Céu da boca
ali, onde as palavras brilham e persistem muito depois da extinção (eu sei, é fake, mas tão bonito pensar assim)
Escrevam cartas. Tenham correspondentes que enfeitem o envelope, que usem papel de carta decorado, que colem estrelinhas, que usem o carimbo de uma girafa pra enviar as notícias principais, que presenteiem com carrancas.
Tenham correspondentes que façam sorrir.
Eu sou ansiosa. Chego antes. Imagino de tudo: atos, sentimentos, finais. É muito raro (e, também, muito precioso) que alguém consiga apenas ser, ao meu lado. E, mais, que me faça apenas existir, sem a imaginação, as expectativas, os diálogos imaginários, as ações marionetadas, as grandes despedidas. Obrigada.
Eu pelejo, mas não encontro a bendita paz interior, então só me resta cantarolar: a dor é minha, em mim doeu, a culpa é sua, o livro é meu - porque um dia virá, sim, virá. Enquanto não vem, um convite gentil, um pequeno conto, uma boa aula, os Corleones, chocolate com flor de sal, a correspondência. Abri o envelope e choveu dourados. Cartas há mais de dois anos e você ainda consegue me surpreender. Alerta de correios e de sorrisos em mim, sorrisos que eu julguei perdidos. Ouvi uma musiquinha do Fito Paez. Tão doces os amores do passado que nos fizeram bem mesmo que não os entendêssemos como devíamos. Vejo discussões no twitter e me espanta a segurança de tantos a respeito de tudo. Eu mal e mal penso em aconselhar: coloquem a macaxeira para cozinhar no cozido de carneiro. De preferência, tendo temperado a carne, com pimentinha e canela. E acrescentaria: depois que no prato estiverem carneiro, macaxeira e cuscuz, não seja sovina no uso da pimenta biquinho. Garanto uma boca em festa. Por falar em festas, ando precisando de um boteco. Em outra freguesia. Criei uma armadilha e me joguei nela. Eu era feliz e sabia. O que eu não sabia é que não seria feliz assim de novo. Eu não tinha medo de morrer. Agora eu tenho receio de não morrer. Ou de não saber que estou morrendo. Ainda estou decidindo. Fiz fotos com meus sapatos vermelhos. Não estou mais no Kansas, nem em Oz, nem mesmo em seu pensamento. Mas encontrei um papel de carta muito fofo e etiquetas douradas em forma de estrela. Não estou fazendo planos pois não sei se estaremos juntos, eu e o futuro. Não sei quem ele vai encontrar, caso chegue. Provavelmente alguém que eu desconheço. Enfim, não estou fazendo planos, mas em algum canto bonito em mim, os encontros se sonham, se plantam, se nutrem. Autônomos. Ainda preciso comprar envelopes.
Não tenho nada a dizer sobre o disco novo daquele fulano. Não tenho nada a dizer sobre muitas coisas e mesmo sobre aquelas poucas que tenho algo ou muito a dizer, tenho silenciado quase sempre. Menos nas oito longas páginas – e contando – em que desfio memórias incompletas, reflexões antigas, perguntas novas, piadinhas cada vez menos preocupadas em fazer sentido e vários nadas contentes. Há muitos adjetivos nesta carta. Dos bons. E palavras proparoxítonas, que ambos gostamos. O antigo twitter e seus 128 caracteres seria impossível para nós. O novo quase o é. Hoje espiei a frente da sua casa no google maps. Não sei se fui xereta ou atrasada nessa iniciativa. Não sei o que você sabe de mim. Mas sei o que importa: você ainda quer saber mais.
Uma coisa sobre mim: gosto demais do Boromir. Boromir é o personagem que vacila. Aquele personagem que enfia o pé na jaca com tanto gosto, que flerta com a desonra, que protagoniza tantos furos na virtude que se poderia pensar que existe só para servir de contraponto ao fodão. Mas não é (só) isso. Ele é tão, tão humano. Tão fraco, tão suscetível ao erro, tão vulnerável. É isso que mais amo: a vulnerabilidade. Porque é da sua imensa, enorme fraqueza, que ele se faz forte. É ele quem brinca com os hobbits, ele que se comove com a dor dos pequenos quando perdem o mago, ele que carrega uma culpa imensa por não ser capaz de proteger todo um povo, ele que cobiça, ele que se arrepende, ele que se inspira. Ele que se entrega. Ele é daqueles que, uma hora ou outra, sucumbem. Os mais humanos e, por isso, meus preferidos. Ele não sabe os caminhos, ele só sabe a chegada e, nisso, se perde. A morte de Boromir é tocante demais. Redimindo-se. E é tão simbólico que ele não cai no confronto direto. É preciso a covardia e a distância para atingi-lo. E uma imensa crueldade. Por muito tempo, imaginei me apaixonar por um Boromir. Até descobrir que Boromir sou eu.
Outra coisa sobre mim (ou, vá lá, sobre Senhor dos Anéis): tem uma hora que Frodo diz a Gandalf que gostaria que o anel nunca tivesse chegado a ele, Frodo. Que preferia que nada do que lhe ocorreu tivesse acontecido. E Gandalf responde, com a genialidade do óbvio (não estou sendo irônica): assim como todos que vivem para ver tempos assim, mas não cabe a eles decidir. Temos de decidir apenas o que fazer com o tempo que nos é dado. Eu gostei dessa frase quando vi o filme mas ela bateu muito mais forte depois de 2015. Venho repetindo, como Frodo, que preferia outro mundo, outra vida, outros eventos. São difíceis estes tempos de horror. Preciso encontrar o eco da frase de Gandalf, em mim.
Porque hoje não é sábado, isso e aquilo - foi mais ou menos assim que escreveu Vinícius. Não? Vamos fazer de conta que sim. Porque hoje não é sábado, reunião sem decisões. Porque hoje não é sábado, jantar 23hs. No intervalo: água, café, palavras. Porque hoje não é sábado, trabalhar feito boi de puxar engenho sem terminar o que havia pra ser feito. Não chegar nem perto. Porque hoje não é sábado, uma saudade inconveniente. Porque hoje não é sábado, esvaziar a geladeira, separar as roupas pra máquina, aspirar o quarto. Porque hoje não é sábado, sorrir, porque tem futebol. E ainda que fosse sábado, uma pontada com derrota, euforia com a vitória. Porque hoje não é sábado, uma carta para a semana: rei de copas. Uma para o futuro: rainha de paus. No agora: reler cartas e reinventar minhas respostas.
saudades da época em que esperava cartas…
"Porque hoje é sábado" dizia o Vinícius, mas acho que você sabe disso! (risos)
Que legal receber cartas escritas à mão. E essas estrelinhas? Já nem me lembrava mais delas. Ainda existem! Me lembro de passar uma a uma na cola de bastão e depois grudar em cartolina colorida pra enfeitar a escola em dia de festa.
Eu também já não encontro em mim essa pessoa que não tinha medo de morrer, mas não que eu viva com medo de morrer. Ah quantas coisas que você diz que me identifico também! Obrigada pelos sentimentos traduzidos em palavras.