Primeiro o disclaimer: não estou mais no Cais de Saudades. Fica aqui a despedida. Mas tem blog novo, de vez em quando preciso redescobrir minha forma de sentir e escrever. Vou seguir aqui: Flertando com Hermes. Já tem um texto de intenções e um pequeno conto, post procrastinador de segunda-feira, com um desses (des)encontros de ponto de ônibus.
Amor Fati (agora vai)
Eu li o texto do João Luís na newsletter Nada de Errado Nisso com conselhos para o homem hétero lidar com um pé na bunda e, apesar de não ser um homem hétero nem ter exatamente levado um pé na bunda, aquele texto era algo que eu precisava ler e se conectou com algumas coisas que ando sentindo de um jeito muito curioso. Eu ri, mas com aquela coceirinha na garganta. Por um desses deslizamentos que possivelmente só meu analista vai entender o suficiente pra mangar, decidi rever A Chegada.
Preciso dizer que ver o filme em 2016 foi uma grande experiência e revê-lo agora foi ainda mais comovente. É como a gente se perder nas estrelas para saber o bem dentro de nós mesmos. Quando vi a primeira vez, comecei bem incomodada, achando as cores pálidas e aquelas pessoas borradas meio nada a ver. Ingênua. Tudo, ali, tem um propósito. Que, claro, a gente (onde a gente sou sempre eu, etc) vai perceber, como na sacada psicanalítica, no só depois. Na segunda jornada, já sabendo algo dos caminhos e descaminhos, fiquei mais tocada pelo equilíbrio entre fascínio e temor que o desconhecido – sejam alienígenas, o futuro ou o amor - pode provocar.
A história do filme? Uma professora - intérprete- linguista vai dar uma mão pro exército quando uns ets meio enigmáticos pousam em Montana (e mais um tanto deles distribuídos nos vários países do mundo). O que importa no filme? Tudo o mais.
Eu costumo ser meio vida loka nos meus relacionamentos, então todo aquele aparato para encontrar o desconhecido me causou estranheza e desconforto. Entendi demais a professora quase hiperventilando dentro daquele macacão laranja. Hoje, anos depois e depois de uns tantos safanões, já olho com mais empatia quem mantém por perto seu cilindro de oxigênio e coloca uma máscara nos flertes e primeiros contatos. É simples e elegante como o filme mostra Louise se apresentar como humana ainda com todas as proteções, mas, para dizer quem ela é, única, particular, singular, para se apresentar é preciso que se dispa das proteções. E demanda coragem. Como completa Ian (despindo-se também - com e na frente dela, aceitando a vulnerabilidade): vamos todos morrer mesmo. Talvez de amor.
Neste momento faz sentido o que Louise já sabia desde antes (ou de muito depois?): vamos primeiro falar com eles, antes de querer saber coisas. Me parece uma excelente dinâmica para qualquer relacionamento: ouvir (Poirot, inclusive, era um super adepto deste percurso. Sabia ele que deixando que os outros falassem aprenderia mais sobre eles do que fazendo perguntas).
Eu fiquei completamente envolvida pela discussão sobre linguagem na primeira vez que vi o filme. A língua não só como expressão, mas como apreensão do mundo. E mais, como molde. É sobre comunicação, sim, mas não só, ou não em uma perspectiva instrumental da comunicação entendida como transmissão de algo, de um alguém para outro alguém. É a comunicação como um além, um mergulho no outro em que se sabe algo de si mesmo - e este processo não ocorre quando do outro desvendamos o que quer que seja e sim quando a ele (nos) oferecemos.
Todo o encontro da Louise com Abbott e Costello me reviraram. A hora do “desnudamento”. Que metáfora forte para o processo ensino-aprendizagem. A primeira palavra: humana. Não o nome próprio, mas onde nos inscrevemos neste discurso que vai ser ensinado e aprendido: como produtores de sentido. Humanos. Todas as vezes em que ela vai explicar, para os militares, seu percurso e os motivos. O lance da pergunta. É preciso, primeiro, saber que uma pergunta demanda. Depois, a construção do vocabulário. O entendimento de que é preciso um mergulho no universo alheio pra vislumbrar as respostas... e além, o que se diz no que se diz, já que no enunciado há intenções e perdas. A linguagem como arma, método, ferramenta, segredo, potência, tanta coisa. A língua como partida, chegada e caminho. O filme nos convoca a aproximar o nosso pensar de um pensar alienígena, diferente e divergente da lógica nossa de cada dia, nos convida a um pensar não-linear e não espacial, onde tempo e espaço se misturam. O toque: não adianta fazer perguntas se não temos pontos de contato mínimo para entendermos as respostas. Quantas vezes eu escorreguei nisso com aquele que ainda, em mim. Nossos glossários tão em desacordo, Sabina e Franz sem guerra, sem ditadura, sem cemitérios, marchas, sem contexto macro, minúsculos e insuspeitos desencontros e olhos fechados e abertos no sexo quase redentor. Quase. Não soubemos fazer silêncio. Eu não soube. Não sei.
