Newscoisa #74: Silêncios
Newscoisa #74: Silêncios
"O erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais.
Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio.
É assim o escuro, este nada apagado que estes meus olhos tocam:
cada um é um, desbotado à sua maneira"
(Mia Couto)
Não puxar conversa. Não esticar a conversa. Não ficar. Não querer ficar – não, isto ainda não consegui. Dói muito. Eu engasgo. Tudo que nunca falei e que não vou falar. Para não te machucar, digo a mim mesma, mas sei bem que é a tentativa última de deixar a porta aberta - e me embaraço. Tentando manter alguma dignidade, faço silêncios, não falo do filme da K. Hepburn em Veneza, não conto do projeto com fotografias, não digo medo e raiva e vergonha e analista puxando o tapete. Não junto eu e covid na mesma frase. Tenho pena de nunca ter te mostrado o conto Plantação. Tolice. É hora de reconhecer que você não se importa. Bater o sapato na soleira. Não há nada que eu pudesse fazer. Não é você, sou eu – mas no espelho. Engolir em seco. Dar de ombros. Todas as expressões clichês. Me arrependo de não deixar quieto o Alan Alda e o ano que vem. O atenuante: eu nunca tinha vivido em um tarde demais. É um lugar realmente inóspito. Sua tristeza é inevitável – é seu xodó, sua escolha, a tonalidade dos seus olhos e o sotaque na sua voz. Mas a minha, a minha não. A minha tristeza é profunda, intensa, marcante – e transitória. Vai passar. Eu quero que passe. Não preciso dela, eis a estrada que você não sabe percorrer.
Estou aqui, com a Margaret Atwood, negociando com os mortos. Minha vitória é não ter comprado um exemplar extra para te enviar. Também na minha cama, Woody Allen. E os vampiros da Anne Rice. Estou fazendo de tudo para não sobrar espaço para você.
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Tem gente que consulta oráculos, tem gente que abre a bíblia aleatoriamente, tem gente que lê o signo no personare, tem gente que tem aquelas caixinhas com mensagens e sorteia uma diariamente, tem gente que come biscoito da sorte atrás do papelzinho com conselhos. Eu visito posts antigos do Drops da Fal buscando beleza, alguma sabedoria. Muitas vezes o que encontro é um espelho esquisito, comentários que fiz com outra voz, outro peito, outros afetos.
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Resistir e postergar e relutar e refletir e enfim decidir-se abrir uma fresta daquela porta - e descobrir que ela é uma pintura na parede.
Histérica demais para o papel de confidente, dizia o bilhete do diretor, dispensando a atriz do teste de câmera.
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Eu me eduquei amorosamente com livros, canções e filmes. Com a Katie de Barbra. Saber ficar, saber partir. Ser capaz de um afago, no depois. Poder dizer: your girl is lovely, menos pela girl e mais pela esperança de que aquele alguém encontre alguma felicidade. Às vezes, tantas vezes, muitas vezes, a girl nem é pessoa, é miragem, ideal, modelo, expectativa. Um imperativo. Importa pouco, na verdade, gente ou quimera, é o horizonte alheio. Importa que eu seja capaz de acariciar seu rosto e confortá-lo, como a mim mesma: ela é adorável, vai na paz, se puder.
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Querer ser boa, tentar ser boa, reinventar em ficção os afetos. Mas não esquecer que você não está, não é. Não esquecer que o bom em você fui eu que inventei - e fantasmas não seguram nossa mão nas madrugadas de medo, vergonha e dor.
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Covid é uma doença sistêmica com sintomas estranhos. O meu foi raiva
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Tá chegando o momento Oscar, yay..
Ataque dos Cães é cinema de primeira categoria. É espantoso e revela o talento de Jane Campion que um roteiro baseado em um livro possa ser sustentado, tão vigorosamente, estritamente por imagens. São as imagens que apresentam os personagens, que os definem, que conduzem o enredo. Nada precisa ser explicado no ou pelo texto, os diálogos impulsionam as ações, não justificam, não decifram, não elucidam. Não é necessário porque a diretora constrói a narrativa com a câmera, sutileza e inteligência.
