaxando, ói eu aqui de novo para xaxar”.
Acreditar-me capaz de kintsugi n’alma, depois que sua ausência for ausência e não esta presença dolorida se espreguiçando e imprimindo marca no tudo dentro de mim é o que me sustenta. Olhar pra trás é uma espécie de olhar pra frente. Construir, com meus tijolos amarelos, um viaduto, pra atravessar esse território minado. Olha lá, do outro lado, de casaco vermelho, echarpe azul e biquíni de estampa amarela, rindo alto, uma luciana.
