Newscoisa #84: Memória, esquecimento, estranhamento
Newscoisa #84: Memória, esquecimento, estranhamento
Vocês já fizeram muitos vínculos pelas internetes? Euzinha, já. E sou grata por tanta gente boa que, de palavra em palavra, chegamos no abraço. A primeira pessoa que passou do ecrã para o boteco foi a Raquel. Na época, nem sabíamos nossos nomes, éramos pessoa-que-escreve-o-borboletas e S-que-muda-os-sentimentos.
Há vários motivos para se amar Raquel e, pra mim, um dos principais é que ela foi a única pessoa que, quando eu disse eu vou, mas me arruma um...como direi? me arruma um vestido aí, não riu e deixou pra lá. Ela realmente arrumou um.. vestido pra me emprestar. E não um...vestido apertado, surrado, há muito no canto dos sms esquecidos. Magina. Foi um...vestido tinindo. Gostoso demais. Obrigada, Raquel, pelas alegrias descompromissadas de velhas-novas-roupas cheirando a cerveja.
Mas o motivo pelo qual decidi trazer Raquel, na garrafinha de hoje, nem é por seu bom gosto em relação a...bom, roupas, né, nem por seu circunstancial desapego. Estamos nessa conversa porque além de minha querida amiga, Raquel é uma artista admirável e vem chegando com uma nova exposição.
A memória é uma ilha de edição, a frase de Waly Salomão me provoca, me incita, me ensina. O que podemos lembrar? O que precisamos esquecer? O que nos escapa, o que sempre retorna? Como tudo isso nos forma, e mais, como isso tudo se torna – também – o que somos? Na edição, o que é apagado permanece em nós como identificável ausência e o que permanece não o faz sem ajustes, cortes e reinterpretações.
As obras de Raquel Stanick que constituem o trabalho “Memória e Esquecimento” operam como flashes que iluminam lembranças, ora de forma suave e quase nostálgica, ora com uma luz tão forte que chega a cegar - e em ambos os casos acessamos o que ainda está e o que foi deixado para trás, mas nem sempre identificamos qual a natureza do que nos toca e comove.
Não só o que a gente recorda ou olvida, não só os motivos e afetos que acompanham esse processo, se fazem presentes no trabalho da artista. Também encontramos uma inquietação sobre os caminhos da memória e sua própria constituição. Pensamos saber o que vivemos e evocamos esses passados, mas o fazemos em representações, com palavras e imagens que não são o próprio passado, não são a experiência, mas o que dela podemos – ainda – dizer, seja em que linguagem for.
A pátina simula a ação do tempo, mas não é o próprio tempo. Nossas memórias são uma reinterpretação do vivido, mas não a própria existência passada. É na não-identidade entre a coisa e o humano e sua produção, que a expressão da artista encontra sua forma verdadeira, ou melhor, autêntica. Nas obras, não conseguimos ler o que lá se inscreve, é justamente aí que se abre a possibilidade de comunicação entre a tela e quem com ela se depara.
Raquel mescla artes manuais, literatura e artes visuais - em cada peça e no seu conjunto - e o resultado dessa amalgama me comove e instiga. Se você não pode ir a São João del-Rei mas quer conhecer as obras, tá fácil: aqui o site onde você pode conhecer (e comprar!) algumas das peças que serão expostas.
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Estou fazendo ioga, meditação e terapia a fim de alcançar a tal sensação de vida normal que me abandonou sem deixar recurso de contato. Nem mesmo um antiquado número de telefone. Fazer de conta que tudo isso não passa de mais um dia. Ou um dia a mais, ainda estou acertando o passo. Mas é complicado quando a gente se sente cada vez mais apartada e, na recepção dos consultórios médicos, na reunião de trabalho, nos corredores de supermercados e, sobretudo, nos cafés e suas esplanadas, onde quer que se esteja no meio de muitas pessoas, percebe-se que não se percebe nada do que se passa. O que as pessoas fazem, seus gestos, movimentos e, sobretudo, a língua que usam, se mostram, para mim, desconhecidos.
