Newscoisa #76: Vertigens
Newscoisa #76: Vertigens
"Você não entende! Eu poderia ter classe!
Eu poderia ser um lutador.
Eu poderia ter sido alguém,
ao invés de um vagabundo, que é o que eu sou"
Disciplina é importante, a Fal me ensinou. Anotar ideias, tipo o Woody Allen. Fazer um diário. Escrever todo dia. Claro que eu não faço nada disso. Sou um caos, um caso quase perdido. Para não me perder de todo, aceitei o convite de um amigo e escrevo, semanalmente, um textinho para o @imagem_vertigem, lá no instagram. Funciona mais ou menos assim: um curador seleciona fotografias, disponibiliza para o grupo, cada um escolhe que imagem lhe mobiliza a escrita e indica um dia de publicação. Voilá. Percebi, no susto, que já faz um mês. São textos sementinhas, ainda, já que a quantidade de caracteres permitida no instagram exige um comedimento que não é o meu forte. Como na parábola bíblica, talvez se quedem inertes e efêmeros. Talvez cresçam e se tornem o que podem vir a ser. Se eu fosse mais disciplinada, né?
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Fotografia de @mel.ns

“O amor é azulzinho”. Penso nisso todo dia quando minha neta me dá um beijo na testa e vai pra rua. A mãe dela que cantava assim, enquanto engomava o cabelo na sala. Minha neta não engoma o cabelo. Vai de dread. De dread azul. Tem a cor, ela. Eu também tenho. E a mãe tinha, minha filha que morreu. Ficou o riso pela casa e na boca da neta de dread azul que não tem vergonha da cor que matou a mãe e que me pesa no cabelo tão curto que nem enrola. Mas a minha neta luta de dread cada vez mais comprido. Bonita toda, cabelo, sorriso, cor e coragem. A cada dia eu fico na porta, esperando o beijo, matutando a beleza do cabelo que balança naquela cabeça tão reta. Sustento dor, medo, vergonha, cansaço, trouxas de roupas lavadas, saudade tanta que eu quase já não saio de casa. Orgulho, vó - e ela vai no sindicato e no salão e na escola e no grêmio e faz enem e passeata e dança e canta pra mim que o amor é azulzinho, porque ela diz que não podemos esquecer nem perdoar. Eu não entendo direito, rio e choro às vezes de uma vida não vivida. Da filha que quase nem foi mãe. Ou a minha. Ainda me sinto amarrada no tanque. Mas hoje não. Hoje eu vim também. Caminhar na rua e sentir orgulho. Lá vai ela, com a namorada, as palavras de ordem e seu dread azul. Lá vai ela que eu pensei que criava. Acho que vou fazer trança no meu cabelo. Virem pra cá, meninas - foi ela que me ensinou a tirar fotografia.
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Fotografia de @victor.bertoluci

Parei no meio da frase, engasgado. Você me olhou com aquele jeito de passarinho, o pescoço entortando levemente pra direita, os olhos estreitos e um pequeno biquinho com os lábios finos. O silêncio vira pedra entre nós. Você não entenderia a figura que cresce na minha cabeça. Um jogo de basquete, você está pensando em um jogo de basquete numa hora dessas? Existem momentos em que a vida faz uma pausa. Como dois homens no ar e gestos prestes a acontecer. É tão bonito que dói. O tempo tensionado a ponto de não existir. No movimento seguinte, a realização, o fracasso, o toco, a cesta, o incerto. Um beijo ou a rua. É o mundo que prende o fôlego enquanto os corpos imprimem no espaço a (im)potência. Sim, eu estou pensando em um jogo de basquete. Despreocupado com meu jeans e camiseta de time, ingresso no bolso de trás, fila, arquibancada, expectativa até o urro que cresce em todos os peitos, e eu já nem sou, desapareço misturado ao quadro perfeito dos dois homens voando, o tempo em espera e a torcida como cenário. Já trepamos assim, sabe. Não me mexo. Mesmo que eu marretasse o vazio com essa memória, você me perguntaria o que aconteceu a seguir. Se foi cesta, qual o placar, quais os times, quando, como, onde. E não importa. É como morrer ou gozar, quando a vida não acontece, quando qualquer coisa poderia ser, mas já ou ainda não é. Os homens pairam para sempre na lembrança. Talvez alguém quisesse nos fotografar agora, seus olhos imensos boiando na cabeça inclinada, mão estendida como se pretendesse interceptar o meu movimento quando eu quase alcanço a maçaneta. Dói tanto que é bonito.
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Andei escrevendo lá pelo Cais de Saudades uns solucinhos de nada:
De grão em grão; Exausta; Muito Greta Garbo, ela.