Peladona
Ficar nua, estar nua, ser nua na vida. Como metáfora, mas, principalmente, como materialidade. Não ter vergonha. Entender que meu corpo não tem erros, tem história. Até que.
Isso aqui é tipo uma prestação de conta pelos tempos sem Garrafinha, mas de um jeito tão torto que nem sei se vai fazer sentido. Vida que segue (torçam pra seguir).
Sabem, eu e o meu corpo costumávamos nos dar bem, tão bem que até, ocasionalmente, nos sentíamos como um só (ou uma). Confesso que nunca fui de dar muita trela pra ele, mas também não sou ingrata, usualmente reconhecia as benesses desta relação tranquila. Do lado dele, uma postura discreta, sem reclamações ou retaliações. Eu e ele, nós. Beleza. Não posso dizer que cuidávamos um do outro, é mais verdadeiro dizer que isso nem era uma questão. Convivíamos. Em 2014, eu e Renata Lins batemos um papo sobre os nossos e, relendo, ainda me sinto justinho assim: Uma conversa sobre corpo. Talvez usasse outras palavras ou explicasse de um jeito diferente (mais conciso, por exemplo), mas o básico se sustenta. Em 2012 (antes, mas no mesmo contexto), escrevi este outro texto também no Biscate Social Club, que dá para entender os highlights:
Eu gosto de estar nua. Gosto, especialmente, de andar nua. Não foi sempre assim, lembro que com doze, treze anos, pra trocar de blusa na frente de alguém, nem que fosse, sei lá, minha mãe e mesmo que eu estivesse de sutiã, virava as costas pra pessoa. Aí o tempo passou e eu fui aprendendo sobre meu corpo, vivendo sua gostosura, apreciando senti-lo e deixando as roupas cada vez mais tempo em seus cabides. Hoje em dia tenho que me lembrar de me vestir pra sair e muitas vezes assusto as visitas começando a tirar a roupa na sua frente até me tocar e ir pro quarto ou algo assim.
Sim, eu gosto de estar nua pelos óbvios motivos biscates. Gosto de tomar banho, água quente na nuca, espuma na pele, gosto de me esfregar com vagar e deixar o corpo apreciar ser tocado. De estar nua ao me masturbar. De me despir na frente do (s) moço (s) e ver no meu olho o seu olho me olhando. Gosto de ir deixando pele nua encostar em pele nua. De mãos espalmadas no meu corpo. De línguas umedecendo carne. Do roçar, do calor que vem de dentro pra fora, gosto do suor escorrendo na nuca, dos mamilos endurecidos, dos pelinhos se eriçando.
Mas tem mais nisso de gostar de estar nua, mais do que deixar meu corpo nu em outro corpo nu (não isso seja pouco). Aprecio meu corpo nu por ele mesmo. Pelo que me conta. Pelo que diz de mim pra mim. É bom levantar os braços e ver os seios subindo, as aureólas mudando de lugar. É gostoso deitar e vê-los escorrendo pro lado. Gosto de pressionar os braços e ver aquele vale a la espartilho antigão se formando. Desfruto de olhar minha mão e reparar que os dedos do cotoco são meio curvados pro lado enquanto os outros são tão retinhos. É legal cutucar os pelos nascendo na perna, macios, alguns encravando depois de uns dias da depilação com lâmina. Não me anima muito o cotovelo, daí todo dia, depois do banho, fico na frente do espelho olhando pra eles um bom pedaço, dizendo pra mim mesma que, ué, são esquisitinhos, coitados, mas são meus. Curto ver nas fotos o rosto todo riscadinho dadas as gargalhadas. Gosto de colocar reparo se meu tornozelo está caminhando em direção a se tornar membro da família do meu avô (fininho) ou se é impressão causada pelas coxas grossas. Me divirto com meu totó, corcundinha de estimação. Deleito-me investigando os inexplicáveis arranhões que consigo fazer nas costas, em uma flexibilidade noturna que nunca consigo repetir acordada. Aprecio o sinalzinho de carne que tenho na parte interna da coxa. Curto fazer ponta e sentir o esticadinho que dá do dedão até a coxa. Gosto.
