Newscoisa #99: "Há folhas no meu coração"
Newscoisa #99: "Há folhas no meu coração"
Da beleza avassaladora do tempo. Tempo houve em que eu não lembrava como viver sem você de tanto tempo que você estava no meu tempo. Acordei hoje e, encantada, percebi o tanto de tempo que já foi depois do tempo do esquecimento e que agora o que não lembro direito é do tempo em que nossos tempos eram um.
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Desde a primeira vez que dormiram juntos ele entendeu que não era pra ser. Que aquele sexo maravilhoso, a conversa animada, o silêncio confortável entre eles, tudo isso era insuficiente. Não era pra ser. Ela dormiu naquela noite – e ainda dorme em todas as noites que atravessaram - com os braços protegendo o peito. Fechando seu coração. Ela aceita o abraço, enrosca pernas, até descansa a cabeça no ombro que ele oferece. Mas dorme de braços cruzados sobre o peito, fechando seu coração. Ele quase completa: fechando o coração pra mim, mas reconhece que seria injusto, é do mundo que ela se esquiva. Do que altera o equilíbrio delicado de dias exaustivos e noites solitárias. Desde a primeira noite, ele viu, ele entendeu, mas se deixou ficar. Tentou um pouco, e depois um pouco mais, abrir caminho, atravessar a barreira. Inútil. Ótimo sexo. Ótima conversa. Ótimos silêncios. E a distância cada vez maior, o muro mais largo e mais alto. Ele se veste devagar, como se esperasse que a vida, o acaso, ou mesmo ela, alterasse a sequência dos seus movimentos. Em vão. Está pronto. Ela escuta o trinco da porta. Abrindo. Fechando. Suspira, aperta mais firmemente os braços ao redor do corpo e volta a dormir. Só então descobre, dolorida e surpresa, que ele nunca mais abandonará seu sonho.
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Às vezes eu queria simplesmente recostar no sofá, fumar um cigarro e suspirar com doces lembranças. O menor dos problemas é que eu não fumo.
E antes de dormir deito no colo da tua ausência feito vontade, feito anseio, feito desejo e sussurro uma prece: que algum dia possa ser ontem.
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Tudo muda. É verdade. Antes, eu achava meio balela. Eu estava equivocada. Tudo muda. Em essência, inclusive. Não é o tempo que passa. Ou não apenas. As coisas passam. Mudam, surgindo ou desparecendo. Tudo, tudo, tudo muda. Até Canoa. Até a minha Canoa.
Canoa mudou. Ainda é a melhor praia do mundo e cabeça do meu top 3 confort place (e quem tem dinheiro pra ficar indo e vindo de Lisboa ou Roma?), ainda é riso, descanso e nutrição, mas é preciso reconhecer: Canoa mudou. Escrevo e dá uma pontada. Escrevo para entender, para acreditar, para aceitar.
Canoa é outra, não a da minha vontade. Não mais a Broadway de terra, não mais todo lugar é um lugar pra dançar, não mais a escada de madeira, não mais o toda hora é hora e todo dia é dia. Canoa resistiu, driblou relógios, modas e carteiras cheias de dinheiro, mas o mundo chegou e chegou e chegou até que Canoa não pôde mais digerir. Nas barracas mais “chics” até temperam o caldo do caranguejo com salsinha.
Ainda é a Canoa dos becos estranhamente seguros, das madrugadas acolhedoras e vivas, do mar verde que fica azul quando não há vento. Ainda os pastéis de arraia, as refeições baratas nas cruzas de rua, ainda os sorrisos largos, as cadeiras nas calçadas das ruas secundárias, o orgulho nos olhos, no falar, no andar da gente que é de lá.
É boa, é linda, é divertida. Mas não é o que a memória jura que vai encontrar sempre e toda vida que lá me procuro. Tudo muda. Eu também deveria ter mudado. Ou, sei lá, mudei e nem entendi. É isso, mudei, certamente, mas não sei em quem me transformei. Não sou mais, mas também não descobri o depois.
Tenho dificuldade de desapegar. Não consigo simplesmente deixar ir. Um dos motivos é nobre, não vale a pena me demorar nele. Não quero te deixar triste, mesmo que você se importe bem pouco e provavelmente nem venha a sentir tristeza ou saudade. Mas o principal que não me deixa seguir sem olhar pra trás, sem vasculhar entrelinhas, sem esperar um pequeno sinal que seja pra me demorar mais um pouco, é que tenho muito medo de ficar só. O que é um contrassenso porque se temos uma não-relação, se não estamos juntos, neste momento eu estou duplamente só. Só, sozinha e só de você.
