Newscoisa #86: Ainda sobre a escrita
Newscoisa #86: Ainda sobre a escrita
"Ela disse que o tipo de silêncio que se seguia à partida deles,
ela o guarda em sua memória.
Que entrar nesse silêncio era como entrar no mar.
Que era ao mesmo tempo uma felicidade
e um estado muito preciso de abandono a um pensamento em devir,
que era um modo de pensar ou de não pensar, talvez
— que um não é longe do outro, ela disse — e que já era então escrever"
(Marguerite Duras)
Ainda sobre a escrita: eu sou desorganizada. Começo textos em arquivos aleatórios do word que ficam salvos em qualquer lugar, com qualquer título, coisas que variam de “índice e mais coisinhas” a “sobre Lacan e bodejos” passando por um “lista de compras” que, obviamente, não tem itens de supermercado, suponho que devem ter sido devidamente apagados depois de adquiridos e hoje conta com esboços de contos do Éter. Nesses arquivos, eventualmente eu copio frases de outros autores, frases que me comovem, inspiram, mobilizam. Sempre entre aspas, às vezes marcadas de amarelo, com fonte diferente e tal. Mas raramente coloco o nome do autor porque, né, a louca acha que sabe, sempre, de quem é. Obviamente esse comportamento um dia ia me deixar em, senão maus, pelo menos complicados lençóis. Hoje, procurando um conto que comecei e não faço idéia de onde está (estou dolorida, acho que ele prometia), procurando arquivos com palavras como verde, calçadas, putrefação, envelopes, acabei caindo em um arquivo cheio de comecinhos de histórias. Tudo abandonado. Esquecido. Fui relendo e cheguei em um trecho, motivo desse texto. Parece meu. Está no meu arquivo. Não tem aspas. Mas também parece demais a escrita da Raquel – e eu lia muito a Raquel, quando ela mantinha seus blogs. Uma das frases, em especial, é muito típica dela. O jeito de pontuar, também. Mas o tema é meu e tem a referência ao Kundera que eu uso bastante. Mandei mensagem pra ela: amiga, esse texto é meu ou seu? E ela: sei lá, pode ser de qualquer uma de nó duas. Rimos muito. Bom, eu ri. De nervoso, talvez. Fiquei pensando se podia ser uma tentativa minha de imitá-laOPA uma experiência, um exercício de escrita. Não estou bem certa. Ela disse que, se o texto não era meu, ficava sendo. Acho que o departamento jurídico fica satisfeito. De qualquer forma, eu, ela, nós ou outra pessoa que pode nem estar na história, escrevemos assim:
Beijou uma boca qualquer, circulou nas ruas do centro da cidade procurando os olhos dele. Não encontrou nada. Ficou bêbada. Fez oito tentativas de acertar o número. (Não podia ter esquecido. Não devia ter deletado. Não podia nem devia estar ligando.) Dormiu no sofá, com o celular fazendo às vezes de meia como naquele livro de Milan Kundera.
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A coisa difícil com cartas extraviadas é que elas me imobilizam por um tempo significativo. Eu tenho claro que não é possível reescrever uma carta que foi e não chegou, sei que uma carta não pode ser a outra. Saber, entretanto, não basta e não faz desenrolar o processo da missiva seguinte. Fico presa em um movimento pendular. Por um lado, há a tentação de emulá-la, de recompô-la, de tentar até mesmo reinventá-la - sendo sempre frustrante essa empreitada: mal consigo pincelar a sombra do que foi. Mesmo que eu recorde e repita as palavras que usei, elas agora são apenas a reprodução esvaziada, o fantasma de um dito vivo. Por outro lado, é difícil encontrar novas palavras, o que foi escrito, não foi escrito à toa, foi dito para ser ouvido, para ser conhecido, um pensar ou sentir que deseja chegar ao interlocutor e que persiste espreitando por cima do meu ombro. Superá-lo não é tarefa de pouca monta, demanda um desprendimento que precisa ser gestado, amadurecido e para o qual nem sempre estou pronta. Aceitar que isso foi dito, perdido e permanecerá desconhecido, senão em existência, na forma que um dia tomou.
Mas tem as cartas que chegam. Quando já nem esperávamos, sorrimos.
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A casa nunca fica totalmente silenciosa, mesmo quando todos os outros dormem. Há o ruído manso da geladeira, algum tique-taque de relógio, pequenos zunidos de eletricidade e uma sensação de vida latente nos quartos ocupados. Ainda assim, ele se permite baixar a atenção. Um pouco. Já basta para a lembrança chegar e o corpo reagir, como um pequeno sobressalto. Foi a mordida no calcanhar. Apesar do tempo, matreiro, passando mais depressa do que ele gostaria e as lembranças se embaçando, se é nela que pensa, pensa assim: foi a mordida no calcanhar.