E de andar nua, já disse que gosto? Tudo isso que mencionei, mas em movimento. Estimo sentir o peso alternando de um pé para o outro, a palma toda encostada ao chão. O movimento da bunda, o sobe e desce. O peso da barriga, o ondular ao mover-me. O roçar dos braços nos lados do peito. As coxas no encontro, desencontro, encontro, desencontro. Simplesmente respirar e sentir o ar levinho, fugindo, entre os lábios. E gozar do corpo meio cortando o vento, o tempo, as coisas que o negam ou definem.
Andar nua na frente do outro: bônus.
Ficar nua, estar nua, ser nua na vida. Como metáfora, mas, principalmente, como materialidade. Não ter vergonha. Entender que meu corpo não tem erros, tem história. Estar nua me lembra as alegrias, as dores, os desassossegos, os prazeres, os soluços, o parto, os abraços, a amamentação. Estar nua me conta infâncias de rua, asfalto, quedas e brincadeiras. Estar nua me diz de adolescência em flertes, livros e amassos. Estar nua me recorda amores, rugas, rusgas, encontros, viagens, praias e cobertores e risos e riscos, cicatrizes, caminhadas, repouso em camas e corpos outros. Envelheci. Engordei. Enruguei. Eu. Estar nua me lembra que o aqui é tudo que sou, que me fiz ser, que pude me fazer. Queria contar isso para vocês: é bem bom estar nua. É bem bom estar.
Como dá pra notar, eu apreciava estar, na vida, com esse corpo. Meu corpo. Que de 2020 pra cá foi se tornando um estranho. Não em sua forma ou aparência, mas no funcionamento. E agora estou confusa. Baqueada. Não sei lidar direito com um corpo que saiu da sua discrição para mandar mensagem toda hora, fazer alarde, reclamar de quase tudo (ok, na parte do consumo do álcool ainda estamos em paz).
Confesso que me sinto meio traída. Ou, em dias piores, sabotada. Como assim uma pedra silenciosa se formando num órgão interno sem sintoma, sem sinal, sem aviso? Uma pequena paralisia facial inexplicada por um monte de médico? E essa vulnerabilidade diante do calor? Do calor! Uma fraqueza só porque está fazendo CALOR, pelamordosdeuses, nós convivemos com calor desde nascidos, corpo! E ainda tem a preguiça de fazer coisas das quais eu gosto. Vamos pra praia, corpo? Nopes, não quero sair de casa. Que tal ler um livro daqueles que pesam na mão? Nem pensar! Um filminho cabeçudo? Tô fora. Vejam bem, agora eu tenho um corpo que fica gripado. Gripado! Que insolência, ficar dolorido, arder garganta, até mudança de temperatura ele apresenta. Parece até que tenho menos de 12 anos. Me ofendi. Humpf!
Essa desavença, esse descompasso, esse desacordo aumentam a impressão de solidão dos últimos tempos (últimos tempos = desde 2020). O passar dos anos, olha só, tem levado a sensação de confiança. De intimidade. Nunca pensei que não contaríamos um com o outro. Nunca imaginei que soaríamos desconcertantes um pro outro. Não esperava ser deixada na mão.
Tenho que aceitar que a recíproca deve ser verdadeira. Ele deve achar que lhe devo algo. Que não cumpri alguma cláusula do nosso acordo de convivência. Que não estive, quando ele precisou.
Falhei com ele, ele falha comigo? Somos revanchistas assim?
Amanhã tiro um pedacinho dele. De mim. De nós. Talvez eu volte rapidinho pra cá. Talvez venha um luto novo, imprevisível no que pode pedir para ser dito ou exigir silêncio. Não sei. Só espero e torço para que esse vai e vem não os entediem. Fecho a porta do quarto, sim, mas digo o contrário da personagem da Gabo. Eu não quero ficar (mais) sozinha.
O corpo é assim mesmo, o meu que já vive há 43 anos também já dá sinais de revanche. Mas o que quero dizer mesmo é que espero que fique tudo bem depois que você tirar esse pedacinho. Se cuida, fica bem.
o corpo é parte da nossa história, conta de quem somos e de quem fomos.