Newscoisa #75: "Quando foi a última vez que você convidou a morte para entrar?"
Newscoisa #75: "Quando foi a última vez que você convidou a morte para entrar?"
Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Eu tive covid e vivi essa experiência em dois registros. No Lado A, posso dizer que as vacinas salvam vidas demais, por aqui quase nenhum sintoma, companhia ótima em casa, altas risadas, tempo pra cozinhar, horas de sono, ok, cabelo caindo e um pigarrinho chato – mas eu sempre quis fumar, né? Nada digno de nota.
Por outro lado, assisti o filme The Hitch-Hicker. Dois homens maduros, fortes, relativamente broncos, habilidosos (por exemplo, um atira muito bem, o outro é mecânico), vão pescar no México. No caminho, dão carona a outro cara que é, na verdade, um perigoso assassino em fuga que os obriga a dirigir na direção do que ele supõe ser seu lugar para escapar. Gilbert e Roy (os tais amigos maduros) sabem que serão assassinados em algum momento, mas não sabem que momento será este, apenas que será quando não forem mais úteis na visão de seu sequestrador. Para mim, um filme sobre vulnerabilidade. Sobre ficar à mercê, não ter controle do que se faz nem do que será feito a eles. Sobre medo. Sobre não poder escapar. Pior, não saber como escapar. Sobre ficar preso, restrito. Sobre perceber, no mundo, o que lhe importa – como Gilbert Bowen (Frank Lovejoy) se comovendo com a presença da menininha mexicana na bodega.
E sobre solidão, porque por mais que alguém esteja em uma situação similar, nunca será a mesma situação, a mesma angústia, os mesmos fantasmas, a mesma vergonha, o mesmo desassossego, a mesma debilidade, a mesma sensação de cair em um vazio sem fim.
Myers – o “do mal” como eu dizia quando era pequena – é um destruidor inicialmente invisível. A sequência de abertura (que começa ousadamente já nos créditos) é uma aula de cinema. Acompanhamos sua presença no filme como uma sombra de desgraças que se espalha sobre as pessoas, indistintamente. De forma inteligente, a diretora nega identidade também às vítimas iniciais, que conhecemos apenas por seus bens espalhados ou placas de carros. Uma morte tão violenta que desumaniza. É o horror que os define, matador e seus mortos. Com seus crimes divulgados na mídia, o pavor que Myers causa vem tanto de suas ações como de sua fama prévia. Quando enfim ele sequestra os protagonistas e tornam-se conhecidos, algoz e vítimas, nos acompanha - e a eles também - a sensação de que mesmo que não esteja fazendo tanto mal, poderia.
Os sequestrados falam pouco, talvez porque falar materialize a impotência. Talvez porque não se possa dizer o que se quer que seja ouvido.

O começo do filme é um textinho que nos enreda na narrativa. “Esta é a verdadeira história de um homem e uma arma e um carro. A arma pertencia ao homem. O carro poderia ser o seu – ou o daquele jovem casal ali do outro lado do corredor. O que você verá nos próximos 70 minutos poderia ter acontecido com você. Porque os fatos são reais.” Poderia ter acontecido com você. Com qualquer um. Isso é assustador, a imprevisibilidade, o alcance, a ameaça inespecífica e um tanto aleatória. Você pode se cuidar, deve se cuidar, mas não há garantias. Há brechas. Possibilidades.
E depois que o mal acha você, paciência. Não importa quão habilidosos os moços sejam, não importa o quão amigos eles são, como se protegem, se apoiam, se aconselham, não importa se são valentes e encaram ou se decidem fugir numa brecha da vigilância do assassino, não importa quem eles são nem como se comportaram, eles foram capturados e agora estão vulneráveis, desamparados, angustiados e com medo.
Este filme foi escrito e dirigido em 1953 por uma mulher, Ida Lupino.

Se você tem ideia de quantas mulheres, em toda história do cinema, já ganharam Oscar de melhor direção (ou mesmo foram indicadas nesta categoria) pode ter a dimensão do que representa Ida Lupino. Agora imagine esta mulher roteirizando e dirigindo um noir de ação crua, dura, de violência explícita, sem romance, sem promessa de redenção. Um filme de sombras – na tela, na alma, no horizonte. Um filme que praticamente criou um subgênero - “cuidado, não dê carona, más notícias te aguardam” – que mesmo soando repetitivo hoje, não o era em 1953. E, principalmente, um filme primorosamente dirigido não só no que se refere à condução dos atores como também no uso da câmera, câmera que fecha em objetos como as placas de carro contando o percurso do assassino no interior do país, câmera que dá closes nos fazendo mergulhar na angústia dos sequestrados e na crueldade maliciosa do assassino, câmera que faz planos abertos contrastando a escuridão do deserto com o farol cegante do carro nos fazendo compreender o desamparo solitário dos personagens e sua falta de perspectiva.
O que Ida Lupino nos conta, ao fim de tudo, é que a convivência com este mal, fragiliza. Maltrata. Destrói. Os homens – distantes de um heroísmo romântico – ficam mais abatidos, fraquejam, duvidam, vacilam. Temem. Sucumbem. Mesmo depois do fim da ameaça, ela ainda age sobre eles um tempo, sombria e determinante.
Assim, evitem sair de casa, amiguinhos. Usem máscara PFF2 em todos ambientes fechados e, se possível, KN95 em ambientes abertos. Não confiem na proteção da familiaridade amorosa. Aglomeração não é só público no estádio ou gente em shows com milhares de pessoas. Aquele almocinho com gente querida, apenas mais três ou quatro, em espaço ventilado, porém fechado, também é um risco.
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Hitch-Hicker foi inspirado pelos eventos causados por Billy Cook, em 1950. Assisti outro filme que tem inspiração em eventos reais. Tudo isso, e o céu também (1940), uma espécie de Noviça Rebelde bem mais trágica em uma superprodução baseada nos fatos relacionados à morte da duquesa Choiseul-Praslin. O filme tem 143 minutos, mas com a Bette Davis, então a gente nem sente o tempo passar. Além dela, também tem amor, tem injustiça, tem espartilhos que levavam meia hora para ser colocados - nas atrizes e no ator principal, tem redenção, tem o mítico país jovem, tem a queda de um rei, poxa (além do drama pessoal envolvendo marido, filhos, governanta, um pastor norte-americano, etc, o caso levou a uma crise na França que deu um empurrão em direção à revolução de 1848).
Mas, sobre este, não estou pronta para falar.
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Uma saudade imensa de prego de atum no bolo de caco.
Estou apaixonada por pimenta biquinho.
Cabelo imensamente macio, mas precisando de um corte.
O mês continuou depois do fim do salário deixando contas por pagar.
Estou relendo Atwood, Negociando com os mortos. A verdade, Margaret, é que não tenho me saindo bem na barganha, uns fantasmas debochando no vazio.
Olimpíadas de Inverno: adoro. Um monte de esporte que não entendo, com atletas que não consigo reconhecer porque cobertos igualmente da cabeça aos pés, tudo empolgante - só sei mais uma coisinha sobre patinação artística porque a) lembra ginástica olímpica e b) as pessoas ficam com os rostos visíveis, dá pra se apaixonar por e acompanhar alguns atletas.
Eu gosto mais do que deveria de receber seus emails.
