Newscoisa #98: Uma canção do Itamar
Newscoisa #98: Uma canção do Itamar
Decidiu cancelar as passagens e sentiu que nunca mais conseguiria respirar. Seus olhos ficaram saltados, os gestos lentos, os lábios embranquecidos. Abriu o congelador, enrolou cubos de gelo em um pano de prato limpo e encostou no peito. Tomar decisões nem é tão difícil. Sobreviver a elas talvez seja.
Escova de dente, produtos da dermato, banho, roupa de trabalho, café, café, café, reunião, trocar o almoço por um pulo no salão. Aparar as pontas e hidratação? Não, é pra cortar. Mais. Mais. Debocha de si mesma, voltando pro escritório, rebolando, cabelo curtinho, brinco grande, pisando leve, fazendo, da calçada, passarela. Óbvia. Segue o jogo. Café. Telas e planilhas. Transporte lotado.
Desistir. Como é mesmo que faz? Não ligar. Não escrever. Não mandar aquele link importante, não comentar o jogo, não escrever carta, não empacotar mimos, não confortar, não estar. Principalmente, não comprar passagens. Não ocupar o tempo do trabalho colocando alerta de promoções nem o juízo com a busca de feriados estendidos.
Detesta voltar pra casa. Sabe que isso nem faz sentido, ele nunca esteve ali. Nunca fumou na varanda. Nunca quebrou um copo de uísque. Nunca manchou um lençol com suor e esperma. Nunca soltou pêlo na pia, apara de unha na cama, cueca no chão. Nunca esquentou uma lasanha, nunca passou um café, nunca bateu um hollandaise para os beneditinos. Não há, na casa, vestígio da sua presença. Ainda assim, cada cômodo resmunga a ausência futura.
O cinema, então. Uma comédia daquelas em que pessoa conhece pessoa e vice-versa, o mundo atrapalha de uma forma tosca, várias situações ridículas se sucedem e, quando ela está pronta pra pensar: opa é a minha vida, um final feliz se impõe. Sai da sala com um inevitável sorriso. Amarelo. Amargo. Talvez uma olhadinha nos aplicativos de encontros. Sim, não não não não, sim sim, não não. Suspira. Procura, em cada um, ele. Aquele. Que caminha em ruas estreitas, bebe vinho ruim ao pé de balcões ensebados, coleciona infelicidades e ignora, tranquilo, a bifurcação de estrada que afastou seus caminhos.
Os matchs fazem rápido efeito. Recebe mensagens. Convites. Propostas. Sim ou não? Abre mão de todos os critérios. Sim pra tudo. Gim, uísque, caipirinha, café, cerveja artesanal. Calvos, altos, meio corcundas, mãos pequenas, cabeludos, carecas, baixinhos, simpáticos, arrogantes, carentes. Tenta dar sentido a cada encontro. Buscar uma história. Permite-se fechar os olhos, abrir a boca, cheirar, provar, tocar. Recuar. Tudo é bom. Nada é memória. Ir embora nas madrugadas. Dormir mal, acordar esperando aquela boca entre as pernas. Trocar a roupa de cama. Doar coisas. Renovar. Calcinhas e vestidos. Tudo que esteve em mala. Desamar sai caro.
Dieta ao avesso. Passar a comer sobremesa. Ou, pelo menos, a cereja do bolo. Buscar o doce da vida. Em último caso, virar a chave. A casaca. A noite. A mesa. Traz engasgada, a última conversa. Devia ter insistido. Argumentado. Chorado. Devia ter feito uma cena. Criado o cenário, o roteiro, a trilha. Recitado poesia. Mas recolheu o pranto, as roupas, os sonhos e trajou seu sorriso cansado. Água minha netinha. Vida, vovozinha. Que alimenta esse fogo mais do que o azeite.
Um dia, depois o outro e aquela saudade no meio. Melhor casar que arder. Lembra do personagem da Clarice Lispector como de uma amiga íntima. Todos os dias são o mesmo dia de vazio e árido desalento. Até que.Estranhou o úmido no rosto. Nem sabia que ainda sabia chorar. Encantou-se. Chorar era como rezar: uma arte desconhecida. Abriu a agenda para registrar. Uma, duas, três lágrimas. Correm rápido, percebeu. Dez, cem, mil, cem mil lágrimas. Provou o sal e era o mesmo do sêmen. Já não precisava tanto daquele ele.
Abriu a geladeira para beber água, era vinho. A cada mil lágrimas sai um milagre.
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Sinto falta do comentários da época dos blogs. Aliás, de vez em quando tem post novo no Cais de Saudades. Vai lá, vai.