Newscoisa #87: eu não estou chorando, você é quem tá*
Newscoisa #87: eu não estou chorando, você é quem tá*
"Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo".
(Álvaro de Campos)

Meia idade. Não sei bem como fazem as contas, essa certeza que me espanta de se supor saber quando a vida acaba, ou mesmo, começa. Especialmente para quem já mudou tanto de cidade, emprego, amigos. De qualquer forma, meia idade – e não me cai tão mal, se eu confiar no rosto que o espelho aprisiona enquanto a água escorre junto com os últimos resquícios do creme de barbear. Algum grisalho que se insurge contra a cor que me acompanhou na juventude, umas tantas rugas, duas ou três manchas de sol. A pele não conta as partes mais importantes da história. O copo de uísque no lavatório é um guia melhor.
Passei a fazer a barba à noite quando percebi que era isso ou um cigarro a acompanhar a bebida – e ela tem aversão ao ocre da nicotina. Ela e seu hálito de chiclete de menta, ela e seu pescoço adocicado do perfume floral, ela e seus sabonetes de fruta. Respirá-la é ter assomos de enjôo. E é nesse odor que eu me apego toda noite como a um amuleto que me proteja dos caminhos vazios. Eu me apaixonei uma vez. Não foi por ela.
Esse uísque no banheiro, o rumor da água batendo na louça branca e escorrendo em rodopios, é para isso que servem, para as recordações inconvenientes. Apaixonei-me por uma mulher em um táxi. Ela o dirigia. Era noite, a motorista não se se virou para ouvir o endereço, acenou com a cabeça e manteve teso o pescoço, como se olhar o futuro fosse a obrigação que a movia. Não foi sua voz, seu corpo ou seu rosto, que vi apenas de perfil, a velocidade das luzes pelas quais passávamos destacando formatos de queixo e mandíbula e nariz que nunca cheguei a montar totalmente como quebra-cabeça. Eu encontrei seus olhos no retrovisor, eles eram escuros e vazavam. Soube que choravam de amor, há algo de específico nesse tipo de lágrima que sempre se dá a revelar. Senti agonia de antever que ninguém me amaria com uma dor assim. Que a mulher do táxi não me amaria com aquela dor. Eu falaria mal sua língua e, mesmo que a dominasse, não havia palavra para explicar que eu amava o seu amor mal sucedido. Concentrei-me em respirar o ar que a mulher do táxi expirava e era como se cada inalação me preenchesse de uma ausência feminina que negaria espaço para qualquer outra impressão significativa. É tudo que trago dessa paixão, os olhos doloridos, um encontro impreciso de mãos na hora de pagar a viagem, a certeza da minha insuficiência.
Como se algum deus desocupado tivesse um laivo de generosidade diante da minha perturbada angústia, a mulher do táxi me deixou na festa em conheci ela, a que me espera na cama entre lençóis mélicos que me tornam o sono sempre próximo de uma tontura de embriaguez. Ou é do uísque.
Naquela noite não havia ainda a necessidade do copo baixo e largo, nem das pedras tilintantes no líquido amarelado, peguei uma taça de tinto qualquer e me meti na primeira roda de amenidades que pude. Nem lhe havia percebido a presença nem trocado olhares, mas lá estava ela que me perguntou, com alguma malícia, de onde eu era. Uma pergunta que me acostumei a responder, entendendo que nada havia de ofensa, era geralmente um caminho fácil quando não se pensa em mais nada para dizer. Mas eu vinha do assombro, perdi a familiaridade com o raso, a resposta me escapou – me senti vagando, sem raiz ou âncora, silenciei por um momento maior do que aceitável nas convenções sociais. Ela, então, pegou-me pela mão e entre palavras que não cheguei a entender totalmente – barulhento, ventilado, aqui, melhor – conduziu-me para a varanda do apartamento e me abraçou.
Eu poderia ter chorado. Feito confidências. Ou piadas. Mas tudo isso demandaria que eu a olhasse me olhando. Eu senti o chamado dos seus olhos. Então eu a beijei porque me pareceu menos comprometedor. Ela era compacta. Ela é compacta. Sólida, maciça, encorpada, os adjetivos se enfileiram como os elos da corrente que amarrei ao redor da cintura dela para me ancorar. Todas as noites eu a abraço forte demais, correntes, braços, quem está reparando? E ela nunca reclama, apenas suspira, dolorida.
Você vai acabar a água da cidade. A voz dela também é espessa e eu a distinguiria em qualquer língua entre todas as outras. Reconheço tudo nela: voz, corpo, perfil, risada. Seu riso é marcante, familiar a todos porque traz algo como um choro escondido. Ela me é tão íntima quanto o rosto de meia idade no espelho. Talvez mais, porque o rosto meu, eu o conheci de diversas formas, transformadas em muitos e diversos tempos. Ela, eu a sei de um único jeito: esteio. Ela é o que é, pra mim: riso, rosto, corpo, voz. Menos os olhos. Que eu nunca encarei, a não ser indiretamente, em fotos ou vídeos. Já ouvi falar por amigos da história que ela conta do nosso amor à primeira vista. Nunca na minha frente. Só uma vez ela testou a palavra amor comigo. Eu a estapeei com tanta força que me dói anos depois. Bebi uma garrafa inteira de uísque para amenizar o latejar no rosto dela. Estou bebendo até hoje.