Tem um momento no filme em que Ian e Louise falam da hipótese de Sapir-Whorf, a teoria de que como pensamos é determinado pela língua que falamos, com sua estrutura e vocabulário próprios, e isso afeta como enxergamos a realidade, como lidamos com o mundo. E aí o Ian pergunta pra Louise se ela sonha na língua dos heptapodes. Desta vez, já tendo visto Vidas Passadas (escrevi sobre ele também), pensei em Arthur e Nora e no desconforto que ele sente porque ela sonha em uma língua que ele desconhece. É bem isso, um mundo outro, um jeito de lidar com a realidade, uma forma diferente de ser que ele não pode acessar. Um lugar ao qual ele não chega, que ele não pode acompanhá-la. E, mesmo assim, o amor. Porque mundos e referências podem conviver. O que os heptapodes oferecem é uma dádiva.
O filme percorre, com delicadeza, com extrema delicadeza, nossa humanidade. A individualidade. A conexão pelo dito. As perdas. Os encontros. As decisões que tomamos na vida. A solidão. O contato. A dor. Os medos. Um parêntese especial para os medos: acho bem sintomático que seja isso o que a humanidade, como coletividade, no filme, manifesta mais evidentemente em comum. A linguista é convocada para fazer parte de uma equipe que deve mediar a relação entre os alienígenas de uma das naves que chegaram à Terra e todos nós. A Chegada é um filme sobre a busca pelo contato, nele o estrangeiro alienígena pode não ser uma ameaça, não se mostrou como, não pretende ser uma ameaça e, ainda assim, a principal emoção encetada é medo. Medo, medo, medo. Medo do Outro, medo uns dos outros, medo do desconhecido, as nações optando pela saída do aniquilamento do que ainda não se sabe.
Fiquei embasbacada demais com todo o lance do Abbot e Costello, a beleza de uma comunicação que é construída e não dada. A interpretação como parte da comunicação. O tempo como elemento da comunicação, feito e transformado por ela. Fiquei tão envolvida com isso, foi tão grande pra mim que, provavelmente me escapou na primeira investida, um pouco de uma outra camada, também presente no filme, o drama pessoal da protagonista. Talvez o imenso impacto da discussão sobre linguagem e tempo e contato e entrega e encontro tenham me adormecido um pouco para as questões da trajetória individual de Louise. Achei sensacional o passado ser o futuro, mas não consegui me emocionar completamente com a perda específica dela. Acabei achando mais bonito que dolorido. Fiquei pensando que poderia ter sentido mais o drama pessoal se não estivesse tão mergulhada no tudo o mais do filme. Acabei ficando sem tempo, talvez porque ainda estava processando o impacto de tudo, porque o tudo o mais foi demais pra mim… como se você esperasse muito tempo que alguém fizesse ou dissesse alguma coisa, mas você nem sabia que estava esperando até que a coisa acontece? Pois. O que o filme me deu, eu precisaria demais, não naquele 2016 mas no depois do agora.
Desta vez, senti mais e melhor o processo de Louise. E a perda/escolha da personagem se inscreveram em um registro diferente das ausências usuais. Fiquei pensando: como não há passado nem presente e nem futuro depois que se aprende o heptapode, então tudo acontece e aconteceu e acontecerá, tudo é um ao mesmo tempo. Assim, não é simplesmente que Louise escolhe ter a filha sabendo que vai perdê-la, ela escolhe ter uma filha eternamente. E escolhe não ter, também eternamente. Como as memórias existem até mesmo antes da filha existir, tudo na história delas importa. O fim, mas também o meio, o começo, tudo é relevante, tudo se equipara e isso é ilustrado pela escolha do nome da menina, um palíndromo: Hannah existe de frente pra trás, mas também de trás pra frente. Atemporal, de certa forma.
