"o futuro é o sítio onde se mora"*
Quanto mais de ti, mais de mim. Mas quanto mais de ti, também, menos serei adiante. No teu abraço, o fim.
Existem dois tipos de pessoas, as que classificam as pessoas em dois tipos e as que não. Opa. Bem sei que entre a pessoa #zecapagodinhofeeelings e a pessoa que com 17 já definiu emprego, perfil do consorte, número de filhos e projeto de férias para os próximos anos, há uma infinidade de tipos. Apesar da ressalva, é tranquilo dizer que grande parte das pessoas adultas que eu conheço se preocupa com o Futuro. Esse assim, com letra maiúscula.
Passa-se um tempo significativo da vida idealizando o que virá. Tentando prever. Tentando controlar. Tentando moldar o Futuro. Tratando o tal Futuro como o Passado que se gostaria de recordar. De alguma forma, tal planejamento parece uma garantia de que o impacto vai ser menor. Que tudo vai doer menos. O importante nesta operação é a presença do artigo definido. O que se espera é o Futuro, preciso, resultado de trajetória linear, um passo, outro passo e se chega ali, neste tempo/espaço específico almejado onde se pode descansar em paz.
Mas o futuro, sem letra maiúscula, sem pompa, sem arauto ou cortejo, está sempre chegando antes da hora. Ele é o já-já que se faz agora e, sem nem percebermos, já era. Não estamos prontos, não colocamos a roupa certa, não preparamos o ambiente. O futuro – atenção! olha meu momento de sabedoria – é um presente (cof cof) que não estamos aproveitando bem. Ele é, naquela corridinha que damos ao mercadinho da esquina pra comprar mais uma garrafa de vinho, o momento impreciso em que sorrimos pro moço do caixa que nos entrega o troco. O melhor jeito de habitar o futuro é ignorando os pedágios.
O futuro da letra minúscula, penso eu, nunca é exatamente, ele é inacabado, impreciso, incompleto, sempre demanda mais um momento, mais um instante, mais um fragmento de futuro, é um e mais outro e mais, um processo de microescolhas, o sentir pequenos instantes, o caleidoscópio de fragmentos de esperanças e memórias, que nem percebemos e vão tecendo este sentir que chamamos vida até não ser mais.
O futuro vivido, o futuro que será efetivamente passado, é apenas um dos possíveis. Quase sempre não se torna exatamente o passado que gostaríamos de ver ao olhar pra trás, mas, estranhamente, ao darmos uma espiadinha, reconhecemos felicidades. Este futuro resulta de renúncia de tantos outros eus que podíamos ir sendo, ao fazermos outras tantas pequenas coisas. Massa ou peixe, parar no posto antes ou depois da hidroginástica, cinema na sessão das 20hs ou das 22hs, dar bola ou não pro cara de costeletas esquisitas - mas tão cheiroso, escrever um post engraçadinho ou revelar logo que o futuro é sempre a morte?
Na construção do futuro não dá pra saber qual a melhor opção, qual a melhor decisão, qual o melhor caminho, o mais sábio, acertado, correto. Não dá pra saber no antes, a vida é o que se faz ao acontecer. A verdade é isso aí da imagem: você sofre, você envelhece, você morre. No por enquanto, você beija, come, ri, lê Dostô e se perde no monte de personagens, abraça amigos, queima a língua com café, toma banho de mar, salga demais a carne, compra passagem errada, defende uma tese, tem um filho, sei lá. E sofre e envelhece e, um dia, qualquer dia, certamente no seu futuro, você morre.
A quem costura esse entrelaçar de agoras e saudades e vontades damos o nome de Tempo, com quem tento manter boas relações (apesar de cantarolar com Nana)
Sr. Quando
Daqui, neste dia
Tempo, tempo, tempo,
Oi, você que é meu. O meu tempo é quando, disse o poeta e eu com ele. Por isso não me apresso em dividir-te em conjugações. Não pelo mesmo motivo dos arautos do agora, não sou dos carpe diens, nem sei se aproveito o dia ou se a ideia de aproveitar sobrepõe-se adequadamente à de viver. Sei que o hoje é o passado do futuro e não ligo se essa é uma ideia pronta, se você, tempo, não espera que eu geste uma nova.
