Newscoisa #77: "Felicidade é uma saúde boa e uma memória ruim" (quem dera!)
Newscoisa #77: "Felicidade é uma saúde boa e uma memória ruim" (quem dera!)
"Escrever é como dirigir um carro numa estrada, à noite.
A gente só vê até onde a luz dos faróis alcança,
mas é possível fazer a viagem inteira dessa forma."
(E. L. Doctorow)

Vi, agora a pouco, a chamada para uma entrevista da Ferrante em que ela diz que "se sentia diferente quando era criança". Eu sempre fico maravilhada que as pessoas lembram o que pensavam e sentiam quando eram crianças ou adolescentes. Eu mal sei o que eu senti ou pensei de 2010 pra cá.
Olho fotos de quando eu tinha, sei lá, 8 anos e reconheço nelas uma criança feliz. Sei que eu era feliz, mas não faço ideia do que eu pensava, do que eu sentia quando aquelas fotos foram tiradas. Não tenho a mínima memória, por exemplo, do que eu conversava com as colegas ou como era o dia a dia na escola – embora me lembre dos espaços (talvez porque convivi com eles por 11 anos como aluna e mais uns 10 depois disso, com meus irmãos ainda estudando lá), não me recordo dos meus sentimentos nas brincadeiras na rua, nem nada parecido. E isso não mudou na minha adolescência ou juventude.
Eu vejo fotografias em que estou e invento sentimentos, pensamentos, até comportamentos baseados nas pistas que as imagens trazem. Quando digo que minha vida é ficção não é porque haja alguma mentira no que conto, e sim porque não há caminho para uma verdade qualquer, nem mesmo fragmentos dela.
Não me considero uma pessoa invejosa, usualmente. Mesmo quando não estou contente com a minha própria vida, raramente anseio pela vida dos outros ou pelo que tem na vida alheia. Mas de vez em quando eu invejo, sim, as memórias. Sei bem demais (oi, Freud) que as lembranças não são “a” verdade”, são selecionadas, peneiradas, reinterpretadas, imaginadas, recombinadas, editadas. Mas tenho inveja dessa confiança que as pessoas sentem de que aquelas memórias são delas. Que elas viveram, pensaram, sentiram aquelas coisas daquele jeito. Sinto falta desta convicção.
Eu só enxergo o que a luz dos faróis alcançam, não só na escrita, mas na vida. E eles não iluminam o que, no movimento, já deixei pra trás..
******************

Eu não tenho elogios suficientes para Station Eleven – série e livro. A série, especialmente, me enterneceu de uma forma que eu ficarei insatisfeita por já saber que não vou conseguir transmitir todo o agridoce que me acompanhou em cada episódio. A gente (a gente sou sempre eu) sente tudo, tudo, tudo: ansiedade, alegria, desespero, alívio, angústia, solidão. É fascinante, empolgante, um pouco frustrante e muito envolvente. O mundo acabou, eita.
Station eleven é sobre depois. Depois do fim. Do fim do mundo. Do fim de todos os mundos em que cada um dos personagens vivia – eram mundos bem diferentes e todos eles acabaram. Sobre a perda, sobre o que não se cessa de perder. Sobre o depois da perda e os recursos que usamos para seguir: resguardar, proteger, reinventar, criar, abdicar, abandonar – e como todos eles são insuficientes, mas, também, de alguma forma, necessários.
É, também, e talvez principalmente, uma série sobre afetos. O caminho narrativo escolhido é íntimo, pessoal e um belo quebra-cabeça. Em muitos aspectos, me lembrou This is Us na forma como vai nos oferecendo fragmentos das histórias e os personagens vão nos conquistando neste processo. A decisão de cuidar de alguém. O desejo de ser aceito. A impotência. O apego. O que há para se temer depois do fim do mundo? E, mesmo assim, ainda se sofre de dor de cotovelo.
Em Station eleven, há muita delicadeza. Atos gentis. Há, também, medo, expectativas, egoísmo, ferocidade, resignação. Mas, principalmente, há reverência. O belo não pode e não é esquecido. O que pode sustentar a existência é, talvez, essa capacidade de sentir e se vincular pela criação.
Algumas coisas doeram muito assistindo o programa – e ainda doem. Sobreviver não é um ato de vontade individual. Percebi o quanto estou completamente despreparada para ele. Foi incômodo (re)conhecer(me) Miranda. Criar apenas porque sim. Porque não se consegue ser sem fazer isso. E perder demais nesse inevitável. Quando há algo que se precisa dizer e não conseguimos escapar – nem mesmo em direção à felicidade.
O avião de passageiros mortos antes de verdadeiramente estarem vai me assombrar para sempre. Nunca sabermos o que aconteceu ali dentro, o que foi necessário que acontecesse – nem por isso menos assustador, doloroso e até cruel.
Uma coisa que a série retrata muito bem é que a morte é sempre um acontecimento ímpar. Mesmo em uma pandemia, é no um a um que importa. É essa sensibilidade ao tratar a morte e o que se esquece que dá tonalidades tocantes à vida.
Há algo de brilhantemente inquietante em Station eleven: a falta de estranheza com o que deveria ser sentido como um depois. Não há teatro, energia, internet e ainda assim há comunicação, luz e Shakespeare. Pode ser desconhecido o que o mudo será, mas nem tanto – talvez – o que seremos nele (ou será justamente o contrário?).
Permanece a invenção, a arte, a criação. Quase idilicamente seguimos com aquelas estranhas carroças de carros puxados por cavalos, meio passado, meio mais passado ainda. Como se fosse possível uma integração ao novo. Entretanto também há uma certa reserva e o apego a padrões como garantia. Não abandonar a rota. Não sair do curso. Não aventurar-se. Não aceitar desconhecidos, não “se misturar”. Temer. Recear.
Há, no que sobrevive, o sombrio, melancólico, apavorante, mas há também o engraçado, o luminoso, o encantador. A Sinfonia Itinerante tem uma espécie de mantra (resgatada da cultura pop) que me assombra os dias desde 2020: a sobrevivência é insuficiente. De uma forma singela e bonita, Station eleven é um tributo meio inception. Por meio de uma criação cultural áudio-visual se homenageia o além da sobrevivência que a arte possibilita. Não por acaso as pessoas no mundo pós-apocalíptico ainda reelaboram seus sentimentos encenando Shakespeare. Ainda encontram conforto, resposta, inspiração, identificação em Hamlet. Queria, sim, descobrir caminhos em mim para o além de estar viva um dia depois do outro.
Na série, mesmo quem nasce depois da tragédia e não tem nenhuma recordação do pré-pandemia ainda sabe desse mundo/tempo mitificado pela memória dos que sobreviveram. O que é a memória? O quanto ela nos orienta, sustenta, inspira e o quanto ela nos aprisiona, restringe, impossibilita? Não é a catástrofe que, a xxxx prazo, importa, mas de como nos lembramos dela - e mais: de como nos lembramos de nós que sobrevivemos a ela. Também por isso, entendo, Lembro-me dos danos é uma frase incessantemente repetida pelos personagens da série, sobre variadas perdas e sofrimentos, e que comove tanto.
Também deles eu tenho alguma inveja.

*********************
E tem post no Cais de Saudades?
Tem sim: As coisas que você estragou pra mim.