Bem agora, por exemplo, diante da trabalhadora entediada que cuida do caixa da lanchonete, foi como se eu não soubesse sequer o alfabeto com o qual aqui se montam os ditos. Apontei para a long neck no freezer atrás dela por parecer o menos complicado e concentrei-me em separar moedas e cédulas que, esperava, fossem suficientes. Ela me olhou estranho ao me devolver um volumoso número de notas. Mais um fracasso. Eu, alienada. Alienígena. Brinquei com a ideia de que a sensação de inadequação modificaria o meu organismo de forma tal que o ar respirado entupisse alvéolos. Ou quem sabe a gelada cerveja me encharcaria o tubo digestivo em um engasgo sem volta. Mais que estrangeira, alóctone.
Nada disso aconteceu e sento-me agora na calçada, costas voltadas para a parede, bebendo no gargalo, tentando disfarçar o esquivo da minha existência ao contemplar as pessoas tão viventes das suas vidas que levam os corpos de um lado pro outro com uma displicência que me leva a invejar, sem chegar a entender, suas alegrias, seus problemas, suas contas atrasadas, suas doenças a descobrir, seus amores, seus incômodos vizinhos, seus cineminha de fim de semana, o churrasco de domingo, a reforma do toldo do quintal, o cansaço no arrastar dos pés, seus dias a mais a quem eles tratam com intimidade.
Bebo rápido e, depois de algumas tentativas, descubro um sinal que parece ser entendido pelo garçom, pois ele traz uma nova cerveja. Talvez não tenha sido meu sinal e sim o costume. Duvido que eu venha a ter certeza. Entre os que não me vêem, vejo um desses carrinhos de coleta, lentamente puxados por um homem de idade sofrida, blusa do meu time, havaianas sambadas. Um passo, outro, mais perto, percebo que mexe os lábios. Ele canta? Reza? Recita? Algo em mim quase acorda. Talvez não tenha sido só quase, talvez tenha existido algum tipo de apelo porque ele me olha e sorri. Sorri para mim. E faz um gesto largo, soltando um dos braços do carrinho, fechando a mão e empinando o polegar. Retribuí o gesto enquanto ainda apreciava o sorriso que recebi, um sorrir pra mim, meu. No depois de mim, escuto o samba com o qual ele se embala.
Ali no quase áfona quase surda de deslocada no mundo, aquele sorriso teve mais importância do que tanto. Nisso de precisar sentir-me em uma vida vivida, o sorriso foi bóia salva-vidas. Uma questão de sobrevivência. Recordo a primeira vez que li um livro de fantasia que ninguém do meu convívio havia visto e como a excitação de haver um universo a explorar foi mitigada pela extrema solidão de entender que seria uma incursão solitária. Ainda assim, cada viagem página, percorrida, enchia-me de encanto. É a dádiva daquele sorriso descompromissado lembrar-me que não se pode esticar a tristeza além do seu ponto de tensão. De tanto fazê-lo, pode-se lacear o sentir como a um elástico.
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01 abacate
01 maço de cebolinha
02 maços de espinafre
02 maços de rúcula
01 pacote de goma
01 pimentão vermelho
01 pimentão amarelo
04 espigas de milho
01 polpa de maracujá
05kg de laranja
01 pote de uva passa
01 kg de carne moída
01 kg de coxa e sobrecoxa de frango
R$ 144,00. Cento e quarenta e quatro reais. Estava certo, o Guimarães: "viver é muito perigoso".
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O fim de um amor é o fim de uma vida. Ou duas. A que se viveu, pois claro, com seu úmido de beijos, seu reconfortante de temores partilhados, seu inspirador de anseios revigorados, suas enormes belezas. E a que iria ser vivida. Uma vida inventada, nem por isso menos preciosa. Talvez mais, sem os suores dos meios-dias, sem os cabelos no ralo, sem a eventual mesquinharia no pagar de uma conta, sem unhas cortadas na cama, sem a kunderiana necessidade do léxico das palavras incompreendidas. Chora-se as vidas findas, dano colateral do fim do amor, também ele invenção inebriante (que eles sempre o são), que deixa-nos com uma ressaca insuportável, arrasto-a em fundas olheiras, um constante enjôo, todos os nervos em alerta e a sensação de um corpo que se odeia.
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Acompanhe a correspondência de Lavínia e Elza D. lá no Cais de Saudades.