Domingo não quero acordar cedo. Não quero acordar sozinha. Não quero calçar sandálias nem vestir roupa que aperte. Quero deitar no chão frio e pela janela espiar o azul. Quero café preto adoçado com felicidade.
Domingo não quero ler jornal nem fazer compras no supermercado. Não quero névoa nos olhos nem vazios no peito. Quero cheiro de mar. Quero ignorar os relógios e contar o tempo em abraços. Quero seguir meu desejo, comer quando sentir fome, dormir quando sentir sono e o resto do tempo deixar meu corpo se saber com outro corpo.
Domingo, quero ouvir sambas e ver futebol na televisão. Não quero falar baixo, andar rápido nem fazer a coisa certa. Domingo, quero ler quadrinhos, tomar banho de mangueira e andar nua pela casa. Não quero cortar cebolas nem descascar abacaxis. Não quero usar talheres nem pôr a mesa, quero desenhar gaivotas em guardanapos.
Domingo eu não quero segundas.
(trecho do livro Éter: 18 contos de batom borrado e outros anestésicos)
Campo
Andei fazendo ioga, meditação, academia e terapia a fim de alcançar a tal sensação de vida normal que me abandonou sem deixar recurso de contato. Nem mesmo um antiquado número de telefone. Fazer de conta que tudo isso não passa de mais um dia. Ou um dia a mais, ainda estou acertando o passo. Decretou-se que era possível ir pra rua, compartilhar elevadores, voltar a beijar bocas, encher estádios, academias, bares, baladas, tudo de rosto nu.
Mas é complicado pra mim entrar na onda quando a gente se sente cada vez mais apartado e, na recepção dos consultórios médicos, na reunião de trabalho, nos corredores de supermercados e, sobretudo, nos cafés e suas esplanadas, onde quer que se esteja no meio de muitas pessoas, percebe-se que não se percebe nada do que se passa. O que as pessoas fazem, seus gestos, movimentos e, sobretudo, a língua que usam, se mostram, para mim, desconhecidos.
Bem agora, por exemplo, diante da trabalhadora entediada que cuida do caixa da lanchonete, foi como se eu não soubesse sequer o alfabeto com o qual aqui se montam os ditos. O rosto dela, todo exposto, inalando e expirando, espirrando, seus poros, pestanas, os pelinhos do buço, pequenas gotículas saltando entre seus lábios enquanto articula uma palavra qualquer, me é totalmente estranho, ignoro como todos os traços se unem e entender um rosto inteiro, sem nada que lhe cubra, exige minha total atenção, impedindo que eu entenda o tudo o mais.
Apontei para a long neck no freezer atrás dela por parecer o menos complicado e concentrei-me em separar moedas e cédulas que, esperava, fossem suficientes. Ela me olhou estranho ao me devolver um volumoso número de notas. Mais um fracasso. Quando aprendi que o tempo é relativo realmente não esperava que um tanto de dias, meses, anos, alterasse toda minha percepção do espaço. Eu, alienado. Alienígena. Brinquei com a ideia de que a sensação de inadequação modificaria o meu organismo de forma tal que o ar respirado entupisse alvéolos. Ou, quem sabe, a gelada cerveja me encharcaria o tubo digestivo em um engasgo sem volta. Mais que estrangeiro, alóctone.
Nada disso aconteceu e sento-me agora na calçada, costas voltadas para a parede, bebendo no gargalo, tentando disfarçar o esquivo da minha existência ao contemplar as pessoas tão viventes das suas vidas, pessoas que carregam os corpos de um lado pro outro com uma displicência que me leva a invejar, sem chegar a entender, suas alegrias, seus problemas, suas contas atrasadas, suas doenças a descobrir, seus amores, seus incômodos vizinhos, seus cineminha de fim de semana, o churrasco de domingo, a reforma do toldo do quintal, o cansaço no arrastar dos pés, suas horas a mais a quem eles tratam com intimidade.
Eu perdi todos os meus dias, não os encontro mais em mim. Os que tinha vividos, os que tinha pra viver, os que passei vagando sozinho numa casa cuja janela era a tela do computador, os dias sonhados, os dias chorados, os dias em que morri, morri, morri; todos misturados, em calendário inescrutável, dias que já não significam o que significavam, que não marcam e delimitam um corpo como faziam, sigo em dias que correm atrás do relógio e eu nunca me alcanço.
Bebo rápido e, depois de algumas tentativas, descubro um sinal que parece ser entendido pelo garçom, pois ele traz uma nova cerveja. Talvez não tenha sido meu sinal e sim o costume. Duvido que eu venha a ter certeza. Entre os que não me vêem, vejo um desses carrinhos de coleta, lentamente puxados por um homem de idade sofrida, blusa do meu time, havaianas sambadas. Um passo, outro, mais perto, percebo que mexe os lábios. Ele canta? Reza? Recita? Algo em mim quase acorda. Talvez não tenha sido só quase, talvez tenha existido algum tipo de apelo porque ele me olha e sorri. Sorri para mim. E faz um gesto largo, soltando um dos braços do carrinho, fechando a mão e empinando o polegar. Retribuí o gesto enquanto ainda apreciava o sorriso que recebi, um sorrir pra mim, meu. No depois de mim, escuto o samba com o qual ele se embala.
