Newscoisa #96: Saudade, palavra proibida
Newscoisa #96: Saudade, palavra proibida
Por um tempo, uma semana?, servir sua comida quente, à noite. Vez ou outra massagear sua têmpora, espantar os fantasmas, aquecer seus pés em grossas meias, cortar suas unhas, revisar seus textos, organizar sua agenda, pagar a conta da bodega, encher a geladeira de queijo e verdes, esfregar suas costas, ser cafuné, chamego, conforto, colo, abraço, apoio, empurrão. Por um tempo, um dia? Um ano?, não sentir essa impotência, o amargo na boca, as palavras engasgadas, os gestos contidos, as ofertas silenciadas. Não precisar preencher a conversa com bom dia, boa noite, beijo, viu o programa de culinária?, tendo tanto mais pra dizer. Fazer o bem que você me faz.
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A cadeirinha na varada, o cheiro de flor, um café coado no pano, um cigarro, umas páginas de um artefato antigo – livro de papel, um suspiro, outro café, as notícias no twitter, um sorriso ou dois, água nas plantas e, só então, sentir esta saudade fodida e acolher a vontade de acordar no seu abraço, no seu peito, no seu olho, na sua boca.
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Afiei adagas, muito antes dos roteiristas de Loki anunciarem o perigo. Em minha defesa, estava acostumada ao movimento: entra, desarma, sai. Tudo limpo, sem perdas ou algum dano mais permanente. Entra, desarma, sai. Bastava os aviões estarem funcionando, um boteco, um quarto de hotel. Fui treinada. Entra. Especialista. Desarma. Sobrevivente. Sai. Não sabia que você era labirinto. Poucos dias e eu já estava perdida. Não é só o sono, Kundera. Também o riso, na madrugada, é corpo de delito.
Hoje eu fiz uma coragem. Enviei uma carta. Uma carta completa e absolutamente pessoal, sem nenhum mote material, sem nenhuma desculpa de calendário, sem nenhum assunto comercial. Uma carta particular. Enviar uma carta assim é um salto de fé, não lhes parece? Ou uma tentativa de dar um rabo de arraia no tempo.
Para enviar uma carta em que se escreveu: sinto sua falta, sem saber ao certo quando ela chegará ao destino ou quando será lida, é preciso audácia ou inconsequência. Sim, sinto sua falta, neste agora, quando escrevo, não há mentira nisso. Mas quando estiver entre as mãos do leitor, a frase se apresentará como atualidade. É preciso uma confiança na constância dos sentimentos para garantir, por escrito e envelope e selo, que a ausência ainda será saudade.
Uma carta não é muito diferente de uma garrafinha jogada ao mar, náufraga que sou. Desenho com letra caprichada seu nome no envelope, como se o apuro garantisse a identidade - e a boa vontade - de quem recolhe a mensagem. Que sei eu de quem você será, nesse momento outro em que chegarei em palavra? Ainda assim, insisto, o que mais pode fazer um corpo no exílio dos abraços? Como uma forma de burlar a geografia, enviar uma carta é uma tentativa de estar em tuas mãos.
Enviar uma carta é, também e ainda, dobrar o tempo para fazer o eu que sou encontrar o eu que você será, apostando que o eu que serei ainda se emocionará com o você que é. E além, é esperar que o você, que você será, se interesse e deseje, então, a eu que fui, quando escrevi – que já serei passado, esperando que este desejo se estenda a uma eu que serei - mas ainda desconheço.
Comprei um livro, certa vez, por causa da capa: “Porque as mulheres escrevem mais cartas do que enviam?”. É revelador que eu nunca consiga escrever esse título sem colocar um “de amor” ali, entre as cartas e o envio. Aí me lembro de conferir e apago. Escrever é uma tentativa de aplacar a solidão de ser. Eu sei, nós sabemos. Não é esta a questão. Decidir-se a remeter o que escreveu é buscar ser aceito no ridículo de existir desejante. Eu anseio, é tudo que digo na carta, independente das palavras que usei e das histórias que contei. Todas as cartas de amor são ridículas e todas as cartas são cartas de amor – ou, pelo menos, as minhas são.
Luciana mas, por dentro, Pedro Pedreiro
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Março de 2020: comecei a viver um período de tristeza, muita tristeza, excessiva tristeza, angústia, outra vez tristeza, desespero e, eventualmente, alguma pouca esperança. Lá no meu blog passei a chamar de Infinitena, depois de ver esse termo circulando no twitter. Sentia um constante aperto no peito. Eu me afogava e a(s) live(s) da Teresa Cristina me mantiveram com a cabeça fora d’água. Seja pela generosidade de, noite a noite, despida de tudo, simplesmente cantar e se colocar como bóia, seja pelo equívoco que trouxe, para as minhas madrugadas, vinho, imaginação, cumplicidade. Vieram máscaras, vacina, espaços abertos, pequenos contatos, mais vacinas, mais contatos, uma viagem – tudo ainda um pouco sufocante. Eu e os fantasmas todos, todo o tempo, mesmo os tempos de alegria, que sempre os há. Uma solidão de não conseguir dizer que vou sempre morrer aqueles dias de 2020 e 2021. Uma solidão de não existir o abraço imaginado. Uma e a solidão. Não sei se uma mulher com uma dor também é muito mais elegante, Itamar. Caso sim, eu, elegantérrima. Até que. Uma cidade, um abraço, outros abraços e cidades, até um samba, uma canção, a liberdade. Teresa Cristina e aquele abraço. No meio de gente. Gente contente. E a respiração funda de novo. Nunca serei uma eu sem você, sem a dor, sem as perdas, sem o peito que doeu demais. Porém sou mais que. Sou sorriso, sou promessa, sou o bom. Não afundo. Transbordo.

(não sei porque a fotografia resolveu que ia sair assim, emborcadinha)