O enquadramento de Kirsten Dunst sentada ao piano com seu vestido dourado, os olhos brilhantes de lágrimas, o movimento de tensão no pescoço, o assobio de Phil, uma cena que estraçalha a gente. Phil com o “paninho” de Bronco Henry, seminu, a suavidade dos gestos, a sutileza para filmar as iniciais bordadas, o tecido escorregando na pele, o uso da luz, toda a cena carregada de um potente erotismo. A porta entreaberta, quando Rose está ensaiando. As sombras na ação solitária de Phil lustrando a sela de Bronco Henry. George chegando ao galpão e o enquadramento sugestivo da posição em que estão Phil e o outro cowboy. Peter sentando na cama da mãe e empurrando a garrafa de bebida pra debaixo dos travesseiros, a mãe sendo carregada pro quarto – desmaiada – e ao arrumarem a cama pra ela a garrafa sendo revelada. O sangue de Phil esguichando no trigo dourado e Peter matando o coelhinho (sei lá se é trigo, entendo nada de planta, mas não ia perder esse link, né, tu te tornas responsável pelo que cativas, risos), momento que é, concomitantemente, a confirmação do vínculo entre Phil e Peter e a brecha para a traição planejada. Poderia ficar listando a sucessão de imagens completas e complexas, suficientes em si mesmas e, ao mesmo tempo, parte de uma figura maior.
Além da potência e beleza das cenas, cada uma e qualquer uma, temos também a construção dos personagens via imagem. Rose que vai murchando, George, sempre calmo, muitas cenas de imobilidade. Um parêntese: de início a calma de George faz pensar que ele é submisso ao irmão mas sua aparente inércia ante ao caos das reações de Phil garante que ele sempre obtenha o que pretendia. Peter, alinhado, com um andar um pouco instável e cambaleante, retraído e um olhar esquivo. E Phil, ah, Phil, com sua atitude de vigilância constante, gestos duros e contidos, espiando de canto de olho, baforadas de cigarro expelindo a tristeza que ele não é capaz de nomear. Phil que mantém nuas suas mãos porque nada mais de si pode ser visto. Phil é um homem furioso e sabemos disso sem que precise ser verbalizado ou explicado.
O que não é dito tem papel fundamental na construção do filme. O que Rose não pode dizer da disputa por espaço com o cunhado e o receio da nova posição advinda da ascensão social. O que Phil não pode dizer sobre sua sexualidade, suas memórias, seus anseios reprimidos. O que George não pode dizer sobre seu desejo por uma vida mais “limpa”, sua diferença em relação ao irmão, sua vontade de se impor. O que Peter não pode dizer. O imenso que é o que Peter não pode dizer. E o irritante barulhinho do pente. Com muita consideração pelos personagens, o filme também não nos diz o que eles não dizem, guiando-se pela insinuação, pelo entrevisto, pela sugestão. O que é evocado. Ecos.
Um filme de silêncios, brechas. E um filme de fantasmas cuja ausência é presença pesada. Assombram. Mobilizam. Pairam. O pai de Peter. E, principalmente, Bronco Henry. Uma atmosfera sufocante em contraste com a imensidão dos espaços.
Poder, solidão, desejos – muitos reprimidos, violência, inveja, crueldade, nostalgia, traição, controle tudo está presente no filme que vai crescendo dento da gente. Ataque dos Cães é daqueles que nos deixa tensos durante toda sua transmissão, ficamos atentos e dedos curvados esperando que “algo” aconteça e, quando chegamos ao fim do filme, percebemos o quanto ia acontecendo enquanto esperávamos. É um filme de pressentimentos. Nos acompanha aquela sensação de “opa, vai vir aí, eita, será que isso é um perigo, uia, vai dar merda, opa, é agora que a casa cai”. O que está sendo ameaçado? Não sabemos exatamente. Uma primeira impressão talvez seja o contraponto da fragilidade de Rose, George, Peter ante a brutalidade do meio, especialmente Phil. Pé ante pé vamos saindo dessa zona de conforto estereotipada e levados para um suspense de zonas mais cinzentas. O que realmente me prendeu é que o conflito entre os personagens é apenas um elemento, há – e principalmente – os conflitos internos dos personagens. Os personagens se atraem e se repelem, assim como se encontram e se destroem no seu próprio agir. A intimidade e o encontro só acontecem de forma transitória e, mesmo, deletéria. Personagens dolorosamente solitários, é o que encontramos por toda a ação.