Ali no quase áfono quase surdo, campeão dos deslocados, rei da desnaturalidade, apartado do fluir de todos, pra mim aquele sorriso teve mais importância do que tanto. Do que as tentativas de. Nisso de precisar sentir-me em uma vida vivida, o sorriso foi oxigênio. Um rosto que viu o meu rosto. E eu vi o rosto que viu o meu rosto e soube o que era. Âncora. Contenção de um corpo em diluição.
Recordo a primeira vez que li um livro de fantasia que ninguém do meu convívio havia visto e como a excitação de haver um universo a explorar foi mitigada pela extrema solidão de entender que seria uma incursão solitária. Ainda assim, cada viagem-página percorrida enchia-me de encanto. Foi esta a sensação atualizada, a dádiva daquele sorriso descompromissado ao lembrar-me que não se pode esticar a tristeza além do seu ponto de tensão. De tanto fazê-lo, corre-se o risco de lacear o sentir como a um elástico.
"Havia uma guerra por todo o mundo
e todo o mundo
era dor.
E no entanto eu sussurrei em ouvidos preciosos
versos de amor.
Fez-me sentir envergonhado.
Mas não, na realidade não"
Jaroslav Seifert
Contra-Campo
14 de março de 2020, dia no aniversário do meu pai. Foi quando começou a “minha” pandemia. Desde dezembro de 2019 eu lia sobre o vírus nas postagens de um amigo, antropólogo da saúde, que estava monitorando os acontecimentos na China. Em janeiro e fevereiro eu chorava vendo os mortos se empilharem, principalmente na Itália. Mas foi chegando em Fortaleza, no portão da casa dos meus pais, que a situação - que já me habitava – tomou de conta. Minhas sobrinhas, de 8 anos, tinham preparado esta recepção:
Desta data até, suspeito, hoje, os dias passam em um calendário que eu intitulei “Infinitena” a partir de um tuíte que já não sei mais de quem. Melhor que lockdown, quarentena, isolamento, o termo infinitena compreende direitinho a sensação de estar rodando solta no espaço sem ponto nenhum de referência.
A Infinitena me consumiu. Fui desaparecendo enquanto aumentavam o número de casos, de internações. De mortos. Fui perdendo minha bondade, minha esperança, meu riso interior, vendo a indiferença de tantos, a crueldade de alguns, a ausência de políticas públicas e deboche a respeito das poucas iniciativas coletivas. Comecei a seguir o Átila, o Isaac, perfis sobre máscaras, canais de divulgação científica e, principalmente, a acompanhar o Inumeráveis. Todas as mortes eram minhas. São minhas.
Meu analista (voltei à análise, de forma virtual, depois de vinte anos, durante o isolamento social) às vezes me cutucava sobre o medo. Eu não senti medo de morrer. Eu estava bem informada, bem protegida, morando sozinha em casa grande, ventilada, trabalho em home office, compras apenas uma vez por mês – por delivery, etc. Diferente dos caixas de supermercado, motoristas de ônibus, auxiliares de enfermagem. O que eu sentia era uma angústia perene. Por tudo que eu não pude evitar. Tudo que eu não pude fazer. Tudo que eu não pude dizer. Não importa quanto dinheiro coloquei em mãos que precisaram, não importa quantas máscaras distribuí, não importa quanta informação disseminei – ou tentei, não importa de quantas formas escrevi meus pêsames e tentei ser conforto. Pessoas adoeceram. Pessoas morreram. Pessoas perderam pessoas. E depois, piorou. Os cuidadores adoeceram. O oxigênio faltou. Falsas informações foram disseminadas. Pessoas foram abandonadas. Covas e covas e covas.
Durante a infinitena eu não aprendi a fazer pão. Não me tornei mãe de planta. Não fiz ou acompanhei lives – a não ser as da Teresa Cristina. Não me tornei uma pessoa melhor. Eu sentia raiva, tristeza e raiva novamente, era isso que eu fazia. E ainda tinha a libido, incomodando em um mundo sem futuros envolvidos. Sem encontro, boteco, passeio, viagem, sem falar baixinho no ouvido, sem mão se esbarrando, joelho se encostando, sem um copo de cerveja pra dois, sem meu corpo agindo no mundo. Eu apenas sequei. Tanto do que era forte, claro e quente em mim, se apagou, arrefeceu.
Quando o anúncio de vacina-esperança chegou, veio também o cansaço e os negacionistas. Talvez já fosse um pouco tarde demais pra mim.
