Newscoisa #88: Três histórias de quase amor
Newscoisa #88: Quatro + uma histórias de quase amor
“E o seu amor que agora era impossível —
que era seco como a febre de quem não transpira
era amor sem ópio nem morfina.
E “eu te amo” era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça”
(Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livros dos prazeres)
Nunca consegui fazer a memória voltar o suficiente no tempo para identificar o tal primeiro amor. Sei que amava, já, quando me aconteceu Melina. Até hoje escrevo o seu nome com um certo constrangimento pelo entusiasmo que preenche a ação. No tempo que foi, vivia eu de orelhas rosadas. É a lembrança mais antiga que tenho dos embaraços da paixão. Éramos crianças de escola, mochila, lancheira, recreio e tarefas tolas em sala. Desenhem suas férias. Eu não queria desenhar os dias no apartamento desconhecido e embolorado, vez ou outra apinhado de gente recém-apresentada, as mãos nervosas da minha mãe, os sumiços do meu pai, o rádio escutado sempre muito baixo, os amigos antigos da família desaparecendo, os soluços na madrugada que eu nunca sabia de onde vinham. Não queria colocar em imagens as conversas que ouvia por portas entreabertas, palavras que nem chegava a entender, subversão, coturnos, aparelhos, delação. Não sabia desenhar o medo, as mudanças abruptas, as séries incompletas nos colégios abandonados a meio do ano, a educação em casa, a supressão de um sobrenome. Nas férias que desenhei, então, rabisquei, para pintar a seguir, praia, guarda-sóis, pipas esvoaçando, bolas, balões, araras e pavões no zoológico, crianças brincando de roda e a chegada a uma nova escola, com uma menina desenhada com mais capricho e seu vestido com pequenas flores e laços. Desde o primeiro dia, procurei estar perto. Apenas isso, a vizinhança do encanto. Sentava sempre na carteira atrás da dela, sentaria ao pé dela, se já soubesse de toadas e trovadores, àquela época. Antecipava e temia que ela se virasse e me falasse. O azul? Pisquei, o que ela dissera? Tinha ficado preso no movimento da trança quando ela se virou, o pescoço tão fino, a penugem escura, um cheiro de lavanda, tudo isso virando olhos imensos e uma boca rosada repetindo alguma coisa: você pode me emprestar o azul? Do meu precioso estojo de 36 cores, pesquei todos os azuis, o bebê e o petróleo. Pintei de amarelo, verde, vermelho, negro, todo o meu mundo. Com vergonha de pedir os azuis. Com medo do movimento da cabeça espalhando lavanda em meus sentidos. A professora riu, chamou-me de criativo, mostrou o desenho bem alto, para a turma toda. Que também riu, alguns em deboche. A maioria, talvez. Melina não riu. Quando soou a campainha, tocou meu ombro, desenrodilhando-me da tarefa de entulhar cadernos canetas na mochila. Senti um leve choque no ombro, orelhas em combustão. Devolveu-me os lápis demorando o contato da sua mão na minha. Deve ter agradecido, não consegui ouvir, as orelhas desmanchavam-se, não consegui responder, balbuciei alguma obviedade incompreensível, antecipei alegrias futuras nos passos que me levaram da escola à casa recém-pintada, só nossa, mãe de mãos tranquilamente empenhadas em cozidos e costuras, pai que nos colocava para dormir e nos acompanhava para a escola antes do trabalho, irmã menor e seu choro reconhecível, a FM e seus boleros espalhando-se além da janela. Foi um dia inesquecível, pelo toque dos dedos de Melina e porque, já ao fim da tarde, consegui, em um tombo de bicicleta, quebrar dente, cotovelo, arranhar-me por inteiro perder meu futuro. Uns dias de cama enquanto meu pai se demorava cada vez mais ausente, os sussurros emboloravam os corredores, as mãos da minha mãe voltavam a se retorcer enquanto lhe crescia o tique de olhar, uma vez e mais outra, por cima do ombro, ao praticar a mais banal atividade. Minha irmã chorava cada vez mais alto e o rádio tocava cada vez mais baixo. Nem tinha tirado o gesso, malas à porta. Em uma delas, meu estojo completo de lápis de cor. Nenhum deles capaz de pintar o irrealizado.
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O café mudou de sabor quando passei a bebê-lo em caneca. Tirei-lhe o açúcar, também, mais ou menos à mesma época, mas não nos desviemos do assunto. Então, café, caneca e a quentura nas mãos, uma sensação que não se explica. Talvez por isso aprecie os lugares frios. Abraçar a caneca, sentir o calor que se espalha da cerâmica para as palmas da mão, inclinar o rosto em direção ao morno vapor, experiência possível até nos cafés em viagem, beira de estrada, postos de gasolina, o aroma moído, prensado, coado, misturado a benzeno, diesel queimado, inquietudes, insônia, desenraizados. O café: deixar que o cheiro ocre me aqueça, um ritual que repito várias vezes ao dia sem exaurir sua potência. Uma cadeirinha na varanda e o cigarro ardendo no cinzeiro. A janela da cozinha e os olhos perdidos na pequena horta do quintal. A escrivaninha entulhada de cadernos, bloquinhos e caixas de remédio. A poltrona, o livro, o portal. O disco na vitrola. A pilha de notas ficais, boletos e a planilha no notebook. E, entre cada letra maiúscula e ponto final, uma caneca de café. Dou o primeiro gole e mantenho as mãos ao redor da caneca. Evito a asa porque ela me priva do calor. É a mesma sequência de vasos na entrada da casa. As mesmas plantas. A mesma incipiente tentativa de jardim. Está tudo igual, argumento comigo mesma. O líquido quase queima o interno dos lábios, o céu da boca, a curvinha final da língua. Quase. Não está. A rosa do deserto já esteve plena de verde, despiu-se e agora aponta em promessas vermelhas de desabrochar. Pensei que morria. Apresso os goles. Há um talento para se apreciar o tempo. Fecho os olhos para manter tudo ali, o sabor amargo, a temperatura confortadora, a abscisão foliar e a esperança de renascer em flor. O que não é possível se impõe, chega a vida, chegam as tarefas, as preocupações, as distrações, as lembranças. A saudade. Termino o café, antes que esfrie, em um gole mais longo. As minhas mãos permanecem quente, indiretamente conservando o prazer do café. Talvez por isso aprecie os lugares frios. Como o seu coração.