Tem este Museum of Broken Relationships, desde que o descobri, volta e meia eu volto a falar dele. Um Museu que coleciona e expõe objetos de relacionamentos terminados/acabados/findos, de vínculos rompidos/interrompidos/cortados, de corações partidos. Legados de um sentimento que já não é. Pessoas que estavam juntas por afeto, hábito, costume, conveniência, até amor, e aí, vrau, já não estão, estas pessoas enviam pra lá as coisas que marcaram a relação. Quem teve o sentimento e suas manifestações concretas e, não tendo mais o sentir, não consegue ou não quer mais conviver e guardar as lembranças feito objeto, tais coisas tem cantinho certo lá na Croácia.
Penso nas pessoas que doam os objetos para o Museu. No que sentem ao fazer isso. Em como esse gesto pode, ou não, reordenar as emoções, reorganizar o viver. Como é este momento em que se deixa algo pra trás. Que se deixa ir (fica mais bonito em inglês: let it go). Porque alguém envia pra um objeto e compartilha sua história? É uma forma de aplacar a dor? A compreensão de que a coisa já não comporta tudo que existiu? A ideia de que longe dos olhos longe do coração? A vontade de dar um sentido maior à sua perda pessoal? Um certo exibicionismo?
Gostaria de ver a exposição. Imagino que deva ter uma constante melancolia no ar. Já vi alguns objetos, em matérias e reportagens. O vestido do primeiro encontro, o LP do aniversário de casamento, pelúcias, livros, a coleção de sutiãs. Objetos triviais, em si mesmo quase insignificantes, que encarnam o sentir e são, eles mesmos, narrativas condensadas. Tanta coisa por dizer, tanto futuro supostamente perdido, alguns arrependimentos, umas saudades. Alguma alegria recordada, espero. Objetos que dizem de vidas que já não são. Todos esses objetos que ocuparam tanto espaço, depois de doados, deixam o vazio pra que a vida possa ser.
Tem um episódio de How I Meet Your Mother em que a namorada atual do moço exige que ele se desfaça de tudo que ele ganhou ou comprou junto com os relacionamentos passados. Exige que ele abra mão de todos os objetos que contassem alguma história de amor que não fosse a deles. E, quando ela voltou a entrar no apartamento, não tinha quase nada. Amar alguém sem acolher sua história, nem sei como pode ser possível. Uma certeza que me acompanha: somos quem somos, um tanto pelas pessoas que amamos, pelos relacionamentos que tivemos. Quando amo alguém que é, agora, mesmo desconhecendo o que foi e quem amou, mesmo ainda desconhecendo como e quando amou, amo, neste agora do alguém, seu passado, a trajetória, toda lembrança.
Estão em mim, os meus amores, no meu jeito de sorrir, nas histórias que repito, na ruga no canto do olho. Estão na pele, na curva do corpo, no balanço das mãos. Estão em mim. Eu sou todos esses amores. Enquanto eu for, eles são. Somos. Todo amor é eterno enquanto eu dure. E também estão nas coisas que apinho nas gavetas (voltamos ao apego).
Mesmo desse nosso não amor, trago despojos. Poucos. Alguns, apenas, para entrar na minha exposição particular do Museu dos Relacionamentos que já não são (ou quase não são). É contraditório e quase engraçado, tão pouca coisa, tão pouca lembrança e tanto querer bem. Talvez entrasse a canção do Zeca Baleiro: tanto amor em mim como um quebranto, tanto amor em mim, em ti, nem tanto.
É difícil ver que um relacionamento está acabando. Escorre entre os dedos. Esfumaça-se. É difícil aceitar que finda quando ainda se queria tanto, se queria o outro, se queria tanto dos possíveis encontros, se queria tanto da vida. Deixar ir é difícil demais. A sensação de desperdício. Uma história tão bonita. Um desejo tão intenso. Uma alegria tão redentora. Paciência. É preciso aceitar o não do outro, mesmo sabendo que um sim seria festa, alimento, farol e ninho.
Se é difícil aceitar o fim, é mais ou menos fácil saber que acabou. Digo mais ou menos porque tem os que acabam em um golpe seco, outros arrastam alguns ensaios. Algumas vezes o relacionamento acaba para um dos parceiros e o outro demora a sacar. São nuances. Mas a realidade acaba por se impor. Há sinais. A verdade é que quando um relacionamento acaba, é preciso mudar. De rotina, de casa, de trajeto, de bar. Grandes transformações ou pequenos ajustes. Tudo, tudo, tudo muda. Até Canoa. Vou mudar também. Até lá, essa dorzinha tão fina ao escrever assim, letra por letra: nunca mais.