Desligo a torneira, levo o copo vazio para a mesa de cabeceira, mergulho no dulçor nauseante e me seguro, firme, em seus seios.
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*(leia Nadal, onde está escrito você)
(e leia "O Tênis", onde se leu Nadal)
Eu não sei se vocês amam esporte. Eu não sei como vocês amam esporte. Eu amo, amando as incríveis pessoas que os praticam e forma tão variada. Amo, especial, grata e devotadamente, os que fazem, do movimento dos seus corpos, uma forma admirável de arte. Quando Federer se mexe, o outro nome da beleza é movimento. Sua excelência é de esteta. Não lhe falta força, mas não é isso que o descreve ou ao seu jogo. Elegância. Delicadeza. Plasticidade. Talento. Palavras que vão além de o caracterizar elogiosamente, elementos que ele irradiava. Irradia.
Jogar tênis é complicado. Mas ver Federer nos faz acreditar que todos aqueles golpes complexos e decisões intrincadas são simples. Às vezes eu tinha a impressão de que ele sequer suava. Mágico, Federer. Mágico, seu tênis.
Não é o maior vencedor, mas sua carreira fez os números irem perdendo a importância. Seu estilo, é disso que nos lembraremos. Porque não se trata apenas de jogar e vencer, é fazer o que fez de uma forma tão precisa, tão fácil, tão apolínea - seja no movimento, seja nas relações, seja na entrega e dedicação, seja no afeto que dedica ao ato - que a gente mal consegue respirar. Um tênis bailarino, é o que ele joga. Jogava.
E o fazia de um jeito particular. Muitas vezes comparado com os grandes de outrora, é certo que o tênis de Federer é de outro tempo, mas não de um tempo passado, não do tempo que se vive, nem mesmo, suspeito, de um tempo que será. O tênis de Federer é do tempo que ele fazia acontecer. Fora do tempo. Tempo próprio. Escolha o termo que considera melhor, nenhum é certo, nada é equívoco.
Federer levava para quadra uma graça que parece natural – embora o estado do seu joelho conteste – ao fazer jogadas de extrema dificuldade e a capacidade de ocupar inesperados espaços, deslocando-se com uma velocidade incompreensivelmente suave. Suas habilidades abrigavam-se em um moço de inesperado sorriso, pranto farto e fácil trato.
Minha admiração não é solitária, seu tênis fez surgir textos como “Federer: o Homem que Mudou o Esporte” e “Roger Federer como experiência religiosa”. No texto de Foster Wallace, o tênis praticado por Federer tem algo de inexplicável e misterioso – talvez por isso, apesar de tantos parágrafos, esse meu texto pareça pouco avançar: o que se pode fazer ante o mistério senão contemplá-lo?
E não somos apenas espectadores ou jornalistas, os conquistados. Uma das pessoas mais emocionadas na despedida de Federer foi seu maior rival em quadra, Rafael Nadal. Suas trajetórias se enlinham, como se tivessem participado da feitura um do outro. Nadal chorava como quem perde parte de si. E perdia. Perdeu. Achei tão oportuna que a última partida de Federer fosse ao lado desse para quem com quem disputou jogos históricos. Seu mais próximo que gêmeo.
Ver Federer parar de jogar hoje, antecipar a despedida de Nadal, já próxima, mexe muito comigo. Ainda verei tênis, mas o tênis que verei – embora com outras alegrias surpresas e admirações – tem deixado de ser o tênis que eu via e de quem Federer era mais que um expoente. Feder, símbolo da arte que amo. Acabou. Não digo isso com pessimismo, mas certamente com nostalgia.
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Eu vou votar no Lula. Não para tirar o Bolsonaro - votaria pra isso e por isso, com certeza. Mas, para minha alegria, voto no PT porque realmente acredito (não como fé, por reflexão, vivência e identificação) que é o partido que governa melhor nossos municípios, estados e país, com ideias e ações próximas do que anseio. Meu voto tem sido de legenda, em todos os cargos, desde os meus 16 anos, em praticamente todas as eleições. O candidato do PT, este ano, é o Lula (que sorte!), e por isso votarei nele. Eu sei, ele é lindo, inteligente, fofo, sabido, desenrolado, generoso, sensível, articulado e articulador - isso tudo é um bônus. Muita gente falando que estará pronta pra criticar desde o dia 01 do mandato. Eu estarei pronta para ter paciência, apoiar, trincar os dentes e lutar junto, porque não vai ser fácil. O buraco que o Lula e se governo vão pegar, eu nem chego a ter dimensão - e olha que eu tenho estado atenta.
Serão, ainda, dias difíceis, mas dias com esperança. E mais bonitos, deste tipo de beleza que tantos admiramos em Federer, a beleza de fazer o melhor gesto, da melhor maneira, com corpo e sonhos em harmonia.