Antes, o desejo cultivado. Esbarravam-se nos corredores, como se os espaços se estreitassem repentinamente quando passavam um pelo outro; sussurravam importantes informações e piadas bobas nas reuniões de planejamento e avaliação na empresa, os lábios encostando na orelha do outro; inventavam motivos para tocar mão, braço, ombro, rosto, conversando amenidades perto da máquina de café; roçavam pernas ao sentar lado a lado nos bares de happy hour. Nesses dias, iam ficando e ficando enquanto todos se despediam lembrando das crianças em casa, do trabalho no dia seguinte, das leituras para especialização, do cansaço, da idade,do fígado ruim. Eles, esquecidos, ficavam. A saideira? A saideira. Os mesmos assuntos, as mesmas palavras, a mesma conversa que tinham na frente dos colegas, permanecia. Mas os olhos diziam anseios outros. Pediam mais uma saideira. E outra. A conta adiada até. E os abraços cada vez mais demorados antes de cada um finalmente entrar em seu uber. Por isso, no dia que ela disse: pegamos o mesmo táxi? ele estava pronto. Quando ela disse: vem aqui atrás comigo, ele estava pronto. Quando o motorista perguntou pra onde? e ela murmurou você quem sabe e colocou a mão na sua coxa, ele estava pronto e deu o endereço do motel próximo – que tinha pesquisado no google, já há uns três ou quatro happy hours.
Beijos no centro do banco de táxi e mãos curiosas no curto trajeto. Chegaram ao motel rindo muito, a cerveja suficiente para amolecer os corpos e censuras, mas não tanta que drenasse energia. Entre receber a chave, usarem o banheiro e o primeiro beijo em pé, tudo encostado, encaixando, sem olhos alheios, sem dúvida do que é oferecido e pretendido, o constrangimento veio participar. Uma certa reserva. Um não saber do corpo do outro, Não que não fosse bom como os seios pesados lhe enchiam a mão. Ou como sua coxa se esfregava entre coxas dela, entreabertas. Não que não houvesse gosto na pele do pescoço que se ampliava porque ela inclinava a cabeça pra trás e no lóbulo da orelha que ele lambia e mordia e puxava com dentes e lábios e não que não houvesse sabor na língua inquieta que ela metia na sua boca em um ritmo próprio e imprevisível. Não que ele não estremecesse com o jeito que ela gemia fechando os olhos e expirando quente. Não que não tivessem tirado as roupas. Não que ele não tivesse percorrido as curvas e reentrâncias e deixado o dedo deslizar no molhado da vontade dela. Não que não tivessem se enroscado na cama. Mas. Ele sentia o mas atrasando o jeito morno do desejo conduzir sua mão, boca, pau. Ia ser bom. Estava bom. Mas era um bom assim, assim. Bom o bastante pra valer a preocupação de chegar tarde em casa e pensar em como agir com ela na segunda. Mas não pra esquecer dessas coisas. Bom. Apenas bom. Até que. Pois é, a mordida.
Enquanto arfavam e beijavam e lambiam e tocavam e exploravam e descobriam, em um movimento que ele não esperava, ela o colocou de bruços e, ao mesmo tempo que ele sentiu os mamilos duros roçarem o verso das coxas, ela lhe mordeu firme o calcanhar. Foi como se ele explodisse pra dentro. Como se o gozo viesse do seu pau para a barriga e deslizasse pras pernas e batesse no peito e chegasse nas pontas todas, dedos, nariz, orelha. Sua pele sensível arrepiou-se em pequenos choques. Os dentes firmes, brancos, os dentes de sorrisos imensos, cravados no seu calcanhar. Ele estremeceu e tentou mudar de posição, tocá-la, fazer qualquer coisa que diminuísse o impacto do que sentiu, mas ela pesava em suas costas, prendendo o corpo dele contra o colchão com o seu próprio e, depois de morder o outro calcanhar com a mesma presteza, roçou os dentes por toda a palma dos pés. Ele corcoveou, agarrou os travesseiros com as mãos em garra, a respiração presa. O tesão. O tesão. O tesão.
Ela, enfim, diminuiu a pressão e lhe permitiu ficar de bruços, mas antes que ele pudesse reagir, ela enfiou o dedão do pé direito dele na boca. Sem aviso, sem preparo, o molhado se estreitando ao redor da pele. E ela sugou. Sugou. Sugou. E mais. Seguiu de dedo em dedo, lambendo as brechas entre um e outro, mordiscando as extremidades e chupando cada um como se fosse a única coisa que pretendesse fazer por muito tempo na vida.
Na sala de casa, ele sente o coração acelerando com a lembrança. Repara nos dedos dos pés, contraídos. Os pelinhos do braço ouriçados. O vento que entra pela janela lhe beija os mamilos. O calor, que o fez tirar a blusa para aguentar mais umas horas trabalhando, não esperou a madrugada. Pensa, se divertindo um pouco, que é bom ter escolhido uma calça larga de moletom.