Newscoisa #78: Na banguela
Newscoisa #78: Na banguela
"Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses"
Querida pessoa,
Estou te escrevendo porque não tenho sido quem eu quero ser pra você – e acho que ainda vou demorar a chegar (ou voltar) pra lá. Foram (estão sendo) anos complicados estes da pandemia. De certa forma, não tive dificuldades, você sabe que a casa é grande, tenho dinheiros ok, me informei direitinho sobre máscaras e tal, meu trabalho me permitiu isolamento completo e por perto tinha uma irmã pra conversar na calçada. Mas acontece que eu fiquei muito, muito triste. Senti as mortes e mortes e mais mortes como perdas pessoais. Senti a sombra da fome, da miséria, do desemprego como se ela escurecesse os meus próprios dias. Lamentei a doença e a gestão da situação justamente por conseguir pensar em cenários muito diversos – e melhores. Senti cada onda me afogando e, ao tirar a cabeça da água, vi as sequelas espalhadas por todos os cantos presentes e futuros. Como eu disse, uma imensa tristeza em mim. A desolação me ocupava inteira. Não cabia você, desculpe. Não cabia ninguém.
Daí o mundo, a vida, as pessoas, em um conjunto dissonante, mas ruidoso, foi anunciando que o tempo da lamentação passou. É preciso recomeçar. Buscar o normal. Se permitir. Agora vai. Abri porta e janela, bati tapete, espanei as quinas, expulsei o pesar todo de uma vez. Já vai tarde. Acontece que sem ele eu fiquei oca. A presença da tristeza, pesada e concreta, tinha aniquilado tudo o mais e, ao partir, ela deixou solo infértil, território insalubre, impróprio para pessoas. Você não sobreviveria aqui. Em se plantando, tudo definha.
Se você recebeu essa cartinha, saiba, é porque me importo com você. E queria te pedir paciência. Queria pedir desculpas por não conseguir ser melhor e mais presente quando, eu sei, você também precisou. Pedir pra você me receber quando eu, um dia, conseguir voltar. Espero me fazer espaço seguro e acolhedor novamente, para ter você por aqui.

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Se eu não atendi seu telefonema ou não respondi sua mensagem, saiba: eu te amo sim, mas eu não quero falar com você.
Se eu atendi seu telefonema, respondi sua mensagem ou dei alguma notícia, saiba: eu te amo, mas fiz isto por obrigação. Não quero falar com você também.
Eu não quero estar com as pessoas, ouvir a voz das pessoas, encontrar as pessoas. Provavelmente não quero falar com as pessoas porque não tenho nada a dizer de mim.
Perdi tudo, até a tristeza.
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Status: um Mr. Satterthwaite ao contrário.
“você que me faz feliz, você que me faz cantar“. Não sei de quem a Marisa Monte estava falando mas eu sempre penso no Flamengo.
Todo dia a mais é um dia a menos.
Não sei quantas vezes vou rever Vingadores Ultimato até a posse do Lula. Muitas, certamente.
Nelson Rodrigues diz que “depois de matar, o criminoso se torna secundário, ou nulo, e repito: some como se jamais tivesse existido”. Parece-me, a princípio, que assim é com o escritor. Ele não importa, o que importa é a sua escrita. Ou, antes, o que importa é o que está escrito. É o texto que é, não o autor. Digo, reluto, e retorno. Flaubert me vem: Madame Bovary sou eu. O escritor é o criminoso rodrigueano, mas é também a vítima. Ele está no dito mesmo que não se confunda com ele. Quem se equilibra na ponta da pena e faz, dela, lâmina, pra escrever o último bilhete. Com as unhas vermelho sangue.

A verdade é que abdiquei de marchas e embreagem,
agora vou descendo a ladeira na banguela, regulando só no freio.