Newscoisa #97: Deglaçando sentimentos
Newscoisa #97: Deglaçando sentimentos
“Agora que eu morri, sei de tudo.
Era isso que eu esperava que acontecesse,
mas, como muitos dos meus desejos, deixou de se realizar.
Sei apenas alguns fatos dispersos que antes ignorava.
Desnecessário dizer, trata-se de um preço alto demais
para pagar pela satisfação da curiosidade”.
(A Odisseia de Penélope de Margaret Atwood)
Repetem bastante que a esperança é a última que morre. Não é o que a minha experiência particular me tem demonstrado. Eu mesma recentemente enterrei, bem enterrada, com velório e serviço fúnebre, uma esperança daquelas: esperança jovem, bem nutrida, vistosa, cheia de energia. Uma esperançona.
Ainda estou no processo do luto, mas sei, sobrevivente que sou – você também? – que em breve a esperança morta será uma memória doce, bem guardada na gaveta de baixo da escrivaninha que fica nos fundos, um pouquinho pra lá do ventríloquo esquerdo do coração.
Suspeito que permanecerá matéria sensível, (vamos torcer para que de forma transitória), como quando esbarramos forte em um móvel, a área da coxa fica dolorida por um tempo e andamos com mais cuidado pra não magoar. Porém, por ser daquelas grandes, viçosas e enraizadas esperanças, suspeito que sua ausência seja vivida com uma sensibilidade mais duradoura, talvez como aquelas pessoas que fraturaram o joelho, tiveram completa recuperação, mas ainda sentem, antes de todo mundo, antes do serviço de meteorologia, que vai chover.
Morreu, a esperança. Morreu prematura, morreu logo. Morreu cedo, antes do afeto, do desejo, da alegria, da ternura, da curiosidade, do tesão. Morreu antes do amor, que crueldade.
Morreu sem alarde, como vela que se consome, morreu de sua própria luz e beleza, foi se apagando e eu só pude acompanhar, com certa melancolia e aguda dor, o seu aniquilamento.
Morreu, lamentei, velei, enterrei e agora vou arrumar as coisas que deixou espalhadas, arquivar papéis, fechar contas, separar itens para doação e tantas outras tarefas impensáveis e necessárias.
Se alguém escutou um gemido abafado durante o enterro, esqueça a suspeita de que eu a sepultei viva.
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Para deglaçar o fundo do peito, cerveja no boteco.
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Varrer a cozinha.
Levar o lixo pra fora.
Ver um filme novo com cara de outros tempos.
Ver as atualizações em todas e tantas redes e saber que não vai encontrar o que importa.
Chorar na cozinha. Na sala. No banheiro. Na cama, uma e outra e outra vez.
Colocar o feijão no fogo.
Reler um Verissimo.
Chorar na cama, na varanda, na área de serviço.
Lavar lençóis, estender e ver o trabalho arruinado por uma nuvem inoportuna.
Andar na esteira.
Chorar na esteira.
Tomar banho. Chorar no chuveiro.
Receber mensagens variadas no whatsapp. Irritação com umas, sorriso para outras. Nenhuma delas ser a que se espera.
Acompanhar as notícias do governo. Atualizar o sistema, planejar reunião, equilibrar entradas e saídas.
Sentir uma dorzinha fina n’alma, o tempo inteiro.
Trocar o ventilador.
Levar sopa pra irmã, trazer batatas #escambodofimdomundo
Receber mais áudios no zap, jurar que não vai ouvir. Ouvir. Chorar.
Assistir episódios da série que amava e só sentir tristeza por ela não ser mais.
Ouvir a chuva.
Ler notícias no twitter.
Beber água.
Suspender o projeto Xerazade.
Dormir como quem morre.
Não morrer.
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Eu só queria ficar vendo erros de gravação de Friends, comendo torrada com pastinha de atum e bebendo vinho verde sem contar o número de garrafas. Escuto Fito Paez e penso no tempo em que moços enviavam, pelo correio, cds, meias de seda e perfumes importados. A vida era mais simples ou as encomendas mais baratas. E aquele afeto era Natal infindo. Não fui ao médico, não planejei o semestre, não limpei a geladeira. Não sei de onde as pessoas tiram o tempo para tanta coisa, inclusive para a felicidade, para a infelicidade e para todas as séries que assistem, livros que lêem, músicas que escutam. Eu mal consigo empurrar a vida com a barriga entre uma mensagem e outra no zap. Pelo menos meu cabelo está bonito, minha pele está macia, meu cangote está cheiroso e o governo Lula vem fazendo o que pode. Uma pena que você não saiba sorrir. Olha, rebuçado é um nome tão pomposo para bombom que eu sempre aceito, quando me oferecem, na esperança de um sabor inusitado. Sei lá, um rebuçado com sabor de frutas deglaçadas com xerez proveniente de barris empilhados em regime de soleira. Não que alguém ande me oferecendo qualquer coisa. Escrevi duas páginas explicando a ideia de que “o analista é seu estilo” e fechei a carta com um adesivo de lacinho achando que não teria resposta. Tive. A pessoa – eu, eu, eu – arruma o quarto todinho, no capricho, e decide: nada mais de bagunça, quarto é pra ser espaço tranquilo, sei que lá, repouso, sei que lá, sei que lá, descanso. Um dia e meio depois está dormindo com catorze livros, dois cadernos, o kindle, um pote de lápis de cor e nem vou continuar. Cada vez mais cansada de perder o bonde, o timing, o ritmo, a crista da onda. Minha cozinha está menos bagunçada que meus sentimentos, mas isso não é tão animador quanto pode parecer. Abro, muitas vezes ao dia, o aplicativo do banco, esperando alguma coisa boa e inesperada acontecer com o meu saldo. Folheei, ao acaso, páginas da Sylvia Plath e seus ditos me cobriram de cores como se fossem chagas. Me cansam os novos, me enervam os velhos desejos. Comecei um livro bom, terminei um livro ruim. Viajo com o Gil e sua família. Sinto falta de fazer parte de alguma coisa. Todo mundo é alguém ou já foi alguém ou conhece alguém que é alguém ou conhece alguém que já foi alguém, nas minhas rodinhas. Às vezes eu tenho um certo embaraço por existir. Escrevi um texto tão miudinho que cabe em um suspiro. Não mandei. Você não sabe ler. Se eu tivesse ficado no meu lugar, o afeto talvez não doesse assim. Sei lá porque você cutucou não uma, não duas, mas três vezes. Uma declaração: eu moraria em madrugadas com você. Linda e inútil disposição. Queria acender um sol no seu peito. Apaguei as estrelas do meu.
PS. Tem uma porção de post novo no Cais de Saudades. Atraca lá.