Gosto e destaco a movimentação de afetos mobilizados pela personagem Rose. Única personagem feminina proeminente, ela se coloca como motriz da ação dos 3 personagens masculinos, representando para cada um deles algo distinto, ao mesmo tempo em que carrega sua própria trama, suas motivações, conflitos, anseios, tensões e conquistas. A cena em que ela recebe os anéis, ah, que instante fortuito e revelador. Para Peter, como epígrafe, a frase de Perdas e Danos: “pessoas danificadas/machucadas são perigosas, elas sabem que podem sobreviver”.
Ouvi sussurros de que não é um “verdadeiro” faroeste. Não sei se as pessoas não viram bem este filme ou os faroestes todos. O embate civilizatório está todo lá. Não com a narrativa mais convencional, mas presente em cada disputa sobre como levar a vida, tocar a fazenda, viver os afetos, relacionar-se com o passado, desejar algum tipo diverso de futuro. Embate este também presente no próprio personagem brilhantemente defendido pelo Benedict Cumberbatch: a fúria, a agressividade, a brutalidade de Phil não são resultado de ignorância ou falta de visão, existem em um homem inteligente, formado em Yale. Além do lance barbárie/civilização temos o ambiente hostil e árido ao qual se precisa sobreviver. Sejam as imensas paisagens externas sejam os despenhadeiros internos. E há o horizonte. Sou conquistada por diretores que sabem filmar o horizonte de forma a emprestar-lhe complexidade e vínculo com a trama. E, por fim, nada mais faroeste que o último duelo ao pôr do sol – mesmo que as armas não sejam as convencionais.
Apesar de ser, sim - um belo e bem inscrito na linhagem – faroeste, a partir de um certo momento do filme lembrou-me bastante Trama Fantasma. Pela sutileza, pela tensão, pelo amor mesclado com a morte, pelo xadrez que se tornam as relações. Pela ambiguidade no sentir. Pelos vestígios que vamos encontrando do que parece acontecer de forma maior e mais linear em outro plano, disputas que suspeitamos mais do que acompanhamos, Sentimentos diversos que se sobrepõem, se chocam, se redefinem. Nada mais Trama Fantasma do que apenas Peter “enxergar” o que Phil vê na paisagem. Phil castrando 1500 animais com seu canivete. Peter abrindo um coelhinho fofo para estudar os órgãos. A cumplicidade, porém, que encontramos até o fim entre Reynolds e Alma, em Ataque dos Cães é pervertida e deslocada no desenlace, a diretora nos convida a ocupar o lugar na dupla com Peter enquanto Phil, à parte, terceiro no seu próprio desfecho, se torna alvo da ação de Peter e do nosso olhar associado.
Ataque dos Cães não depende das palavras, mas as usa muito bem. Quando George chora ao repetir alguns passos de dança, encara Rose e fala: “eu queria dizer como é bom não estar sozinho” – não é uma explicação ou um fechamento para a cena, é uma chave do personagem, do filme, dos dias, somos sós e temos que nos haver com isso, se de vez em quando pudermos acreditar que não, é um alívio e uma bênção. Outro exemplo da importância e do bom uso do dito está no desfecho - que a muitos pode parecer surpreendente - que é anunciado no texto que ouvimos quando ainda estão passando os créditos iniciais.
Intenso, aflitivo, angustiante. Como eu disse: cinema de primeira qualidade.
PS. Tal como um dos maiores faroestes de todos (The Seachers – Rastros de Ódio) Ataque dos Cães traz uma rima em imagens: na primeira vez que vemos Phil ele está enquadrado por portas e janelas, altivo em seu traje de vaqueiro, no fim do filme, um eco dessa imagem, a mesma moldura mas um Phil débil, frágil, descaracterizado em suas roupas formais. Brilhante.
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Mal acabou o primeiro mês do ano e nós tá como, lá no Cais de Saudades? Isso mesmo: EXAUSTA.