Newscoisa #73: A coragem e o jeito
Newscoisa #73: A coragem e o jeito
Morre um famoso. E as pessoas de olho pra ver quem e como sofre. Se você gostava mesmo fulano de tal, diz aí 3 músicas/poesias/filmes/telas/seiláoquê dele. Pois eu sofro. Imensamente. E sem entregar provas. Mas você nem conhecia – dizem, usando conhecer como conviver. Desnecessário. Quantas pessoas eu conheço que não me fizeram companhia em noites que dormir não era uma opção e viver não parecia uma saída? Quantos eu conheço que não me ensinaram sobre amar, dar, aguentar, rir, amanhecer? Quantos eu conheço que não me inspiraram, não me iludiram, não me enganaram e depois me indicaram como rir de mim mesma e dos meus enganos? Quantos eu conheço que não me fizeram rir, chorar, desejar, suspirar?
Os atores, os compositores, os cantores, os pintores, os escritores, essa gente famosa com quem não convivo, que nunca encontrei, essa gente famosa que não conheço, essa gente faz como que eu me conheça, me faz mais além, me faz ser eu. Então, quando morrem, eu lamento.
Com o tempo, vivo essas perdas de forma diferente. Antes, quando pessoas assim morriam, eu sentia que elas permaneciam vivas comigo, no que eu tinha visto, ouvido, lido, amado e que me tornavam quem eu era. Hoje, quando morrem, é parte de mim que morre com elas. E lamento. E choro. Por elas. Por mim. Porque vou ficando menor e mais sem graça. Cada um, um pedacinho de quem já não sou e nunca vou deixar de ser.
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Daquelas ironias aleatórias de se contar o tempo: um 19 de janeiro nos deu Nara,
um 19 de janeiro levou Elis. Neste intervalo, barraquinho entre elas.

Minha primeira Nara já era quase todas as Naras. Este disco: A Arte de Nara Leão. LP duplo. Na sala de casa na parte de baixo da estante, todos os discos que meus pais compravam/ganhavam. Em cima e sem censura, a radiola. Na minha memória: um monte de Gal e Bethania, vários Chicos, uns da Maysa que minha mãe tratava com algum ciúme, uma inesperada coleção de ópera que ajudou a moldar meu caráter, uma Amália Rodrigues, coletâneas dos festivais e esses A Arte de.
A arte de Nara me cativou. Sua voz, seu ritmo, seu repertório. Minha seara é a das palavras, meu gosto musical é atravessado pela minha afinidade com o que é dito. E Nara (me) dizia – e me diz – muito com o que escolhia para cantar. A estrada, o violeiro, minha vontade de viajar, minha compreensão da migração, da solidão, dos movimentos sociais. Nara cantava o que queria, o que lhe tocava. A dor de um(a). A dor do mundo. A beleza do mudo. A beleza do encontro. E fazia beleza pros desencontros também. Ninguém é capaz de emprestar a Soneto, toda a resignada inquietação que ela confere. Nem sei quem eu seria, não tivesse ouvido tão cedo essa canção. Toda a tristeza, tanta alegria, alguma melancolia, esperança, anseios, tudo isso eu encontrava nas faixas que ouvia repetidamente com, sei lá, sete, oito anos. Quando ela morreu eu tinha 14 anos. Já me doeu como a perda de alguém próximo. Ou ainda: alguém íntimo.
Nara me fez reconhecer uma suavidade em mim que guardo bem protegida, pois frágil (a suavidade? eu?).
Em Pássaro da Manhã, Bethania confessava: “Toda vez que eu faço um espetáculo de teatro, um show de teatro, eu tenho um repertório que eu obedeço desde a estréia até o último dia da temporada. E normalmente quando eu volto pra minha casa nos meus dias de folga, eu sempre me pego com o violão cantando músicas não incluídas no repertório de cena. Normalmente são músicas muito românticas, muito apaixonadas. Apenas ligadas ao coração. Essas músicas sempre me são lembradas através de gravações da extraordinária Dalva de Oliveira. A Dalva tinha a coragem, o jeito de cantar no palco o que até então eu só tinha coragem e jeito de cantar dentro da minha casa”.
A Nara tinha a coragem e o jeito de cantar
o que eu só tenho a coragem e o jeito de cantar
dentro da minha alma..
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Olho o espelho e lá está: um guarda-chuva vermelho, um engradado de cerveja, uma cicatriz na sobrancelha, dois olhos que não se encontram nem no infinito, um pôr-do-sol no velho oeste, uma rede, uma pilha de cartas, peitos, alguma saudade, panelas, um sertão e um bilhete – não dá pra ver direito se de trem, de alguém, de ônibus ou avião. Cabelos assanhados. Pele enrugadinha de tempo e molhada da chuva. E aquele vestido azul com laço na cintura e cheiro de manacás, como sabia a Adélia.

2022 já trouxe dois textos para apostar no Cais de Saudades: "Fiz o que pude, acho que não fui tão mal" e 2022 e alguma beleza. Comentem lá, comentem aqui, eu não sou a Greta Garbo.