Lembrar é um pouco fazer-se de mágico. Quando começamos a puxar as memórias da manga, seguem-se - como lenços - coloridas, interligadas, aparentemente infindáveis. Os filmes fazem as vezes de consignas mágicas pra mim. Há pessoas que evocam o passado com músicas. Uma trilha sonora para o passar dos dias. Há evocações por cheiros, lugares, nomes. Eu lembro e me lembro em imagens, diálogos, sequências. Eu lembro e me lembro em filmes. Eu, que tenho memória de geléia.
Os filmes que vi, que me marcaram, lembro deles e lembro imediatamente não de como ou onde eu estava, quem dera, mas com o que sonhava e como eles se entrelaçaram com minhas preocupações e alegrias. Lembro do que me fizeram e fazem e sei quem sou no que sou por causa deles.
Deixo o pensamento correr em marcha a ré e me vejo, menina. Os meus filmes eram, quase todos, na televisão. O cinema, em tela grande e pipoca, era pras férias, passeio premium. Eu, pequena: sessão da tarde, brincar na rua, me esconder do meu vizinho da frente que dizia que era meu namorado porque o outro vizinho é que era, fazer tarefas da escola. E querer ser meu pai. Meu pai é um baita cara. Quando eu era criança, queria ser igualzinha a ele.
Hoje, muitos anos passados e experiências vividas, muitas pessoas e situações conhecidas, ainda quero exatamente a mesma coisa. Ser como ele é. Meu pai sabe amar e ser amado. Com ele aprendi a tolerância. O sorrir fácil. Foi espiando sua fala que fui aprendendo que ser gente é bem mais difícil do que parece: exige bondades. Foi observando seus dias que fui descobrindo: ser gente é bem mais fácil do que parece: basta a entrega. Meu pai é de coragens. E força. Meu pai é de vulnerabilidades. E generosidade. Construiu Brasília com as próprias mãos. Construiu um mundo de afeto pra nós com seus próprios sonhos. Com ele, aprendi a alegria dos dias. Aprendi as cores vermelho e preto para a paixão. Aprendi o sofrer na canção. Aprendi o cavalgar para o destino. Deu-me ele: o Flamengo, Maysa e faroestes. Então, os filmes. Eu gostava de ficar ali, pequena, vendo a televisão com os olhos imensamente bons e adultos do meu pai. Sabia que se eu aprendesse alguma coisa do que ele via, eu veria o mundo em afeto e alegria. Em bondade. Porque ele é assim: bom.
Enfim, no princípio era o Oeste e o Oeste era deus. Nem lembro quantos filmes desses eu vi: o cavaleiro solitário, os duelos, o saloon, as mulheres muito decotadas, as cartas, o cavaleiro novamente sozinho rumo ao horizonte. Eu imitava os pistoleiros em duelos e adorava fingir que bebia uísque ou sabia jogar pôquer. E, claro, dançava can-can.
Eu era quem partia a cavalo, eu era quem ficava à janela. E eu era o próprio indomado espaço. Ver faroestes me libertava, aqueles imensos territórios. E me aprisionava nas trilhas sonoras hipnóticas, viciantes. Aquele assovio que escuto até hoje, música de fundo para as despedidas, as grandes decisões ou, simplesmente, para um pôr-do-sol solitariamente contemplado.
Os faroestes possuem uma série de características que me comovem: honra e rude bondade. Um certo desconforto e o fato de nunca, nunca ser o bastante. O vasto horizonte e o risco sempre perto, sempre próximo. A aridez da vida e a felicidade temporária e transitória. Heróis vulneráveis e duros. A solidão. A violência constante e perturbadora. As desilusões, os grandes gestos, os inesquecíveis duelos. Era uma vez no Oeste, e é sempre a mesma vez nos meus desejos. Penso que o faroeste é cinematográfico por essência, predestinação e história; o faroeste é vocacionado para as telas, talvez porque o cenário seja tão relevante para o gênero, só aquelas imagens daquele tempo e lugar podem suportar as dimensões dos faroestes.
O faroeste tem heróis. Mas heróis que não voam, não têm superpoderes, não são invulneráveis e, a bem da verdade, só se envolvem nestas coisas de bem comum por um incidente qualquer. São solitários os homens do Oeste. E me dói e me comove que assim o sejam. E não os queria outros. Penso nos faroestes, nas lembranças que evocam e tenho cá pra mim que se devia ver mais destes filmes nos tempos que correm.
Se eu tivesse direito a um desejo, desses de gênio e tudo, acho que desejaria que todo mundo visse Rio Bravo pelo menos uma vez por ano. Sei lá, tenho a impressão que teria mais efeito do que ansiar pela paz mundial. Entre os vários motivos, tem o processo do personagem do Dean Martin. A gente já o conhece em uma cena eloquente sobre o Fundo do Poço. E poucos poços foram tão fundos, no cinema, como o que ele habita (quem não sente seu coração apertando ao vê-lo querer pegar aquela moeda numa escarradeira?). Nenhuma palavra é necessária. A miséria não precisa de cartão de visitas. Depois, o vemos habitar um limiar. Por ser motivo de piada, ninguém se preocupa com ele e, deste não-lugar, ele pode ser útil, mostrar o quão sabido e ágil ele é. Sorrimos junto com o roteiro. Mas o momento seguinte é o que é realmente perigoso. Como na vida. Quando acreditamos. Quando temos esperanças. Quando nos colocamos no jogo, aí é que nos tornamos vulneráveis. Ele toma banho. Faz a barba. Tem de volta suas armas. Seu chapéu. Suas roupas. Tudo parece lhe assentar bem, como se nada tivesse acontecido. Mas aconteceu e, mesmo que não aparente e ninguém desse por isso só de olhar, ele sabe. E sofre. Poucas coisas são tão pesadas como sabermos que não somos quem achamos que parecemos ser. Ou que esperam que sejamos. Poucas coisas são tão sufocantes quanto repetidamente duvidarmos de nós mesmos. Sentimos os vazios. Sondamos os abismos. E ainda há a irônica vida a puxar o tapete justamente aí. Corda bamba. Ele balança. Balançamos junto. Prendemos a respiração. Encolhemos dos dedinhos. Gosto demais desse filme. De como é possível acompanhar tudo no rosto de Dean: a vertigem, o medo, a força. E depois aquele momento gostoso de saber que se pode ser apenas e justamente como se pode ser e isso basta. Somos o suficiente. Tem muito mais nesse filme, mas se tivesse só isso, a canção e o beijo na careca, já estava valendo.
