Newscoisa #85: Reinados, guelras, bléfaros e outras histórias de cama, mesa e banho
Newscoisa #85: Reinados, guelras, bléfaros e outras histórias de cama, mesa e banho
"No dia que você quiser lembrar de mim,
dá uma olhada no retratinho que a gente tirou junto.
Eu digo isso porque tenho medo
que um dia você também me esqueça.
Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo."
Estava aqui matutando que a morte da rainha é praticamente um símbolo do fim do meu mundo. Não em um tom triste ou por qualquer espécie de apego, eu sequer sou da turma que sabe os detalhes das discórdias reais, tenho nenhum interesse na Diana e não aguentei mais que dois ou três episódios de The Crown. Mas é meio o arremate do mundo em que me fiz e que me fez. Meus sonhos, medos, utopias, formas de lutar e amar foram forjados por e em um mundo que já não há. Lá que foram Brizola, Mandela, Gorbachov e essa turma. URSS, Alemanha Oriental, Iugoslávia, adeus. Morreram os cantores e atores de referência. Morreram Chico Anysio, Jô Soares e Os Trapalhões, levando um bocado de riso junto. Morreram os tios dos meus pais, alguns meus, morreram amigos de família da geração anterior. Morreram as pesquisas nas enciclopédias físicas. Orelhões. Máquinas de datilografia. Fita k7. Agenda não morreu, mas trocou de nome e endereço. Alguém pode dizer que o rádio tá aí, firme e forte, mas eu nunca fui uma adepta fiel. Ainda há vestígios, claro, um Zico, um Pelé, a galera oitentona da MPB, Lula. Mas eles, queridos, em sua presente beleza crepuscular, só ressaltam a falta que (me) farão. Daí deu um estalo, a não ser que dê uma zebra inesperada, ainda tenho, sei lá, uns 30 anos pela frente. Não vou viver no “meu” mundo, então tenho que arrumar uma forma de viver neste que estranho.
Racionalmente eu sou do time dos que dizem que não tem isso de “no meu tempo”... enquanto estou no tempo, pertencemos um ao outro. Mas uma coisa é pensar (e até agir), outra coisa é o que nos faz acordar suados – de desejo ou pavor.
Modus que estou aceitando dicas de aclimatação. Chama inbox ;)
Já tinha lido Lacan muitas e muitas vezes, mas não entendia isso do que não se pode dizer. Como não se pode? Um bom dicionário à mão e lá ia eu, feliz, a escrever meus livretos de má poesia que vendiam o bastante para pagar umas contas de água, luz e umas garrafas de gim.
Até aquela manhã. E outras que vieram a seguir em um número ainda identificável de vezes. É difícil descrever como ela acorda. E impossível nomear o que sinto a respeito disso. As pestanas se abrem. E fecham. E abrem. Repetem-se no piscar duas, três vezes. Quatro, vá lá. Nada mais acordou em seu corpo. O olhar turvo, por trás dos bléfaros. Perna, braço, lábios: imóveis. O tórax oscila tão suave que minha mão em seu seio quase não percebe. A lentidão do seu despertar doma o meu, afoita que sou. Espero, em agonia excruciante, que as pálpebras terminem seu balé deixando os olhos expostos para poder falar, tocar, resgatá-la do reino outro em que seu sono a conduz. Eu apenas desligo e ligo, toda noite e manhã. Mas ela, ela se ausenta.
O despertador no celular toca. O feixe de sol atravessa persianas e toca sua nuca. O dispositivo de assistente virtual enuncia as notícias dos principais canais de notícias em sua voz monocordicamente doce. Não importa, nada acelera a forma como seu corpo resiste ao dia. Quando enfim seu olhar se firma em cima de algo, aquilo ganha uma existência que nem sabia possível. O aquilo fui eu, naquela manhã, por acaso. Nem sou de acordar cedo, mas casa alheia, primeira vez, tentei evitar um constrangimento. E o seu acordar me arrebatou. A partir daí, passei a me preparar. Acordo antes, de propósito, e aguardo. Duvidando. Ansiando. Apostando na minha tendência ao exagero. E é sempre outra coisa além do que posso dar conta. Uma vez tentei acordar depois, para romper o encanto. Sinto que perdi um tesouro irresgatável.
Apaixonada? Nem. Não é que tenhamos tanto em comum, sua conversa às vezes me distrai, o sexo é regular, mal conseguimos escolher um filme para o sábado à tarde, deusolivre sua playlist e, francamente, a desorganização dela me assusta. Mas vem a noite, a cama, seus lençóis de barra colorida, ela dorme e no outro dia acordará, acordará?, e eu mal consigo me conter esperando o balouço das pestanas, a imobilidade de morte nos membros, tudo que se suspende em meu peito, mente, pulmões e, enfim, o vestígio de reconhecimento que lhe sorri as retinas, quando entro em foco.
Dê cá um abraço, Lacan.
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O cara podia ter escolhido se chamar Rei Arthur e deixou o cavalo branco selado ir-se embora com excalibur pendurada na sela. Tsc, tsc.
No Ceará nós temos o Rei da Panelada. Sinceramente, Ceará melhor em tudo.
Quanto tudo é enorme e seu peito demasiado pequeno.
Status: escolhendo figurinhas do Dilbert para a atividade dos alunos.
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Cardápio de almoços (2 semanas)
omelete de repolho roxo, abobrinha, cenoura, cebola, alho, vagem e brócolis com salada de rúcula e manga
arraia refogada no dendê, batata doce e tomate
espaguete de abobrinha com molho de tomate e queijo coalho
purê de espinafre, carne moída soltinha, tomate, milho, cebolinha e pimenta biquinho
curry de grão de bico e abóbora
atum com crosta de gergelim, vagem salteada e purê de batata doce
lombo de porco na cerveja e coleslaw
guacamole, ovo frito, tomate e torrada
arabaiana grelhada, farofa de brócolis, pimentões e tomates assados
arroz caldoso com peixe, lula e mexilhão
panqueca de farofa de castanha recheada com queijo e espinafre
feijão verde com queijo coalho e arroz vermelho
frango na cerveja e purê de grão de bico
grelhados (milho, vagem, abobrinha, cebola, tomate, pimentão, cenoura, brócolis, alho) e ovo mexido
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Uma grande alegria: acertar o ponto.
Da carne, do peixe, de inflexão.
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Não é esperar amanhãs, não é folhear o velho álbum de memórias editadas. É respirar profundo, espiar o céu escuro pelas persianas, flertar um pouquinho antes que a bateria do celular acabe de vez, tomar um banho tão longo que quase lhe crescem guelras. É rabiscar palavras bonitas no papel só porque o ato de fazer um escrito é transformação do mundo. E aceitar que não vai dormir mesmo e servir mais uma taça de vinho.