Louise abraça o amor, a alegria, as descobertas que pode ter entendendo que também acolhe a saudade, o desespero, a angústia, o vazio. Eu senti que essa vivência é o que tento experenciar nos meus afetos. Não pensar como dentro e fora, antes e depois, ter ou não ter. Sentir. Eterno enquanto dure, meu caro Vinícius, é um eterno enquanto cada um dura. A presença e ausência, fora da idéia de sequência, coexistem. O heptapode faz, pra frente, o que o inconsciente faz pra trás. Não há antes ou depois. Cada coisa, é, atual. E a tristeza se dilui na sensação de que é uma dádiva incrível poder saber antes e sempre, que um instante, que o instante é belo.
Continuo, confesso, achando meio sacanagem Louise não contar pro moço o caroço do angu do futuro deles. Talvez ele pudesse viver toda a beleza junto com a tristeza e, assim, também escolher a escolha dela. Mas não há garantia e, desta vez, entendo um pouco mais o que ela quis proteger e garantir.
Outra vez pensei em Nora (antes Na Young), de Vidas Passadas. Escrevi no texto sobre Vidas Passadas que destino era uma palavra importante na história que era contada. In Yum é uma manifestação de destino meio circular: se interagimos com alguém nesta vida, é porque já interagimos em vidas passadas. E, ao interagir com alguém nesta vida, o destino vai nos levar a encontrá-la na vida futura. In Yum é uma espécie de inevitável. Nora e Louise são mulheres corajosas que aceitam seus destinos. Mais, amam seus destinos. Destinos com perdas, com vazios, mas destinos que elas mesmas construíram. Escolhas que fizeram, fazem, estão fazendo, tudo ao mesmo tempo. Escolhas que as determinam, assim como são determinadas por estas mesmas escolhas. Com a entrega de quem aprende a considerar belo o que é necessário. Não suportar ou resignar-se. Ativamente entregar-se e construir-se ao construí-lo. Na garrafinha sobre Vidas Passadas:
O amor, como a vida, não é plano, nem linear. E, muito menos, excludente. Somos o que a vida nos faz e o que fazemos da vida. E somos, também, forjados pelos nossos afetos e pelos destinos que damos a eles. É com isso que Nora tem que lidar. E lida.
Esse é um grande desafio para Louise, lidar com os afetos e o destino dado a eles, desafio acrescido do fardo de saber sobre o futuro de uma forma que quem o partilha com ela não consegue aceder. Ou aceitar.
Quando presente, passado e futuro se misturam em um destino que preciso amar, me vejo me debatendo com questões que deveria ter atravessado (ou por elas ter sido atravessada) com uns, sei lá, 15 anos, algumas daquelas apontadas pelo João Luís: necessidade de controle, incapacidade de lidar com a própria fragilidade e me compreender como vulnerável.
No fim das contas, ou quase fim, porque se escrevo é para dar conta do sentir, mas também para abrir as possibilidades de novas incursões no assunto, além de delicadeza me vem a palavra vulnerabilidade. Uma angústia que é casulo e voo. É um filme que não me deixa sossegada. Sempre que penso nele algo me atravessa e muda. Agora, agorinha, diria que é sobre a possibilidade do contato, a superação do estrangeiro como ameaça e, principalmente, um entregar-se à comunicação. Amanhã provavelmente pensarei outra coisa. Ou mesmo daqui a pouco, na caixa de comentários, caso alguém decida papear. Um filme que se enraíza em perguntas, acho que essa é uma das melhores referências que posso dar.
PS. É interessante que um filme que fala da reinvenção da forma de lidar com o tempo seja especialmente lento como opção narrativa. Achei genial que o filme nos envolva de tal forma que o tempo passe a ser irrelevante.
PS2. "Na guerra, não há vencedores, apenas viúvas" foi o que ela disse ao telefone.
PS3. Na primeira vez em que eles se abraçam, ela diz: eu esqueci como é bom sentir o seu abraço. Nunca aprendi heptapod, não consigo sair da linearidade quase nunca, minhas lembranças são a realidade que vou conseguindo inventar e, ainda assim, apesar de tudo, foi isso mesmo que senti ao te encontrar pela primeira vez: que eu tinha esquecido como é bom ser amada por você.
Que texto lindo, Luciana, eu tinha adorado A chegada, mas não saberia explicar com tanta profundidade... intuição minha, apenas isso...
Que lindeza de análise, OBRIGADA pela partilha!!!
Fiquei com muito vontade de rever o filme, que na época explodiu minha cabeça e passei uma semana pensando sobre coisas tão bem abordadas em sua análise profunda.
Você leu o conto do Ted Chang ?