Devíamos ver mais faroeste, mesmo aqueles antigos, com mocinhos e bandidos tão esquemáticos que chega a ser ingênuo. A ordem das coisas nestes faroestes eram simples. Claras. A construção da narrativa não deixava dúvida: o tal mocinho era bom – nós o reconhecíamos assim - porque ele fazia coisas boas e não o desajeitado e essencialista: ele faz coisas boas porque é intrinsecamente bom. Nos faroestes não se julgam intenções. Ninguém quer saber se a pessoa está lutando contra os pistoleiros pra fazer de conta que é legal e tacar o beijo na mocinha. O que importa é que, lutando contra os pistoleiros, ele salva uma cidade inteira da opressão e do medo. É meio evidente que a mocinha queira beijá-lo. Um bocado de gente fica a querer. Eu mesma, já não mais tão criança, fui aprendendo a desejar nos meus homens algo que se passava com os homens que cavalgavam contra o sol naqueles enormes desfiladeiros.
Estes dias revi dois filmes que me lembraram o que amo ou, ainda, porque amo. Há dois homens, e eles são – concomitantemente – iguais e tão distintos quanto se pode – aparentemente - ser. Will Kane e Rooster Cogburn, respectivamente Gary Cooper e John Wayne em Matar ou Morrer e Bravura Indômita. Ambos já não são jovens, vemos em seus rostos o cansaço de uma vida difícil. Ambos têm uma tarefa a cumprir. Will Kane é um delegado prestes a passara bola que se depara com uma situação conflituosa ressurgida do passado, Rooster Cogburn é um agente federal que aceita o trabalho de procurar e capturar um fugitivo em território indígena. Wiil Kane é um homem ilibado, ético, determinado, impecável e reconhecido por todos como gente boa. Rooster Cogburn é um bêbado, um tanto violento, displicente e com moral frouxa. Kane e Rooster são os homens que amo em cada homem que amo.
Eu amo o andar angustiado de Kane e o gingado insolente de Rooster. Amo o abraço generoso de Kane e a cavalgada solitária de Rooster. Por baixo do tapa-olho, da estrela de latão, por baixo do silêncio eloquente ou da conversa bêbada, estão eles: homens que se sabem comprometidos com algo além deles, além de mim, além do óbvio. Algo que não se consegue definir com precisão mas se reconhece em situações extremas. Eu os amo no seu amor pela sua missão. Pela sua coragem e pelo conhecimento dos seus limites e da necessidade de ultrapassá-los.
Há um poeta inglês do séc. XVII, Lovelace, que termina sua poesia “To Lucasta, going to the wars”, deste jeito: “I could not love thee, dear, so much, loved I not honour more” - que se pode entender assim: não te amaria tanto, querida, não amasse mais a honra. É isso que amo nos homens que amo: essa convicção interna, esse núcleo seguro, essa ternura revestida em coragem. Essa independência.
(e, é por isso, também e contraditoriamente, moço, por amar o que em você é tão Kane e Rooster, por amar seu apego ao seu correto, que é tão difícil aceitar a geografia, o silêncio e a ausência a que sua retidão obriga)
Então, eu penso, tão bom e tão útil uma sessão de faroeste. Acompanhar Shane partir sozinho. Ver a porta que se fecha isolando Wayne em Rastros de Ódio. Pra saber dos que partem, solitários e sem raiz. Porque o custo de um esquema do bem absoluto é a absoluta solidão. O desencontro. Quem não viu o faroeste, não sabe que os que ficam, os que tem amigos, famílias, filhos, risos, medos e sonhos são os quase-certos, quase errados, os que podem ser heróicos às vezes, mas são mesmo, quase sempre, apenas e fundamentalmente humanos. Como em Sete homens e o destino. Só os fazendeiros venceram. Incluindo Bernardo. Tão meus filmes que nem sei dizer algo que não seja: o coração é um bravio território. Inexplorado. Que venham as caravanas e os audazes.
Eu via muito faroeste nos Corujões da vida. E lia os quadrinhos, mas acho que perdi algo no meio do caminho, como diria Calvino, não ficou como clássico para mim =/
"Porque o custo de um esquema do bem absoluto é a absoluta solidão." Li este trecho e lembrei de "O homem que matou o facínora", um filme que acho genial em tantos aspectos distintos. E também de um faroeste mais "moderno", belíssimo também, Os Imperdoáveis, tão humano que chega a doer.
Que belo texto, Luciana! Por sua causa, fiquei com vontade de ver mais faroestes. E vou ver