Eu vi as pessoas falarem em “voltar ao normal”. Desejarem isso. Morrem 30 pessoas por dia de covid, em 2024. Morreram mais de setecentas mil pessoas - só no Brasil. Isso é horror. Não sabermos exatamente quantas, pois provavelmente esse número é subnotificado. Isso é horror. Os que tiveram discernimento – e puderam – passaram mais de 500 dias com pouquíssimo contato com outras pessoas além daquelas com as quais dividiam a residência ou uma curta vizinhança. Isto é horror. Durante o período, crianças nasceram e nunca tinham sido tocadas por alguns parentes. Isto é horror. São muitas as faces do horror que marcam a impossibilidade de uma retomada direta de uma linha do tempo suspensa pela pandemia. Não dá só pra soltar o freio de mão e retomar a marcha. Só voltar ao normal não dá pra mim.
Eu não sou a pessoa que era em 2019. Muitos podem argumentar: óbvio, você também não era, em 2019, a pessoa que tinha sido, sei lá, em 2012 ou 2002. E eles não estão errados. Só não estão certos. O período da infinitena teve imperativos que tomaram de assalto meus sonhos, projetos, medos, hábitos, comportamentos, afetos. A impotência diante das mortes, a ausência quase completa de controle diante dos acontecimentos diretamente ligados à minha rotina, a desigualdade acentuando-se cada vez mais, a dor, a dor, a dor. Eu perdi muita energia. Vivia sempre muito cansada, sempre exausta. Ainda me sinto assim, exaurida. Pouco foco, quase nenhuma concentração. E essa tristeza, pesada, pesada, pesada como grilhões nas minhas aspirações.
Eu ainda fico de máscara em ambientes fechados. Eu ainda procuro informações sobre contaminação, novas vacinas, ondas de covid. Eu ainda carrego os mortos.
Além de passar a experimentar a vergonha, sentimento meio inédito para quem vivia com o superego de férias. Vergonha de estar viva, talvez. De ainda sorrir. De ainda amar. De ainda trepar. De viajar, trabalhar, dançar. De ainda acordar, todo dia acordar. Vergonha até de escrever este texto, focado no que eu passei, no que eu senti, no que eu sofri. Como se não valesse a pena. Como se eu não pudesse ou não devesse, porque não perdi o bastante para ter o direito. Como se as palavras precisassem ter um destino outro e a mim só me coubesse o silêncio.
Durante a infinitena eu fiquei só. Eu ainda estou, acho. Eu vejo as pessoas seguindo em direção ao mesmo futuro que pretendiam. Nem sempre é fácil pra elas, há escombros e buracos no trajeto, mas, persistentes e dispostas, elas seguem. O mesmo caminho, a mesma passada, a mesma viagem, como se a pandemia tivesse sido um obstáculo superado. A infinitena me impossibilitou a estrada e a caminhada. Mudei o passo, me perdi nas bifurcações. O futuro que eu tinha, perdido. A eu que tinha aquele futuro, perdida. No espelho, outro rosto me devolve a estranheza. E trago o corpo em rebelião. Meu corpo, um estranho com suas novas mazelas, sua nova forma, essa antes desconhecida lassidão. Fiquei só de toda a gente. E só de mim. De tudo que aprendi e desaprendi, o que mais se consolidou foi a solidão.
Quando revi Hiroshima, mon amour, entendi um pouquinho de como sinto a pandemia de covid-19. As memórias documentadas no filme são obstinadas, apesar do avanço do silêncio e da insistência no retorno à vida normal. O que Resnais nos conta é que a destruição permanece mesmo depois da passagem do tempo, das reconstruções, da energia colocada no esquecimento. É assim que a pandemia persiste em mim. A memória tem seu ritmo e caprichos, além do que o acordar, seguir e dormir sugere de linear. Os personagens dialogam: “- você não viu nada” X “- eu vi tudo”. Estão certos. Estão errados. Por mais que eu tenha visto ou sentido, me falta. O trauma é coletivo, evidenciam Resnais e Duras, mas o reinventamos em nós ao lembrá-lo, mais, no como o lembramos e no como esquecemos. O que reiteradamente volta para ser destruído e reconstruído. Cidades. Nós mesmos. A vida reclama o luto enquanto reinventa-se na possibilidade e impermanência do desejo. A Câmara dos Deputados aprovou a data de 12 de março como o Dia em Memória das Vítimas da COVID-19. É o dia do meu aniversário. Achei pertinente. Mesmo quando não lembro, não esqueço. Sigo arrastando correntes – toda minha solidariedade aos fantasmas de desenho animado.
há pouca coisa em mim que não tenha sido dita ou desenhada pelo Verissimo
desconfio de quem diz ter passado ileso pela pandemia.
Rememorar esse período tão caótico (adorei o termo infinitena) é contínuo. Achei interessante sua análise em relação ao filme Hiroshima, mon amour pela comparação com um trauma coletivo que, apesar de ter sido causada pela própria humanidade, nos questiona de que maneira continuamos para um futuro tão incerto.