Newscoisa #72: Uma desconhecida imperfeita
Newscoisa #72: Uma desconhecida imperfeita
Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
Recebi visitas e elas se espantaram porque na minha casa não tem espelhos. Acho que eu não lembraria de contar isso ao me apresentar, mas agora você já sabe: não preciso de espelhos para me imaginar. Quê mais? Sou bem deslumbrada com o que a humanidade é capaz de fazer. Não sei assobiar nem piscar. Mas meu cafuné é impecável. Penso que poucas palavras são tão precisas quanto gastura. Meu umbigo está em Canoa, meu coração tem mais da metade refeito por pedacinhos de lugares que me amaram – opa, que eu amei. O amor verdadeiro é sempre recíproco, vamos simplificar Lacan. Acontecem-me coisas surreais. Em algum momento decidi que ser eu mesma era muito mais gostoso que ser um eu que eu poderia querer ser. Segue o meu perfil quando me vejo assim: cara a cara comigo mesma. Ou seja, meio de lado. Um mosaico com rachaduras evidentes. Nostálgica, mas disfarço com o riso fácil. Leio de tudo e com desespero. Escrevo sem vírgulas, pontos ou educação. Tento não esmagar as entrelinhas, como alertou Clarice. Dou um boi pra não entrar em uma briga, o resto já se sabe. Considero importantíssimo saber rir de mim mesma. Nem que seja pra me juntar ao grupo. Tagarela e desajeitada. Ando esbarrando, mas não costumo cair. Certa da solidão, fui me acostumando a ser boa companhia. Italiana, francesa, cápsula, elétrica, hay cafeteiras de muitos tipos aqui em casa. E eu ainda prefiro o café coado. A panela na primeira boca do fogão, água fervendo, uma colher bem cheia do pó, paninho, as mãos abraçando a xícara quente, o cheiro forte que invade o nariz enquanto alongo o primeiro gole até ficar meio tonta. Há dias em que a vida é quente, forte e um tantinho amarga. Eu também. Faço coragens: envio cartas. Sim, eu dobro a pontinha das páginas dos livros. Colo post-its com recadinhos. Pinto de lápis de cor ou mesmo sublinho, com lápis preto, trechos favoritos. Desenho estrelinhas, corações, setas e indignados pontos de exclamação e/ou interrogação ao lado de algum parágrafo que me marcou. E, atenção, eu escrevo nos meus livros. Palavras soltas ou reflexões que seguem por páginas. Sou capaz de gestos abomináveis, como se pode ver. Nunca disse que era uma pessoa boa. Às vezes faço de conta que sou completa, geralmente com uma taça na mão. Bebo cerveja, bebo vinho e, depois das músicas italianas, bebo sonhos. Holanda, por parte de mãe e de Chico. John Wayne, por parte de pai. Borboleta e Graúna por escolha e história. Gosto de filme velho, quase cheirando a naftalina. Mulheres chamadas Gilda, homens que sabem demais, os maiores espetáculos da terra. Digo seguidamente bobagens e inventei a origem do nome Patagônia. Tenho uma sacola de viagem permanente no meu juízo e a alma, de tão cigana, não para em palavra nenhuma. Construí um cais pras minhas saudades. Gostaria de escolher meus defeitos, mas não dando certo isso, continuo teimosa. Não sei usar a nova regra ortográfica. Nem a velha, talvez. Amo desvairadamente. E tento comer devagar. Sei lá, pra compensar, talvez. Tem gente que tem a cabeça no mundo da lua. Eu não. Quando vou lá, vou toda. Agrada-me envelhecer. Uma certa inclinação para a felicidade ou, pelo menos, para o riso. Finita, por nascimento e vocação. Sou questionadora, mas aceito qualquer resposta. Aspecto físico? Língua afiada e olhos cor de saudade. Uma mulher que tem nervos, coração, estômago, tudo à flor da pele (o que dá uma impressão estética meio estranha, você não acha?). Tem um bocado de coisas de que não entendo nada: tecnologia, beisebol, fotografia, jardinagem. Tem um bocado de coisas que gosto: cheiro de livro, andar descalça, banho de chuva, dormir de rede, abraço. E o mar. Perto de muita água tudo é feliz, já anunciava Guimarães Rosa e Bethania repetia. Amém. Gosto de fazer o que eu gosto. No mais, preguiçosa. Sabia o que é culpa, mas esqueci. Nada mais a dizer, prefiro andar de mãos dadas. E dormir acompanhada. Mas, bom, bom mesmo é sal, se você já leu Verissimo.

PS. Mas me sabe mais e melhor com menos biografia e mais bibliografia, suspeito.