Newscoisa #82: einmal ist keinmal? (pensando aqui no programa The Rehearsal da HBO) (sem spoilers)
Newscoisa #82: einmal ist keinmal? (pensando aqui no programa The Rehearsal da HBO)
Uma notinha antes
Escrevi este texto e acabei postando no meu blog. Mas, sei lá, ficou me incomodando, parecia estar no lugar errado. Pensei nas plataformas (de lançamento?) que uso e nos seus nomes. Cais de Saudades, o blog, é um lugar de ancoragem. De deixar repousar o dito. De buscar suprimentos, interagir com os "locais" que perambulam pelas ruas do porto. Mesmo que alguns posts possam de lá voltar a partir, a maior parte demora-se em reparos ou jogam âncora permanente. É um lugar para textos que aproveitam o balanço. Já à newscoisa, chamei-a de Garrafinhas da Lu e há, nisso, pelo menos um propósito evidente. São palavras que eu quero que cheguem em algum lugar. Em qualquer lugar. Mensagens que envio. Algumas de socorro. São textos que buscam leitores. E esse é especialmente assim. Trouxe pra cá, como não? Se você viu a série, me diz, por favor, por favorzinho, o que achou? Como se sentiu? O que pensou?

A coisa mais assustadora que assisti recentemente foi The Rehearsal (o Ensaio), série da HBO. Não tem filme de terror que chegue próximo da angústia que aquilo provoca na gente (a gente sou sempre eu, tá?). Uma série em que pessoas ensaiam momentos da sua vida – não sozinhos na frente do espelho antes de um encontro ou chorando no banho, pensando em tudo que poderia ter feito ou dito depois da situação vivida – mas com dezenas de atores, em ambientes milimetricamente reconstruídos para simular lugares reais, com recursos tecnológicos para simular passagem das estações em poucos dias, encenando a mesma situação vezes e vezes, em algumas situações até com bebês recém-nascidos “alugados” como atores.
Não parece má ideia minimizar imprevistos e atenuar inseguranças, mas fiquei matutando sobre essa necessidade de controle transbordando e indo além daqueles rituais comuns tais como planejar uma viagem, fazer listas de compras, manter uma planilha de gastos… ensaios e projetos de realidade que supomos desejar, mas que usualmente reconhecemos que nos escapa pois as banais e cotidianas decisões nos conduzem a imprevistos e imprevisíveis caminhos. E é o impensável que o diretor/ator insiste em – aparentemente – tentar domesticar, o que deveria tornar tudo – imagino – engraçado ou, pelo menos, cômico.
Talvez inevitavelmente, lembrei de um trecho d’A Insustentável Leveza do Ser, uma reflexão do Tomas: “Mas o que vale a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É o que faz com que a vida pareça sempre um rascunho. Mas nem mesmo ”rascunho” é a palavra certa, porque um rascunho é sempre o esboço de alguma coisa, a preparação de um quadro, enquanto o rascunho que a nossa vida é, não é rascunho de nada, é um esboço sem quadro. ”
Será, então, que você não se sairia melhor nas situações importantes da vida se tivesse se preparado e ensaiado antes? Você pode realmente antecipar e ensaiar tudo? E quando alguma coisa dá errada mesmo depois de vários ensaios? Há algo que sempre vai escapar ou você não analisou a situação o suficiente e deveria ter ensaiado mais? E se você roteirizar a vida e depois roteirizar o ensaio para a vida e depois roteirizar o plano do ensaio para a vida? E se você fizer tudo que foi planejado, mas não sentir como deveria sentir dentro do planejado, que elementos deve incorporar ao ensaio para que ele abarque comportamento e sentimento? E esse tempo todo ensaiando é tempo perdido de vida ou é a própria vida? E, em sendo a vida, não deveria ensaiar para o ensaio do ensaio da vida? Talvez estas sejam algumas das perguntas que vão se imiscuindo gradativamente, guiando e orientando o programa.
É interessante que os rumos dessas questões, pelo menos na série, parecem nos conduzir para o oposto da conclusão de Tomas. Enquanto Tomas “repete em silêncio o provérbio alemão, einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é pura e simplesmente como não viver”, a espiral do ensaio para o ensaio do ensaio da vida que Nathan Fielder nos apresenta parece implicar que, insistindo nesse processo, o que resta é nascer, ensaiar e morrer, transformando a vida em um esboço recorrente.
Pode ser que o programa se proponha mesmo a ensaiar situações da vida como se elas fossem potencialmente controláveis e seja o mais aproximado possível do que vemos. Pode ser que se procure, sinceramente, organizar e dar sentido a uma realidade caótica via fluxos, gráficos, planejamento e alguma situação de comédia. Pode ser que seja realmente o que vemos, como vemos, mas seu propósito não seja o ensaio, mas explicitar e discutir que o como as pessoas agem e sentem caracterizam a forma de (e até impedem) lidar com as situações que vão transformar as suas vidas. E pode ser que seja tudo, tudo, tudo roteirizado e seja feito para deixar o espectador em uma zona incerta sobre os limites da realidade e da ficção e as especificidades da ficção de realitys e/ou da realidade ficcionalizada. Pode ser que a piada seja a imprecisão na figura singular que conduz o show, a incerteza se é um personagem consistentemente sustentado ou um personagem que ao longo do processo incorpora de forma sincera as preocupações do ator/diretor ou um ator/diretor que foi descobrindo o programa e a si mesmo ao fazê-lo. Pode até ser uma terapia muito cara e pública (meio como a minissérie Maysa). Qualquer que seja o propósito, a realização e a própria existência da temporada – confirmada a segunda – me tocou de formas nem sempre agradáveis.
Se o programa faz uma trajetória de questões simples a mais complexas, se compreende, ainda, um percurso do seu criador, também nós, espectadores, nos deslocamos (ou talvez seja uma questão minha): em alguns momentos penso que vejo algo revelador, criativo, provocador e até valioso, em outros momentos acho tudo muito forçado, meio ridículo e certamente pouco ético. O nosso – o meu – não é um trajeto linear. Funciona mais como pêndulo. E apesar de ter visto os seis episódios, não sei bem para onde o pêndulo aponta no meu agora.
O convidado do primeiro episódio compara Nathan com Willy Wonka (aquele do imenso chapéu e dos cupons para A Fantástica Fábrica de Chocolate) e é de uma extrema perspicácia (se ele mesmo pensou nisso) ou autoironia (se foi roteirizado): afinal, vale qualquer coisa se garante o final feliz do menino gentil e um tanto esquisito?