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Era verão, começam assim os contos de amor. Pois era verão, escorria um suor morno da base do pescoço em direção ao cóccix, manchando-me as costas da blusa clara, mas nem chegava a incomodar. Andávamos de braços enroscados, pois eu sabia que, em uma grande paixão, agiam assim os braços. Esforçava-me para seguir o script a contento. Aí, choveu. O vento aligeirou. A água batia, firme, na lente dos meus óculos. Ela deslaçou-me o braço e correu em direção a um toldo vermelho. Sem um olhar de convite. Sem uma palavra de convocação. Vi sua saia fina agitar-se como um aceno. Deixou-me. Era verão, mas não seria, essa a minha história de amor.
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Às vezes trocamos mensagens, ele e eu. Escrupulosamente conto tudo que acontece comigo e ele narra tudo que lhe acontece. É assim, suponho, quando duas pessoas tentam manter aberto o caminho para uma grande paixão que tinha tudo para ser, parecia tanto que, e nada. Revelamos inteiramente o que somos, pensamos, sentimos, insistimos e, ainda assim, entregamos bonecos ocos. Não nos amamos, que desperdício. Se nos amássemos, que bom parece que seria. Nova mensagem. Respondo conscienciosamente. Esmiúço atos, intenções, sensações. Recebo pormenores. E cada palavra é retroescavadeira. Há um abrupto na minha voz. Uma impaciência, com ele, com a vida, com a impossibilidade de dirigir os afetos. Fico sempre triste, depois dessas conversas, renovadamente consciente do que parece perdido. Arrasto pés, curvo ombros, meus cabelos ficam opacos, a pele manchada, a respiração curta. Meu pai colecionava relógios, deixou-me a tarefa de sustentar o avançar da vida no ritmo correto, percorro corredores dando corda, adiantando minutos, adiando instantes, regulando – aqui dessa velha e entulhada casa – o decurso de alegrias, saudades, chateações, cansaços e abraços alheios. Nos dias que trocamos mensagens, roubo um pouquinho, empurro o ponteiro dos minutos para um além, para que já seja hora de esquecer que não nos amamos. Embora devêssemos. As vezes penso em bloquear seu contato. Apagar eu número. Desfazer os vínculos nas diversas redes. Desconhecê-lo. Embaciar nossa incompetência. Tenho tanta pena do que não é. Fico por ali, puxo o véu sobre o rosto, escondo as lágrimas que não correm, espero – resignada - as setinhas azuis.

Ela era certa pra ele, altura, peso, cabelos, ideias, sonhos, passado, gostos e o jeito de mordiscar a cutícula do dedo médio quando está preocupada. Ele é o certo pra ela, sabonete phebo, mão grande e seca, olheiras, hobbys, ofício, letramento, família e o jeito meticuloso com que separa a faca da manteiga e a faca da geleia. Conheceram-se na reunião do partido. Ou no samba. Às vezes discutem. Amigos e planos em comum. O que não era, arrumaram o caminho para encostar, que já ouviam o Chico. Abraçaram-se, beijaram-se, treparam, trocaram fluidos e números. Encontraram-se no cinema, no bar, no comício, no museu, na praça, na casa de um e outro, no jantar da família dela, na viagem com a irmã dela. Consolavam-se melhor do que se magoavam. Permaneceram. Um apartamento, um plano de saúde, uma briga maior, algumas mortes para se confortarem, algumas festas para se distraírem, o espirro alto dele, alguns porres para se revelarem, o bafo matinal dela, eleições para panfletarem, a unha cortada na cama, a estante montada, o hábito de guardar revistas velhas, um amante, uma demissão, um gato, uma criança, as bicicletas lado a lado, cactos na janela, outra criança, um seguro de vida, as carnes caindo, a memória se ausentando, a irritação, a resignação, a decepção, a rima ruim. Dormiram juntos até não mais acordarem. Na lápide um bem intencionado descendente gravou: felizes para sempre.
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No Cais de Saudades:
Cavalos selados: um quase casamento, Audrey, aquele calçadão, uma fotografia, um voto.
Aceitar, entender e outros impossíveis: Eu já aceitei que nunca mais serei feliz. Eu não entendi ainda.
Nora, Léo, Machado e a gente: aquele documentário, as coisas de que vou sentir falta, um livro tão tão tão bom.
Homens fumando, homens gentis e um coração de cristal: Mark Ruffalo fumando, um cnselho para novas gerações e uma correspondência perfeita.