Nesse exato momento eu te escrevo e o ontem se torna o futuro do hoje, olha só. É tudo que fui e vivi e senti e aprendi que pode e se torna palavra, frase, ideia, para que chegue a você. Toda essa carta, toda ela brutalmente presente do Indicativo, letra a letra, só será inteira no após, quando diante de outros olhos. Essa é a tua magia que permeia atos e é por isso que é inevitável amar-te, mesmo sabendo no que resulta. Quanto mais de ti, mais de mim. Mas quanto mais de ti, também, menos serei adiante. No teu abraço, o fim.
Os homens, criamos deuses porque não sabemos lidar com a liberdade, eu pensava. Dispensei-os. E para a invenção do relógio e calendário, para o uso no qual insisto, qual a desculpa? O relógio ou calendário é um mediador, tal qual o escudo espelhado que Teseu usou para cortar a cabeça da Medusa? Sempre considerei a nossa relação boa, meu caro tempo, e até estranhava um pouco quem contava mais um no triângulo, considerando, talvez, como uma muleta. Entretanto, o mundo capota, olha só, tenho sofrido com suas mudanças abruptas disfarçadas de lerdo passar.
Parece que você apenas permanece por aqui, por ali, e pelas persianas entreabertas, dia e noite e dia e noite e dia e noite e dia e tudo imóvel. Daí acordo e já foram semanas e meses e aniversários e santos antônios e natais e festas e perdas e o primeiro mês do ano já vai ao meio. Este é o outro lado do seu feitiço. Um lado que me assusta, confesso. Quanto mais indistinto, quanto menos contornos você tem, menos eu sinto meu peso, densidade, minhas próprias dimensões. Quanto mais sabia e sentia você, mais eu sentia e sabia de mim. Neste agora, por vezes me estranho além da conta.
Passei a suspeitar que me apeguei a calendário e relógio porque eles organizam a existência quando não consigo olhar-te nos olhos e confiar em apenas ser. Quanto mais as horas dos hojes tem se parecido uma com a outra, sem suas marcações próprias da conexão com o previsível e planejado, quanto menos hora do almoço, hora da aula, hora disso e daquilo, quanto mais os hojes se dissolvem em si mesmos e entre eles, eu te dizia, menos sou capaz de me encontrar em paz com você. De me sentir tranquila com você vadiando em mim.
Equivocadamente, às vezes digo que tenho muito ou pouco de ti, tal qual amante ciumenta ou gabola, quando, reparando bem, não é em quantidade, mas em conexão. Você está aqui pra mim, bem sei, mas nem sempre acredito. Bom, nem isso é preciso. Você está aqui, em mim. Outro aspecto do seu encanto. Estará enquanto eu for. E eu estarei em ti, mesmo depois de não ser mais, enquanto passas para, enquanto passas em alguém que lembra. De mim. Enquanto passas para e em quem lembra de quem lembrou. Até o depois do depois em que serei, também em ti, o esquecimento da lembrança de alguém.
É engraçado (na falta de uma palavra melhor) que te escrever seja uma forma de te aprisionar. Desculpe. Você fica retido no papel (ou neste simulacro de). Mas é, também, e por isso insisto, uma maneira outra de estarmos juntos. Assim, passarei eu, passa você, mas aqui permaneceremos, nem eu nem você, um nós que se faz à medida que escrevo e te nomeio. O você desta carta nunca será outro, nem mesmo o você que você vai ser. Essas palavras são uma espécie de laço esquisito. Aqui seremos em um tipo de sempre, o único – como sabia aquele mesmo poeta da primeira frase – que vale a pena: o eterno enquanto dura.
Não posso me despedir, sou sempre em você,
euzinha
Pra mim, o futuro que vai sendo, que vamos fazendo, o futuro que é vida, com sua letrinha minúscula e tudo (que aquela com o V gigante pede outro texto), tal futuro assemelha-se a uma viagem, daquelas em que já se sabe o que é, pra onde é, daquelas viagens em que apesar de eu estudar os mapas e me informar dos restaurantes e museus, desta viagem eu não sei o como. Aperto o cinto, debruço-me na janela, respiro fundo, aproveito a paisagem. Se o futuro é o sítio onde se mora, resido no movimento e não tenho pressa nem medo de chegar à estação final.
*”O futuro é o sítio onde se mora”: Trecho de Novo Fado Alegre
Que texto mais lindo!!! "Quanto mais de ti, mais de mim. Mas quanto mais de ti, também, menos serei adiante. No teu abraço, o fim."me emocionou demais.