Newscoisa #94: Vem correr perigo
Newscoisa #94: Vem correr perigo
"Meu bem, vem viver comigo,
vem correr perigo,
vem morrer comigo"
Revejo Hiroshima, mon amour e lembro da pandemia de covid-19. As memórias documentadas no filme são obstinadas, apesar do avanço do silêncio e da insistência no retorno à vida normal. O que Resnais nos conta é que a destruição permanece mesmo depois da passagem do tempo, das reconstruções, da energia colocada no esquecimento. É assim que a pandemia persiste em mim. A memória tem seu ritmo e caprichos, além do que o acordar, seguir e dormir sugere de linear. Há o horror, os impactos, as muitas versões e vivências. Hiroshima, mon amour sustenta que o impensável pode acontecer em um já já. E aconteceu, nesta pandemia. Não pelo horror belicista, mas pela indiferença e desumanização dos marginalizáveis. Descartáveis, os corpos de Hiroshima e Nagasaki, descartáveis os corpos idosos, adoecidos, infantis, pobres, tantos. Os personagens dialogam: “- você não viu nada” X “- eu vi tudo”. Estão certos. Estão errados. Por mais que eu tenha visto ou sentido, me falta. O trauma é coletivo, evidenciam Resnais e Duras, mas o reinventamos em nós ao lembrá-lo, mais ainda, o dimensionamos no como o lembramos e no como esquecemos. O que reiteradamente volta para ser destruído e reconstruído. Cidades. Nós mesmos. Enlutemo-nos. A ausência, a dor, a perda, o exigem. Enlutemo-nos, enquanto procuramos uma forma coletiva de organizar a devastação. A vida reclama o luto enquanto reinventa-se na possibilidade e impermanência do desejo. Ela, a francesa, é capaz de dizer o amor apenas quando o vincula em resgate ao amor que já não há. A Câmara dos Deputados aprovou a data de 12 de março como o Dia em Memória das Vítimas da COVID-19. É o dia do meu aniversário. Achei pertinente. Mesmo quando não lembro, não esqueço.
“Ele virá até mim, me pegará pelos ombros e me beijará. Ele me beijará e eu estarei perdida (se a gente sou sempre eu, este ele ou você, todos sabemos quem é). Eu encontro você. Lembro-me de você. Esta cidade foi feita para o amor. Você foi feito na medida do meu corpo (antecipo o encaixe, seu queixo em meu cabelo, sua mão me cabendo toda, escuto a batida descompassada do coração – meu ou seu? – e deixo que minha mão mapeie todos os atalhos, esquinas, curvas, acidentes geográficos neste teu corpo-território). Quem é você? Você está me matando. Eu tinha fome. (...) Desde sempre. Eu sabia que um dia você cairia sobre mim (…). Devore-me. Deforme-me à sua imagem para que ninguém, depois, possa entender o porquê de tamanho desejo (para que eu mesma não consiga encontrar o marco temporal, nem antes nem depois, um sempre esse bem querer. Reescrevo nossa história, reinvento momentos, escrevo cartas, sonho lembranças). Nós ficaremos sozinhos, meu amor. A noite não acabará (isso que quero: uma noite, um momento, um encontro e o desnecessário depois, dias e dias em que eu saberei que estive com você e você esteve em mim). O dia não nascerá mais para ninguém. Nunca. Nunca mais. Enfim. Você ainda está me matando. Você me faz bem (todos, todos os dias, eu sinto a angústia e aí você... e todos os passarinhos cantam e todos os arco-íris colorem céus e todo o riso e bom e certo se apresentam. Ou eu acho que sim). Prantearemos o dia morto com consciência e boa vontade. Não teremos mais nada a fazer senão prantear o dia morto (porque teremos sido felizes, tudo se acolhe e se enfrenta). O tempo passará. O tempo, somente (não passará meu bem querer). E virá o tempo em que não saberemos dar nome ao que nos uniu. O nome se apagará aos poucos de nossa memória, depois desaparecerá por completo (a felicidade, como a beleza, é mesmo tão fugaz).”

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Meus pais tinham uma caixa com LPs e libretos de ópera. Os discos eram guardados ao alcance das minhas miúdas e infantis mãos, vez em quando eu estava agarrada com uma daquelas histórias. Cedo eu conheci Carmem e tão cedo quanto, me convenci que ia morrer jovem*. Não morri. Mas ficou, desta sensação, o desespanto com a minha morte. Na época, fiz um testamento e venho renovando-o de vez em quando, mesmo com o fim da ingenuidade e o advento da idade adulta, com suas contas, salários e os inevitáveis seguros de vida acoplados. Alguns, quase todos, perdi ao longo das mudanças: de casa, de notebook, de juízo, de afetos. Sempre que reescrevia o documento; o anterior, como é de praxe, perdia o valor. Não só o real, jurídico sei lá eu, mas o simbólico, também. Ou principalmente. Rompi com o mundo, queimei meus navios: pratico. Apesar de não os ter em mão, pra comprovar esta nova tese, fico com a sensação de que meus testamentos sofreram uma espécie de efeito “curva normal”. Os primeiros, eu mal sabia o que escrever e havia pouco que eu considerasse “meu” para deixar para alguém. Ao longo do tempo, fui tendo coisas, um violão aqui, um carrinho ali, uma penca de livros. Uma panela de ferro, grande prêmio. O pé de rosa do deserto. Cresceram os testamentos, aumentaram os beneficiários. E eu continuei não morrendo. Ou ainda, morrendo apenas um dia de cada vez. Ontem pensei que era hora de atualizar meus últimos desejos. Matutei daqui, ponderei dali, tateei em caminhos escuros, escrevi. Escrever um testamento é um processo dolorido de reconhecer a solidão. Fui e vim e fiquei e voltei e rasguei e apaguei, mas saiu. Ficou um documento curtinho, curtinho. Ter mais anos pra trás do que pra frente acabou me dando mais perspectiva sobre o que vale e é possível legar.

Um dos segredos da felicidade, ouvi dizer, é compreender a nossa relevância no mundo. Acrescentei por minha conta: e rir disso.

* Tempos depois descobri que o Belchior musicou o meu sentir.