Vida, morte, males diversos e um conselho
recomendo romances policiais para males diversos, especialmente os de (des)amor
O meu analista me deu um safanão mental ao dizer: você não é velha, luciana, sacudidela mais intensa na frase completa que ele não precisou dizer pra eu ouvir: você não é velha, luciana, você está envelhecendo. Eu costumo me gabar de ter uma relação tranquila com a (minha) morte. Também costumo repetir que há uma única opção pra quem não quer ser velho – e que ela não me parece muito atraente. Freud intensifies.
Depois da risada meio nervosa, meio catártica, a angústia. Fiquei matutando: já ser (ou já estar) velha seria uma espécie de vitória. Uhhuu, cheguei lá antes da morte me alcançar, né. Estar envelhecendo é de outra natureza. Não a reta final, mas a corrida. Não o estuário, mas a correnteza. Enfim, não é uma questão de lidar – bem ou mal - com a morte, e sim de ter de se avir com a vida (passei longo tempo lendo sobre haver-se e avir-se, recomendo).
Neste contexto, não são muitos que vão levar a sério um conselho meu, não é? Mas deviam. Eu, volta e meia, recomendo romances policiais para males diversos, especialmente os de amor. Não que eu tenha o propósito muito elaborado. É uma coisa mais de intuir que de entender. E é claro que os romances policiais podem parecer um fragmento de um todo maior – também excelente lenitivo – que é a literatura. Mas insisto que os policiais tem um quê a mais que age nas situações de desamor.
Quando uma relação acaba ou nem, quando está tudo muito dolorido, é aquela confusão nos sentidos. Tudo em carne viva e a gente fica se perguntando e se? Mas porquê? Foi alguma coisa que eu fiz? Eu errei em quê? Será que? As dúvidas sequestram nossa paz, colocam em xeque nossa segurança, distorcem nossa percepção. O amor é labirinto sem fio de Ariadne. Sem nem mesmo as migalhinhas de pão do João. Amor não tem resposta única. Não tem verdade. Não tem desfecho – por mais que as pessoas insistam nessa ideia e busquem uma mítica última palavra. Insistimos em conhecer, entender, explicar e só nos deparamos com mais questões, mistérios, inquietações. Quanto mais se olha pra trás e se tenta desvendar o que aconteceu, como aconteceu, porque aconteceu, mais perdida a pessoa pode ficar.
Já o romance policial, por princípio, faz sentido. No mundo dos romances policiais há uma pergunta central e uma resposta plausível, esse é o acordo básico entre escritor e leitor, neste tipo de literatura. A verdade, ela vai aparecer. Encontraremos com ela bem na saidinha do labirinto. Um desenlace que se a gente não pegou de primeira, volta e espia: vai ter um fio condutor. Está tudo sinalizado. As pistas estavam todas lá, a gente que não tinha visto, mas com calma, analisando bem, arrá, era isso! (sim, eu sei, nos livros do Holmes se rouba um pouquinho, é que no acordo do Doyle tinha a parte com letras miúdas).
O romance policial te dá certeza. Desfecho. As pontinhas soltas formam um belo laço de presente. Isso conforta. Esta é a dica: o romance policial acalma. Acalenta. Coloca um pouco de ordem – mesmo que temporária e transitória – na bagunça que é o sentir. A gente entende. Os sentidos, confusos, se acomodam.
O romance policial é um desafio intelectual. A gente pode pensar sobre e desviar o olhar do profundo aliciante que é o nosso umbigo cheio de dor. Ou a gente pode se deixar levar, como quem faz uma visita guiada: à direita vocês podem ver um suspeito inocentado, reparem que seu ar suspeito é, na verdade, efeito da azia. Mais na frente, a arma do crime, disfarçada na primeira leitura, evidente no seu pingar de sangue na segunda olhada. A visita guiada é relaxante, buscar decifrar é instigante, de um jeito ou de outro o romance policial nos alivia – mesmo transitoriamente – do efeito imobilizador de ficarmos encarando o nosso sofrer – e lhe emprestando beleza, ao nos admirarmos do tanto sentir.
O romance policial, ao nos dar um desenlace, nos empurra além da paralisia que nos aprisionam. Acabou, e agora, o que mais? – é assim que ele nos cutuca, e é assim que ele nos liberta, afinal “quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”.
Ser gente é sustentar essa fome: de conhecimento, de verdade, de saber. Viver é aprender que não tem resposta fácil, que a gente não vai saber tudo, que a verdade é uma construção. E amar é aprender isso tudo sem pele. Mas o romance policial, ah, por um momento a gente pode, a gente sabe, a gente responde. E sobrevive. Para depois voltar ao viver (e ao envelhecer, a des-propósito).
“O crime é terrivelmente revelador. Você pode testar e diversificar seus métodos como quiser, assim como seus gostos, hábitos, atitude intelectual, mas sua alma é revelada por suas ações” (Os crimes ABC).
(Morte e Vida, Gustav Klimt, 1916)
E tem este ganho colateral. Um bom romance policial muito raramente é sobre o crime investigado. O que importa, o que realmente importa, são os personagens e suas particularidades, seus motivos, impressões, temores, anseios. O que cobiçam. No que cedem. O que precisam, dolorosamente necessitam: aprovação, amor, poder, dinheiro, segurança. Suas paixões e seus segredos.
Eu disse suas e seus? Eu devia ter dito minhas e meus (e de cada leitor). Ler policiais me ensinou - e me ensina - sobre gente. Gente, o que me esforço pra ser.
Adorei a forma de se localizar, policiando e respondendo <3
A vida sem resposta pronta. E mesmo assim, conseguimos construir obras que tenham A resposta.