Newscoisa #92: Ficou o pigarro e a sensação de não saber para onde ir
Newscoisa #92: Ficou o pigarro e a sensação de não saber para onde ir
round up the usual suspects
Cueca, meias, chinela e uma t-shirt. Não fazia boa figura na própria cozinha, mas não havia outrem que lhe julgasse àquela hora. Até seu exigente senso de correção, já dominado pela segunda dose de uísque, se recolhera. Depois do picar, e cortar e temperar e mexer, o que fazer enquanto os sabores apuram além de servir mais uma dose, caprichar no gelo e observar a vida desmoronar por causa de um desamor?
Foi mesmo ali, do outro lado do balcão, a mala grande, a menor, uma sacola de mão, a bolsa, a mochila do notebook, ela, tudo empilhado, e tantas frases para dizer um “já não te amo”. Ela falava, falava e falava e ele pensando nas torcidas no estádio: acabou o amor, isso aqui vai virar um inferno. Cantarolou. Ela endureceu a voz: não faz sentido essa conversa, você nunca me escuta. Era uma espécie de verdade. Ela falava, o pensamento dele viajava nas ondas da voz dela. O que ela não entendia é que era desnecessário ouvir palavra a palavra, ele a decodificava com todos os poros. Eu vou embora. Ele chamou o elevador, desceu a mala maior, a sacola de mão e a mochila do notebook, esperou o uber, arrumou tudo no porta-malas, abriu a porta pra ela entrar, lembrou a importância de colocar o cinto e permaneceu acenando enquanto o carro se afastava.
Por um longo tempo ficou na calçada, ensimesmado com a indiferença do mundo à dor. Os ônibus circulando, faróis alternando em vermelho amarelo e verde, motoboys e entregas nos portões dos prédios, ao longe uma buzina, dois adolescentes conversando alto, rindo e se empurrando, um moço na bicicleta assoviando para a mulher na parada do ônibus, o palavrão que ela usou pra responder, o giro do planeta. Rotação e translação, ele ainda lembra. Ele mesmo se sente tentado a seguir. Respirar. Andar. Subir a escada. Abrir a porta. Desabotoar os primeiros botões da camisa. Tirar os sapatos. Desatarraxar a garrafa de uísque. Abrir a geladeira buscando alguma coisa para comer. Tudo lhe parece repulsivo. Vomita o desalento e chora a raiva. Despe-se e faz polichinelos. Toma um banho e bate punheta pensando na foto de capa de uma playboy antiga. É preciso que aquele sofrimento lhe saia do corpo em algum fluido.
Os dias passando e ele, neles, operacional, roupa engomada, horário de trabalho à risca, batata doce e frango grelhado no almoço, streaming antes de dormir e aquela sensação constante de não perceber nada de nada do que aconteceu, sentindo arder olhos e garganta quase o tempo todo. Foi o que lhe deixou um relacionamento de 28 meses: aquele pigarro rouco e uma sede que as garrafas de uísque esvaziadas nos fins de semana não pareciam aliviar.
Era um desses sábados de névoa, zanga, álcool e lembranças a mais, roupa de menos, molho apurando, Fleetwood Mac na caixinha de som. Um desses sábados que já traziam acoplado o domingo de sono até o começo da tarde, preparar as marmitas da semana, futebol na televisão, pizza, seriado da HBO e, novamente, os dias de granola e iogurte, metrô lotado, petições e audiências, esquentar o almoço no microondas da firma, empurrar o dia na base de pequenas xícaras de café, sentir vontade de chorar no meio do expediente da tarde, andar pelas ruas vendo baixarem as portas dos comércios esperando passar o horário de pico do metrô, arrastar os pés na escada, enfiar, no pão ovo, queijo, alface, presunto, tomate, colocar tênis e moletom, sair pra correr, correr, correr, correr. E quase dormir.
Se lhe perguntassem, diria que estava bem, sem mentir. Mas engasgaria a seguir. O que mais lhe faltava do relacionamento era a sensação de estar confortavelmente sentado, com os pés estendidos, cochilando. Amar para ele é sentir-se em casa. Confortável. À vontade. Poder esticar as pernas e cochilar um bocadinho. Não era isso, claro, que diziam as matérias e frases profundas. É preciso lutar pelo outro. Batalhar pelo relacionamento. Fazer um esforço. Estafar-se para ser feliz.
Já não te amo. E ele tivera que se levantar. Não havia mais aconchego, repouso, pernas bem estendidas e cochilo. Era pôr-se a termo e reconhecer-se um sem teto.
Faz o que pode e aos sábados, põe-se de cueca, meias, chinela e uma t-shirt, simulacro do estar à vontade. Era um desses sábados, mas tocou a campainha. Estava tão desacostumado de gente nessa parte da semana que estremeceu em susto. Fingir que não está, apesar da luz acesa e o barulhinho da caixa de som? Gritar um já vou qualquer e correr para colocar um calção antes de abrir a porta? Tacar o foda-se e atender como estava?
(parei aqui, não sei o que fazer com o moço. Mantenho a campainha ou é melhor um telefonema? Quem chama? Um novo vizinho, senhorzinho ou senhorinha aposentados, precisando de uma mãozinha? Um amigo ressurgido da adolescência? O porteiro? Esqueço a campainha ou o telefone, volto um parágrafo e faço ele queimar a língua provando o molho? Era um desses sábados mas ele lembra do andar de uma mulher, à sua frente, pra pegar o metrô e entende que a dor tá passando?)
(a sensação de que não sei mais o que fazer nem da minha vida, quanto mais da vida dos outros. Coitado do moço com dor de cotovelo que não tem uma pessoa melhor para enfileirar letrinhas até desenlaçá-lo desse impasse na cozinha)
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A gente vai aprendendo a morrer. A gente, tal como você, sou eu, sempre. Onde diz sempre, quero dizer, quando for aqui. Confuso, não é? Ando me sentindo assim. Você também? (neste caso, excepcionalmente, você não sou eu, como explicaria o Nerso da Capitinga, você é você, o senhor é o senhor). Mas, dizia eu, aprendendo a morrer que é uma outra forma de dizer seguir em frente. Ou apenas seguir, sem muito senso de direção, mas com uma certeza: o mar é o mais belo cemitério.
Pessoal tem sonhos interessantes, enigmáticos, lembram de tudo e tal. Eu quase nunca lembro de um sonho e quando lembro é assim: Comprei um bandeja de ovos, os ovos viraram sapoti. The end.
PS. Gosto de ovos e de sapoti.
Subo escadas com a perna direita e desço com a esquerda (obviamente as duas estão presentes nos dois processos, estou falando da perna que vai na frente, que apoia, que sustenta). É gostoso saber essas coisas miudinhas sobre o corpo da gente.
Quando lembro daquele amor, nem sinto saudades. Eu sinto ternuras. E vontade de comer panquecas.
Hoje recebi uma carta e sorri.
Desde a última Garrafinha, o Cais recebeu alguma coisa. Mais recentemente: A Teresa do Kundera, o imperador e um ás de espadas e Loja de penhor, cuscuz de peitinho e a ilha da proteção de tela